1. Introdução
Costuma-se dizer que o melhor desinfetante é a luz do sol. Nesta segunda-feira, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), vinculado ao Ministério da Justiça, aprovou uma recomendação favorável ao uso de câmeras em fardas de policiais. A decisão foi publicada no Diário Oficial da União na segunda-feira, 22 de janeiro[1]
A posição do CNPCP foi baseada em estudos e análises de dados que indicam associação entre o uso da câmera corporal e significativa redução do nível do uso de força policial, bem como redução da interação negativa entre agentes de segurança pública e os demais cidadãos. Em outras palavras: os equipamentos produzem provas importantes e protegem não só a população como também os policiais.
Além disso, o órgão levou em consideração a necessidade de uniformização/padronização dos dispositivos em âmbito nacional. Aspectos delicados, como a gravação, o armazenamento, tratamento e disponibilização das imagens para assegurar a cadeia de custódia probatória, foram abordados pela recomendação aprovada pelo Conselho.
Apesar disso, dos argumentos elencados pelo Ministério da Justiça, em razão da autonomia dos entes federativos, a recomendação não é cogente, cabendo a cada estado decidir sobre a implementação da política. Diversas regiões já estão testando os aparelhos, como Rio de Janeiro, Santa Catarina, Distrito Federal e São Paulo.
2. Opinião de especialistas
Especialistas como Geoffrey Raymond destacam que a Inglaterra foi um dos países pioneiros na utilização das câmeras com essa finalidade, ainda em 2005. Posteriormente, dezenas de outras forças policiais também adotaram os aparelhos. Nos Estados Unidos, as câmeras se espalharam pelo país na década de 2010. Em 2020, imagens de um desses dispositivos chocaram o mundo. Na gravação, um vídeo em primeira pessoa mostrou George Floyd sendo abordado e estrangulado pelo policial Derek Chauvin, com um joelho no pescoço. A morte de Floyd provocou furor na população, com dezenas de protestos pelo país, e o surgimento do movimento “Black Lives Matter”.
De acordo com Victor Minervino Quintiere, doutor em Direito e membro da comissão de estudos em Direito Penal do Conselho Federal da OAB, a recomendação aprovada pelo CNPCP está na direção certa, uma vez que a utilização das “body-worn cameras”, ou BWCs” em fardas policiais aumenta a transparência das ações dos agentes de segurança. Segundo o criminalista, a estratégia diminui riscos, tanto para a população em geral, quanto para os próprios policiais, conforme apontam diversos estudos e dados oficiais. Quintiere lembra que o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública coloca o Brasil no topo do ranking entre os países com a maior letalidade policial, tanto na condição de vítima como de algoz.
No Brasil, um levantamento pela Globonews realizado com base na Lei de Acesso à Informação, demonstrou que a partir da implementação do programa “Olho Vivo”, houve uma queda de 53,7% na média anual de mortes de PMs em São Paulo. Entre 2017 e 2019 houveram 41 mortes (média de 13,6 por ano) e entre 2021 e 2023, foram 19 óbitos (6,3 mortes por ano). O projeto “Olho Vivo” consiste em sistema de câmeras corporais acopladas ao uniforme que grava a rotina de trabalho dos agentes de segurança.
Uma outra pesquisa converge para uma direção semelhante. A Fundação Getúlio Vargas em conjunto com a USP concluiu que as companhias da PM paulista com câmeras corporais tiveram uma redução de 57% no número de mortes decorrentes de intervenção policial, e que o instrumento não diminuiu a efetividade do trabalho da polícia.
Câmeras portáteis, contudo, não são uma bala de prata em questão de transparência e redução da letalidade de cidadãos e policiais. É o que afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo a socióloga, nenhum aparato tecnológico funciona sem uma decisão política por trás, no sentido de controlar excessos. A tecnologia é apenas uma ferramenta, e não opera milagres.
3. A discussão no Parlamento
Existem diversos debates sobre o assunto no âmbito do poder legislativo. Dois merecem destaque.
