Notas contemporâneas com Murillo de Aragão

Setor portuário deve ter livre entrada para estrangeiros?

Sim, em termos. Empresas internacionais são parte do panorama logístico nacional. Mas o país deve ter medidas regulatórias necessárias para assegurar a competitividade e os interesses econômicos do Brasil.

29/10/2024

A recente aquisição da Santos Brasil pela gigante francês da navegação, CMA CGM, marca um ponto de inflexão para o setor portuário brasileiro, especialmente no Porto de Santos, o maior porto público do país. Este movimento não é isolado. Na verdade, reflete uma tendência de consolidação global em que grandes operadores de navegação, como CMA CGM, MSC e Maersk, expandem seus portfólios ao adquirir ativos estratégicos, como esses terminais de contêineres. Estas empresas, que representam os maiores grupos do globo, são subsidiárias de corporações internacionais e representam a presença crescente de investimentos estrangeiros nos portos brasileiros. 

Nesse contexto, há nuances desafiadoras acerca da presença e controle de empresas estrangeiras nos setores de transporte e logística no país. Uma simples comparação, em especial, entre o modal rodoviário e o portuário, traz à tona várias questões regulatórias e econômicas. Mas a questão central, para além do embasamento jurídico e regulatório, é se há premissas econômicas que tragam vantagens para o país, que justifiquem essa diferença no ordenamento brasileiro. 

As concessões rodoviárias no país são frequentemente controladas por grandes consórcios que podem incluir empresas multinacionais, mas, que possuem pelo menos uma empresa brasileira no grupo. Essa estrutura é fomentada tanto pela legislação de concessões (lei 8.987/95) quanto por políticas específicas que incentivam a participação de empresas nacionais, seja por meio de financiamentos diferenciados pelo BNDES ou outras vantagens regulatórias. 

No setor portuário, a Lei dos Portos (lei 12.815/2013) regulamenta as concessões e arrendamentos portuários, mas não faz distinção obrigatória para a participação de empresas brasileiras em consórcios. No setor marítimo, a navegação de cabotagem (navegação entre portos nacionais) é restrita a empresas brasileiras, segundo a lei 9.432/1997. No entanto, no que tange à operação portuária e aos serviços de navegação de longo curso (internacional), não existem reservas semelhantes, permitindo maior participação de empresas de fora. 

De fato, no ambiente regulatório, a presença internacional é estritamente legal, não há barreiras explícitas que impeçam a participação estrangeira nos setores portuário e marítimo da maneira que há no setor rodoviário. Podemos entender que a decisão governamental de abrir o setor para maior participação do capital privado estrangeiro teria o objetivo de aumentar a eficiência e os investimentos em infraestrutura portuária. 

Hoje, há uma presença significativa de empresas estrangeiras no setor portuário brasileiro, especialmente em terminais de uso privado (TUPs), como também nos maiores portos públicos, onde operam grandes players globais. Isso traz uma provocação para os entes reguladores para equilibrar a necessidade de atrair investimentos estrangeiros com a proteção e promoção de empresas nacionais, garantindo que a economia local se beneficie tanto dos investimentos quanto da geração de empregos e da tecnologia. 

É sobre esse equilíbrio que precisamos ponderar. Entes estrangeiros podem representar importantes avanços, como investimento direto para modernização de infraestrutura, acesso a mercados mundiais, transferência de  Know-How, aprimoramento de mão de obra local em práticas e tecnologias de ponta e aumento da competitividade. Excelente!

Mas, e as desvantagens? Instituições como o Ministério dos Transportes, Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Tribunal de Contas da União (TCU) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) precisam estar alertas para outras condicionantes que podem esmorecer o mercado portuário interno com a turbação  internacional no horizonte portuário. 

Afinal, decisões sobre investimentos, expansão, contratação e outras operações críticas podem estar sujeitas a condições e políticas econômicas de outros países, que pode, nem sempre, ter alinhamento às necessidades ou ao melhor interesse do Brasil. 

A presença maioritária de empresas estrangeiras para operar infraestruturas portuárias pode colocar o país em uma posição vulnerável, ao influenciar decisões estratégicas que afetam a economia nacional. Empresas globais com poder de mercado expressivo podem engajar-se em práticas que prejudicam a competição local, como dumping de preços ou condições contratuais desfavoráveis para empresas brasileiras. 

Ainda temos o direcionamento de lucros gerados no território brasileiro. Uma grande parcela das receitas, oriundas das operações portuárias, pode ser enviada de volta aos países de origem das empresas, reduzindo o benefício econômico local dessas operações. 

O ordenamento jurídico brasileiro, de fato, permite essa diferenciação no controle de concessões entre os modais, com menos restrições à participação estrangeira no setor marítimo e portuário em comparação ao rodoviário. Isso reflete uma política de abertura e desenvolvimento que tem seus prós e contras, dependendo da perspectiva econômica e de mercado. Se essa diferenciação "compromete a economia" é uma questão que requer contínuo monitoramento sobre os efeitos econômicos reais e percebidos dessa abertura. 

Nosso arcabouço regulatório deve estar preparado para impedir desde a formação de cartéis no setor, como ser diligente ao analisar qualquer fusão ou aquisição que envolva grandes operadores portuários internacionais.  Este é um ambiente propício para a concentração de mercado, em prejuízo da concorrência efetiva, com total poder de mercado, levando a um aumento nos preços dos serviços portuários. 

A presença crescente de operadores estrangeiros no setor portuário brasileiro, embora traga consigo um influxo de investimentos e avanços tecnológicos, também destaca a necessidade de um quadro regulatório robusto. A expectativa recai sobre os entes reguladores, como a Antaq e o Cade, que desempenham um papel indispensável na salvaguarda dos interesses nacionais e na manutenção de um campo de jogo equitativo para todos os participantes do mercado. 

É  essencial atuar no âmbito regulatório para prevenir práticas anti-competitivas e assegurar a competitividade do mercado e proteger a economia local de potenciais impactos adversos de uma presença  estrangeira no setor de forma hegemônica. Além disso, a regulamentação eficiente garante que os benefícios dos investimentos estrangeiros possam ser maximizados, promovendo a modernização da infraestrutura portuária brasileira e a eficiência operacional, sem comprometer a autonomia econômica e os interesses estratégicos do país. 

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Colunista

Murillo de Aragão é advogado, mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Sócio fundador da MDA Advogados e CEO da Arko Advice Pesquisas. Professor-adjunto da Columbia University e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Legislativo (IBDL).