Migalhas Superiores

Instauração do IRDR no STJ

Instauração do IRDR no STJ.

20/3/2020

Previsto na parte do Código de Processo Civil que dispõe sobre os processos nos tribunais e os meios de impugnação das decisões judiciais, o incidente de resolução de demandas repetitivas ("IRDR") é um "mecanismo processual coletivo proposto para uniformização e fixação de tese jurídica repetitiva"1 (demandas de massa), que se propõe a uniformizar, com celeridade, o entendimento de questão unicamente de direito – Federal, estadual ou municipal –, com o fito de assegurar a integridade da jurisprudência2.

Por tratar-se de novidade, o IRDR veio acompanhado de polêmicas. Cita-se aqui uma de inegável importância prática, que diz respeito ao órgão competente para processamento do referido incidente. Seria possível, por exemplo, instaurar o IRDR no âmbito de qualquer tribunal, inclusive dos tribunais superiores, ou haveria alguma restrição nesse sentido?

A doutrina especializada diverge sobre o assunto, especialmente porque o CPC não trata da matéria de forma explícita3. De um lado, há quem defenda, partindo da interpretação sistemática dos arts. 982, I, e 987 do CPC, que a competência para o processamento e julgamento do IRDR seria dos tribunais de justiça e tribunais regionais federais, não cabendo ao STF nem ao STJ tal proceder4. De outro lado, há aqueles que consideram possível a aplicação do IRDR também nos tribunais superiores ante a ausência de regra impeditiva expressa no CPC5.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento paradigmático, apreciou essa controvérsia, fixando a tese de que a instauração do IRDR diretamente no âmbito daquela Corte Superior é possível tão somente nos casos de competência recursal ordinária e de competência originária, desde que preenchidos os dois requisitos do art. 976 do CPC, vale dizer, desde que haja repetição de processos que discutam a mesma questão jurídica e exista risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica6.

No referido caso, duas pessoas físicas, ao postularem no STJ via sistema de peticionamento eletrônico, indicaram a classe "Suspensão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – SIRDR". Diante disso, o feito foi remetido à Comissão Gestora de Precedentes do STJ, que determinou a sua reautuação na classe "Petição – Pet", por entender que a postulação diria respeito à instauração originária de IRDR perante o STJ.

Com a redistribuição, o processo tornou concluso à ministra Laurita Vaz, relatora, que monocraticamente não conheceu do pedido, mediante a seguinte motivação: "Conforme disciplina dos arts. 976 a 987 do Novo Código de Processo Civil, o IRDR é instrumento processual com o inequívoco objetivo de imprimir celeridade e uniformização na solução de demandas de massa. Infere-se da sistemática adotada que o IRDR somente é cabível no âmbito dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, quando houver repetição de processos sobre a mesma questão de direito ou nas situações de risco à isonomia ou à segurança jurídica".

Os requerentes interpuseram agravo interno, sustentando o cabimento do IRDR diretamente no STJ, ao argumento de que a leitura dos artigos citados na decisão não levaria à conclusão inequívoca de que o IRDR seria privativo do âmbito dos tribunais de justiça e tribunais regionais federais.

A Corte Especial, por maioria de votos, negou provimento ao agravo interno, porém decidiu que o STJ pode, em caráter excepcional, apreciar IRDR instaurado diretamente no tribunal.

Primeira a votar, a ministra Laurita Vaz manteve seu posicionamento anterior, pela inadmissão da instauração do IRDR diretamente na instância especial. Além da referência ao enunciado n. 343 do FPPC, segundo o qual o IRDR "compete a tribunal de justiça ou tribunal regional", a relatora pautou seu voto em três fundamentos: (i) pela exegese do art. 976, § 4º, do CPC, seria fato impeditivo à instauração do IRDR nos tribunais locais a seleção de recursos especiais ou extraordinários repetitivos pelo STJ ou pelo STF, "exatamente para preservar a competência das mencionadas Cortes Superiores na fixação de precedentes obrigatórios dentro de mecanismos próprios com o mesmo objetivo de uniformizar a aplicação do direito"; (ii) o art. 987 do CPC apontaria para a competência exclusiva dos tribunais de grau recursal ordinário para o exame e julgamento do IRDR, "ao prever o cabimento de recursos especial e extraordinário contra o acórdão do IRDR, já com repercussão geral absolutamente presumida, garantindo assim o conhecimento e a análise da solução adotada para a questão de direito repetitiva pelas Cortes de Precedentes"; e (iii) o art. 982, § 3º, do CPC, revelaria a falta de competência do STJ para exame do mérito do IRDR, na medida em que tal dispositivo prevê que os legitimados a instaurar o incidente podem requerer, por uma questão de segurança jurídica, a "suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já instaurado".

Concluiu a relatora que a competência do STJ no procedimento do IRDR seria limitada a duas frentes, quais sejam, o exame de recurso especial manejado contra acórdão proferido por tribunal estadual ou tribunal regional federal e o exame de pedido de suspensão, em todo território nacional, de causas que versam sobre idêntica controvérsia jurídica repetitiva.

O ministro Napoleão Nunes Maia Filho votou em sentido oposto, opinando pela viabilidade da instauração do IRDR no STJ, com a ressalva de que tal incidente seria "apenas uma tática, uma maneira de abreviar julgamentos, porque a celeridade está eleita como um objetivo fundamental do processo".

Na sequência de seu voto, afirmou que bastaria, para dar vida a um IRDR, que houvesse, "em qualquer tribunal ou em qualquer juízo, mesmo primário, uma causa, seja originária, seja remessa ou seja um recurso", de modo que seria "excelente" a instauração do IRDR também no STJ, desde que não haja prévia afetação de recurso especial repetitivo sobre a mesma matéria de direito, tal como determina a lei.