De um lado, há projetos de lei como o PL 3656/2021 com objetivo de regulamentar a implantação de sistemas de vídeo e áudio em viaturas e aeronaves das forças da segurança pública, além do registro das ações individuais de agentes federais por meio de câmeras corporais.
Em sentido contrário, tramitam propostas como o PL 606/2023, do deputado Sargento Gonçalves (PL-RN). A proposta defende a proibição da exigência de instalação de câmeras nas fardas de policiais militares, enquanto a medida não for estendida a todos os servidores públicos, civis ou militares. O projeto está para ser analisado pelas Comissões de Administração e Serviço Público; Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania e tramita em caráter conclusivo.
É dado que os argumentos defendidos pelas proposições não são neutros, embora devessem sempre considerar os interesses de toda a população. Chama atenção, entretanto, a justificação do projeto de lei do deputado Sargento Gonçalves sobre o tema. O objetivo do PL, segundo o parlamentar, seria “estabelecer que o videomonitoramento dos agentes públicos aconteça com limites, requisitos e critérios de isonomia”. Pelo texto, militares poderiam, inclusive, recusar o uso do equipamento sem sofrer penalidades.
O autor da proposta arremata: caso a Administração Pública entenda pela implementação do videomonitoramento individual da atividade de policiais, em teoria, seria igualmente necessário realizar o mesmo com outras atividades, como a médica, que já esteve envolvida em uma série de desvios, como os de estupro de pacientes grávidas.
O nível de sofismo do PL seria cômico, se não fosse trágico. Ora, condicionar o uso das câmeras corporais pelas forças de segurança, somente se todos os agentes públicos também o fizessem, com base no princípio da isonomia, faz pouco desse importante princípio constitucional. Fosse levada a sério, a ideia implicaria, por exemplo, que professores deveriam ter o mesmo salário de juízes, que o magistério necessitasse de armas de fogo tal qual policiais federais, além do gozo do foro de prerrogativa de parlamentares. Tudo isso em nome da isonomia, como defende o deputado Sargento Gonçalves (PL-RN).
4. Posição do judiciário
O Poder Judiciário também está enfrentando o tema. Em recente decisão, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luís Roberto Barroso, destacou que apesar da importância das câmeras em operações policiais, é necessário analisar os impactos orçamentários da sua adoção. O ministro se pronunciou em face de uma ação da defensoria pública do estado de São Paulo, exigindo que o governo providenciasse a imediata implementação dos dispositivos. Entretanto, sob a perspectiva do TJ-SP, o uso das câmeras geraria um custo anual exacerbado (R$ 330 milhões a R$ 1 bilhão de reais), o que, pela visão da Corte, acarretaria um gasto capaz de inviabilizar todo o orçamento reservado à segurança pública.
O ministro salientou que, com base na ADPF 635, o estado do Rio de Janeiro experimentou, mediante a instalação de GPS e câmeras corporais, uma redução de 70% da letalidade policial em um ano. Entretanto, Barroso ponderou que em São Paulo, seria necessária uma averiguação mais cuidadosa de viabilidade técnica-orçamentária para atender ao pedido da defensoria. Segundo o magistrado do STF, a via judicial não seria a mais adequada para tal intervenção, na medida em que as instâncias ordinárias ainda não teriam sido completamente esgotadas.
Vale ressaltar que concerne na ADPF 635, o plenário do STF decidiu por limitar as operações policiais realizadas no estado fluminense, bem como, também, determinar que, com vistas à proteção dos direitos humanos frente às forças de segurança, fosse elaborado um plano com o intuito de reduzir a letalidade policial. Nesse sentido, apesar da determinação por parte do Ministro Fachin para que o governo do estado elaborasse um plano para a instalação de câmeras, tal solicitação não foi inteiramente atendida, sendo apontado como justificativa a falta de prazo determinado. No entanto, o prazo estipulado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), autor da ADPF 635, para a entrega e funcionamento das câmeras foi de no máximo 15 dias.
Em relação ao posicionamento dos ministros, é importante lembrar que existe um enorme debate sobre a intervenção do judiciário em matéria de políticas públicas. A participação de juízes e tribunais nessa matéria esbarra na separação de poderes, na ideia de reserva do possível, na falta de especialização técnica (especialmente de alocação de recursos), entre outros.
