Há mais de 200 anos, os redatores do Code Napoléon de 1804, o de maior prestígio no século XIX, por representar a concretização dos princípios de "Igualdade, Liberdade e Fraternidade", assegurados após a Revolução Francesa de 1789, escreveram que boas leis civis constituem o maior bem que os homens podem dar e receber.
Outro código também de grande renome é o BGB, reconhecido pelo seu tecnicismo e precisão quase matemáticos, fruto do século XX, embora tenha sido gestado ao longo do século XIX.
Ambos são considerados os que maior influência exerceu no mundo jurídico, tendo sido imitados, de maneira intensa, desde a sua publicação, sobretudo o francês. Ambos sofreram, já há alguns anos, importantes reformas, visando modernizar alguns de seus artigos e acrescentar outros, relativos a matérias anteriormente não tratadas, pois todavia não faziam parte da cultura, do avanço da ciência e da nossa civilização.
Tendo em vista o fato, constatado pelos mais renomados comparatistas, tais René David1 e Rodolfo Sacco2 de sermos um dos sistemas nacionais que mais importa modelos jurídicos estrangeiros, utilizando-os de forma inteligente e adaptada às peculiaridades de nosso Direito, trazemos aqui alguns exemplos de reformas produzidas em códigos de grande importância, e também de recentes codificações, almejando possam servir para uma reflexão acerca dos resultados da atual reforma brasileira, produzida com tamanha urgência, inexplicável e inexplicada, sobretudo se comparada com as efetuadas em outros ordenamentos, objeto de longa e profunda reflexão de juristas e acadêmicos de grande destaque, em seus países de origem e no plano internacional.
Nosso objetivo é o de chamar a atenção dos membros da comunidade dedicada ao Direito como um todo, trazendo alguns exemplos concretos e recentes de grandes códigos, com longa vigência, recentemente reformados e assim, talvez, contribuir para a realização de uma reflexão verdadeiramente científica acerca do novo texto legal, deixando de lado fatores relacionados ao mundo não jurídico, onde, às vezes podem predominar valores outros, não científicos.
Nossas reflexões são de cunho científico, sem qualquer intenção de provocar polêmica ou ferir susceptibilidades. Iniciamos nossa exposição pelos códigos francês de 1804 e alemão de 1900, cujas reformas (autênticas reformas) foram objeto de inúmeros debates, levados a cabo anos antes de ser apresentado o resultado final nos ambientes acadêmico, político e legislativo, demandando longos anos de estudo, de comparações com outros códigos, com convenções internacionais, etc.
Nenhum deles foi reformado, ou atualizado, na forma açodada como ocorre em relação ao código reale, de reconhecida qualidade e extremamente inovador, tanto é que, até o momento, ainda não foi apreendido, pela nossa doutrina, o verdadeiro sentido e alcance do solidarismo, por exemplo, ali presente, e que foi adotado pelo atual legislador francês, quando da reforma do livro dos contratos, em 2016. Tampouco o tema da funcionalização do contrato e da empresa, inovando no pertinente à relatividade dos contratos, até então, um dogma, quase absoluto.
Ademais, a adoção do solidarismo representou uma forma de laicização do Código Civil brasileiro, que, anteriormente, em 1916, tinha por fundamento uma moral de tipo cristã, canonista, como a maioria de seus contemporâneos, enquanto o atual Código introduziu, mediante o solidarismo, uma forma de moral social, afastando, desta sorte, o voluntarismo e o individualismo contidos no texto de 1916, em conformidade com seus congêneres à época.
Iniciamos nossa contribuição pela primeira reforma do BGB, remontando ao ano de 1978, por iniciativa do então ministro da Justiça, que conclamou os meios universitários para elaborar sugestões de reforma. Dessa chamada resultaram três volumes, publicados entre 1981 e 1983. Em seguida, uma Comissão de Reforma foi instaurada em 1994, a qual restou quase inerte.
Apenas em 2000 foi reativada a Reforma das Obrigações, exposta em um volume de 630 páginas, publicado pelo ministério da Justiça.
