Notas contemporâneas com Murillo de Aragão

Processo legislativo lôstrego

Para se entender como se fazem as leis no Brasil, é preciso conhecer expressões quase folclóricas: emendas "jabuti", trens da alegria, leis Frankenstein, jabuticabas, aprovações relâmpago, sessões fantasmas, urgência urgentíssima, dentre outras.

3/10/2023

Para se entender como se fazem as leis no Brasil, é preciso conhecer expressões quase folclóricas: emendas “jabuti”, trens da alegria, leis Frankenstein, jabuticabas, aprovações relâmpago, sessões fantasmas, urgência urgentíssima, dentre outras. 

Além das expressões do jargão de plenário, há que se entender o processo legislativo. Nas últimas semanas, projetos importantes foram aprovados de maneira tão célere que tramitação foi considerada relâmpago. O caminho entre um projeto de lei e sua aprovação não costuma ser fácil. 

Um estudo recente apontou que entre 1990 e 2019, o tempo médio estimado foi de 1.279 dias para aprovação de propostas de emendas constitucionais e 1.263 dias para projetos de lei. Existem projetos tramitando há mais de 30 anos no Congresso Nacional. 

Por outro lado, durante a tramitação relâmpago, a chamada minirreforma eleitoral foi aprovada em menos de 24 horas. Ou seja, o processo legislativo transita entre a paralisia total ou a aprovação relâmpago. Nenhumas das situações é ideal para a democracia. 

Em regime normal, a tramitação na Câmara passa basicamente por 5 etapas: 1. O projeto é apresentado e começa a tramitar primeiro na Câmara, a não ser que seja uma proposta de um senador ou de uma comissão do Senado. 2. O texto é distribuído para comissões temáticas. Se o projeto abrange temas de mais de quatro comissões de mérito, é criada uma comissão especial em substituição a todas. 3. Em cada colegiado, o parecer do relator é votado e depois encaminhado à comissão seguinte. 4. Se o projeto tiver impacto financeiro, é encaminhado à Comissão de Finanças e tributação. Todos passam por último pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC). 5. O projeto pode ter tramitação conclusiva já nas comissões e ir ao Senado, ou seguir para discussão e votação no plenário. 

Na tramitação em regime de urgência o processo é atalhado: O projeto é apresentado e começa a tramitar na Câmara, se não for apresentado por senador ou comissão do Senado. A proposta é distribuída para as comissões temáticas da Casa. O plenário da Câmara aprova um requerimento para o projeto tramitar em regime de urgência. Em geral, essa aprovação depende de acordo de líderes. O texto vai diretamente ao plenário, sem necessidade de passar por comissões. Os relatores nas comissões dão parecer oral durante a sessão, o que permite a votação imediata. A votação ágil de matérias importantes para o país, pode ser algo alvissareiro. Afinal, a morosidade costuma ser um das principais queixas da população em relação ao poder público. 

Contudo, todas as proposições necessitam de uma deliberação apropriada, antes de virarem lei. A Constituição Federal e o regimento interno das Casas Legislativas preveem uma série de mecanismos que deveriam garantir um debate adequado das propostas. Embora o tempo da política e o tempo do direito sejam diferentes, é preciso haver o que o doutrinador Carlos Coutinho chama de “princípio da deliberação suficiente”. 

Outros autores, como Leonardo Barbosa, chamam atenção para o conceito de “devido processo legislativo”, que estabelece exigências para que a tomada do processo legiferante ocorra com um mínimo de reflexão e respeito as balizas constitucionais e regimentais. 

O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre a matéria em diversas ocasiões. Na ADI n. 5.127, por exemplo, a Ministra Rosa Weber alçou o devido processo legislativo à categoria de “direito fundamental de titularidade difusa”. Nas palavras da relatora, trata-se do “direito que têm todos os cidadãos de (..) normas jurídicas produzidas conforme o procedimento constitucionalmente determinado”.

É importante relembrar que o Legislativo é por excelência um espaço de diálogo. Esse debate não se restringe apenas aos parlamentares, mas se estende a todos. Idealmente, esse engajamento deveria criar um sentimento de co-autoria das leis na população, o que resultaria em maior aderência e observância a legislação. 

A adoção de votações-relâmpago, especialmente para temas complexos e controversos, constitui uma violação do espírito que deve nortear o trabalho do Parlamento. Na democracia, atalhos são perigosos. Todos deveriam saber como as salsichas são feitas.

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Colunista

Murillo de Aragão é advogado, mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Sócio fundador da MDA Advogados e CEO da Arko Advice Pesquisas. Professor-adjunto da Columbia University e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Legislativo (IBDL).