5. Posição dos governadores
Longe de ser consenso entre as autoridades, a recomendação do uso de câmeras corporais vem gerando um intenso debate político. Desde a campanha eleitoral de 2022, Tarcísio de Freitas, por exemplo, expressou sua oposição ao uso das câmeras. Após assumir o cargo, optou por não remover os dispositivos, mas implementou uma redução nos recursos destinados ao programa.
Em entrevista ao programa “ Bom Dia São Paulo”, da TV Globo, o governador se posicionou incisivamente contra a implementação dos dispositivos corporais, colocando em xeque a efetividade da política. Segundo Tarcísio, a estratégia mais eficaz seria mais investimento em inteligência, ao invés de aumentar a fiscalização do trabalho desempenhado pelos policiais do estado.
Apesar do posicionamento do Palácio dos Bandeirantes, dados levantados pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle externo da Atividade Policial, do Ministério Público de São Paulo mostram que em 2023, foram registradas 366 mortes em decorrência de intervenção policial, 62 mortes a mais do que no ano anterior. Nesse contexto, as principais organizações da sociedade civil dedicadas à área, emitiram um comunicado, reforçando a necessidade da política para diminuir a letalidade policial.
"O sucesso de políticas de redução do uso da força letal, como o projeto 'Olho Vivo', depende de uma série de fatores, como a supervisão atenta do comando da Polícia Militar, o apoio político do governador e do secretário de Segurança Pública e a atuação de mecanismos externos e internos de controle. Quando o governo tira a prioridade das câmeras corporais, ele ignora as evidências científicas e aponta para um horizonte de políticas de segurança pública baseadas meramente na violência policial".
Fica claro que, não obstante os diversos estudos técnicos, dados oficiais, e manifestações a favor das câmeras portáteis pelas forças de segurança, a implementação da política segue sofrendo resistências.
6. Conclusão
O uso das câmeras corporais pelos agentes de segurança pública, como toda política pública, envolve, evidentemente, a articulação de diferentes níveis de governo e atores da sociedade civil, além do crescente envolvimento do Poder Judiciário. Esse último, em uma posição especialmente delicada de interferir no cenário, via que a princípio deveria ser excepcional. O tema, portanto, não é simples, como já era de esperar em um país como o nosso, em que a segurança pública é pauta crítica.
Os números, todavia, evidenciam a urgência na busca de soluções. As polícias brasileiras mataram um total de 6.430 pessoas durante o serviço ou em horário de folga em 2022. O número representa 17 vítimas por dia. Os dados são, mais uma vez, do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Durante o mesmo período, os casos de policiais mortos pelo país aumentaram 15%: de 151 mortes no ano de 2021 para 173 em 2022.
A falta de transparência resulta em desconfiança e no aumento da sensação de insegurança em relação às autoridades policiais, que não é pequena, conforme demonstram pesquisas recentes, como a realizada pelo Instituto Opinião. De acordo com levantamento, 48,9% dos brasileiros confiam pouco e 15,5% não confiam na Polícia Militar. Em relação à Polícia Civil os percentuais são próximos: 47,7% confiam pouco e 14,7% não confiam. O país também se divide quanto aos seus sentimentos em relação às polícias: 46,6% afirmam que têm mais confiança que temor das forças policiais estaduais (PM e Civil), enquanto 45,5% relatam que mais temem do que acreditam nos policiais.
Precisamos nos perguntar: a quem interessa que policiais não usem um instrumento que se mostrou exitoso em diversos países e estados brasileiros? O argumento de que a instalação das câmeras corporais é inviável do ponto de vista orçamentário, considera os prejuízos econômicos e sociais das mortes que poderiam ser evitadas com esses dispositivos? O risco que as imagens podem gerar para os agentes faz sentido, diante do sigilo das gravações? E mais: a implementação das câmeras significa excluir outros tipos de investimentos relevantes como inteligência policial? São reflexões inadiáveis, cujo enfrentamento salvará vidas.
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1 Disponível aqui.