O que nos interessa, neste momento, é relatar o quanto essa reforma agitou os meios acadêmicos na Alemanha, provocando a realização de inúmeros colóquios, artigos contra a reforma, considerados incendiários, publicados em importantes jornais, criticando acerbamente o teor de certos textos, considerando sua aprovação tão perigosa como passar de olhos fechados pelo sinal vermelho3. Muito escassas foram as manifestações favoráveis a essa reforma, na verdade, uma atualização, sendo modificados apenas em torno de 150 normas, tendo a reforma integrado, no BGB, muitas das soluções jurisprudenciais produzidas durante sua longa vigência, iniciada em 1900.
Após intensa e profícua discussão, no sentido de apresentar um texto de excelente nível, a reforma do BGB entrou em vigor em 2002. Trazemos esses detalhes, para mostrar que a crítica pode ser saudável, e, normalmente, ela é construtiva, e não deve suscitar reações do tipo da que recentemente foi exposta perante o Senado, de maneira anticientífica, por ilustrado membro da Comissão de Reforma, ao comentar artigo publicado em jornal de grande circulação, onde os seus autores, de maneira científica e respeitosa, anotaram alguns pontos que deixaram a desejar no texto do novel código.
Com relação ao outro grande código, o dos franceses, a doutrina nacional prefere denominá-la "reescritura", abrangendo o direito das obrigações e o dos contratos, aprovada em 2016.
No referente ao direito das obrigações, relata a professora Hélène Boucard4, que durante muitos anos ela foi desejada, inclusive já no ano do centenário do Code Civil, tendo sido novamente anunciada, quando do seu bicentenário. Importante referir que a necessidade de reforma foi percebida em França, em razão da transposição obrigatória, no direito interno, das diretivas europeias, tendo por objetivo regular, no espaço europeu, a circulação de pessoas, bens, capitais e serviços, as quatro liberdades, âmago do mercado comum.
Em 2004, Jacques CHIRAC, então presidente da França, durante a realização de um colóquio em homenagem ao bicentenário do Code, propôs fosse essa reforma realizada em um prazo de 5 anos. Dois grandes projetos, ambos relegados ao descaso por parte do poder político, embora elaborados por dois insignes juristas, Pierre Catala et François Terre, resultaram no olvido dessa reforma.
Finalmente, para tornar viável a necessária reforma, o governo francês optou por realiza-la mediante uma "Ordonnance", norma com valor de lei, em virtude de disposição expressa da Constituição, consistindo em técnica hibrida e expedita, sendo a preferida pelo governo, ao invés de recorrer ao processo legislativo ordinário5.
Essa Reforma teve por objeto o direito dos contratos e a teoria geral e a prova das obrigações, sendo a de maior extensão a dos contratos.
No relatório apresentado pela comissão de juristas franceses ao presidente da República chama a atenção a abertura aos direitos estrangeiros e às fontes supranacionais, demonstrando que a análise crítica, de cunho comparatista, tornou-se uma exigência, sobretudo em se tratando de uma reforma mais ampla de um Código Civil. Lamentavelmente, não se percebe, entre nós, essa mesma preocupação, demonstrada por outros legisladores nacionais, por parte dos membros da Comissão da nossa Reforma6, deixando de lado modelos inspiradores em outros países, que os vem adotando, em seus recentes códigos civis, inspirados, por exemplo, da Convenção de Viena de 1980, da qual nosso país é signatário, dos princípios unidroit e de outros instrumentos internacionais.
Exemplos emblemáticos dessa tendência mundial, encontramos nos códigos civis do Quebec, de 1991, do francês, como referido supra, no alemão de 1900, atualizado em 2002, no argentino, de 2016, no romeno, para cuja elaboração foi formada uma comissão em 1997, com início em 2009, entrando em vigor em 2011, e no projeto de código civil chinês, de longa maturação7.
O relatado demonstra que um bom código não se constrói em poucos meses e tampouco sem uma crítica profunda e científica, feita por vários segmentos da sociedade a ser regulada por essas normas.