Na sequência, o ministro João Otávio de Noronha proferiu o voto-vista vencedor, tendo sido designado relator para acórdão. Acompanhou a conclusão da relatora pelo desprovimento do agravo interno, mas por motivos distintos.

Preliminarmente, registrou que estava tendente a acompanhar o voto da relatora para "reconhecer que o IRDR seria um instrumento processual cabível apenas nos tribunais de segunda instância e que sua admissão originariamente por um tribunal superior implicaria esvaziar o conteúdo normativo de vários dispositivos que o regulamentam". Porém, disse que a divergência suscitada lhe trouxe novas reflexões, as quais modificaram por completo a sua conclusão inicial.

O ministro João Otávio de Noronha afirmou que não seria razoável que o microssistema para julgamento de demandas repetitivas instituído pelo CPC, voltado ao tratamento isonômico de questões comuns, fosse aplicável ao STJ apenas quando examina recursos especiais, ocasião em que desempenharia o papel de Corte Superior de Justiça, mas igualmente nos casos em que exerce sua competência originária e recursal ordinária, dado que nessas outras duas hipóteses "é possível que o STJ se depare com situações semelhantes àquelas que justificam, no âmbito dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais, a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas: efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica".

Feita essa ponderação, atestou a viabilidade da instauração do IRDR diretamente no STJ quando as ações de sua competência originária ou de revisão ordinária observarem os requisitos do art. 976 do CPC, sendo essa a exegese que, recorrendo à analogia, melhor se coadunaria com o espírito do CPC vigente.

A despeito desse entendimento, destacou que, no caso concreto, não seria possível aceitar o IRDR no STJ porque a demanda em que tal incidente processual incidiria – reclamação – não teria sequer ultrapassado o juízo de admissibilidade, na medida em que a petição inicial da reclamante foi liminarmente indeferida.

O ministro Luis Felipe Salomão aderiu ao voto divergente da lavra do Ministro João Otávio de Noronha, consignando, em apertada síntese, que "em se admitindo o IRDR para os processos de competência originária e para os recursos ordinários, estar-se-ia dando um passo adiante no julgamento das demandas repetitivas, atacando-se frontalmente a necessidade de dar a inúmeros sujeitos processuais uma mesma resposta estatal e atendendo simultaneamente à isonomia, à celeridade e à economia processuais e à segurança jurídica".

Ainda referente ao IRDR, convém chamar a atenção para o julgamento unânime do AREsp 1.470.017-SP, levado a cabo na 2ª Turma do STJ, sob relatoria do ministro Francisco Falcão, no qual restou decidido que não cabe a instauração de IRDR se já encerrado o julgamento da causa-piloto, mesmo que pendentes embargos de declaração.

O voto do relator deixa claro que, "após o julgamento do mérito do recurso do qual se extrairia a tese jurídica, não há que se falar em pendência do caso para fins de instauração do IRDR, diante do obstáculo à formação concentrada do precedente obrigatório", pois, do contrário, "haveria nítido prejuízo ao enfrentamento paritário da gama de argumentos – contrários e favoráveis à tese jurídica discutida –, bem como prejuízo à qualificação do contraditório, podendo afetar eventuais audiências públicas e participação de amicus curiae"7.

A interpretação que prevalece no STJ é no sentido de ser cabível a instauração do IRDR diretamente na Corte Superior, desde que preenchidos os requisitos legais e que se esteja diante de causa de competência originária ou recursal ordinária, assim como a questão jurídica a ser decidida não tenha sido afetada previamente para julgamento em recurso especial repetitivo. Além disso, deve-se atentar para o momento processual adequado à instauração do IRDR, pois o STJ, por meio de um de seus órgãos fracionários, já sinalizou que não será admitido o incidente em sede de embargos de declaração, depois de já julgado o mérito do recurso de que se tiraria a tese.

__________

1 ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista de Processo, vol. 240, 2015, p. 221-242.

2 AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um 'incidente de resolução de demandas repetitivas'. Revista de Processo, vol. 196, 2011, p. 237-274.

3 Vale registrar, todavia, que nas versões do Projeto de Lei n. 8.046/2010, que culminou na edição do CPC de 2015, o § 1º do art. 988 determinava, expressamente, que o IRDR deveria ser instaurado em tribunal de justiça ou tribunal regional federal.

4 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 447; WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória) – vol. 2, 16. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 728.

5 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil, Vol. 3. 13. ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 630.

6 AgInt na Pet 11.838-MS, rel. min. Laurita Vaz, rel. p/ acórdão min. João Otávio de Noronha, Corte Especial, j. 7/8/2019, DJe 10/9/2019. Votaram com o ministro João Otávio de Noronha os ministros Herman Benjamin, Jorge Mussi, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e Francisco Falcão. Votaram vencidos as ministras Laurita Vaz e Nancy Andrighi e o ministro Og Fernandes que negavam provimento ao agravo com fundamentos diversos, e o ministro Napoleão Nunes Maia Filho que dava provimento ao agravo.

7 AREsp n. 1.470.017-SP, rel. min. Francisco Falcão, 2ª Turma, j. 15/10/2019, DJe 18/10/2019.

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Colunistas

Eduardo Vieira de Almeida é advogado de Cesar Asfor Rocha Advogados. LL.M em Direito Bancário e Finanças pela Queen Mary University of London. Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Gustavo Favero Vaughn é advogado de Cesar Asfor Rocha Advogados. Mestrando em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-graduado em Processo Civil pela PUC-SP/COGEAE.