Deve ser igualmente enfatizada, no projeto apresentado, a falta de cuidado em relação à elegância e correção da linguagem, na qual estão vazadas as normas integrantes do futuro Código Civil da nação.
Com efeito, o atual projeto, devido à urgência com que foi redigido, apresenta-se muito distante do requerido em matéria de redação jurídica, ao expor o texto de um Código Civil, onde deve predominar uma linguagem sóbria, correta e acessível ao extremo.
Sob esse aspecto, lembramos o conselho de Napoleão aos seus legisladores, no referente à linguagem do seu código, que deveria ser tão clara, que pudesse ser compreendida, inclusive pelo mais humilde camponês francês.
Aliás, já os comentaristas modernos do código francês de 1804, referindo-se à contribuição de Portalis8, afirmavam que a modernidade em sua forma e em seu fundo, a sua flexibilidade e plasticidade, são duas qualidades que asseguraram a sua longevidade!
Também escreveram que o objetivo da lei é o de fixar, de maneira ampla, as máximas gerais do Direito: Estabelecer a partir delas, os princípios fecundos, e não descer ao detalhe das questões que possam surgir em cada matéria9 (grifos nossos),
Nossos atuais legisladores deveriam ter presente, de maneira constante esse propósito, visando assegurar vida longa ao novel documento, fadado a regular, em seu conjunto, a vida privada do cidadão brasileiro, desde o seu nascimento até a sua morte.
Ao finalizar nossa contribuição, reiteramos ser ela desprovida de carácter crítico, representando, simplesmente, um comentário de cunho comparatista, tendo como modelos os mais recentes diplomas que sofreram atualizações importantes e igualmente, uma relação de recentíssimas legislações civis, elaboradas de acordo com os ditames desejados pelas atuais sociedades. Lamentavelmente, no presente momento, parece que nosso novo Código Civil, em todas as suas facetas, não logrou o objetivo colimado pelos seus legisladores, justamente pelo fato de ter sido elaborado com uma desnecessária urgência, fato que causou perplexidade no meio jurídico, em todos os seus segmentos.
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1 “Le droit brésilien jusqu’en 1950”, in Le Droit brésilien hier, aujourd’hui et demain, sous la direction de Arnold WALD et Camille JAUFFRET-SPINOSI, SLC, Paris, 2005.
2 V. Che cos’è il diritto comparato, Giuffrè editore, Milano, 1992; idem, “La circulation des modèles en droit comparé: quelles évolutions?”, in Le droit comparé au XXIè. siècle, enjeux et défis, Journées Internationales de la SLC, avril 2015. Direction Bénédicte Fauvarque-Cosson, ed. SLC, Paris, 2015, pp.197 e segs.
3 No original, Mit geschlossenen Augen bei Rot ueber die Ampel, publicado no Frankfurter Allgemaine Zeitung , 16 de junho de 2001, cit. por Claude WITZ, “Pourquoi la Réforme et pourquoi s’yintéresser en France” in La Réforme du droit allemand des obligations, SLC, Paris, 2004, pp. 11 e segs.
4 "La Réforme, de la Doctrine à l’Ordonnance", in La Réforme du Droit des Obligations en France, Journées franco-allemandes, sous la Direction de Reiner SCHULTZE, Guillaume WICKERT, Gerald MAESCH et Denis MAZEAUD, SLC, Paris, 2015.
5 Gerard CORNU, Vocabulaire Juridique, Paris, puf, 2011, pp. 710.
6 Embora o Brasil utilize, internamente, o instrumento “contrato”, sob todas as suas espécies.
7 A elaboração do Código Civil chinês foi decidida em março de 2015. Em 15 de março de 2017, foram adotados os seus princípios gerais, em vigor em outubro de 2017. Os outros livros foram adotados em 28 maio de 2020, entrando em vigor em 1º de janeiro de 2021.
8 Autor do Discours préliminaire au Projet de Code Civil, cit. por FENET, Recueil complet des Travaux préparatoires du Code Civil français, Paris, 1926, pp. 194-195.
9 V. André -Jean ARNAUD, cit. p.04.