Quando se fala em Direito da Moda é inevitável a insurgência daqueles preconceituosos que julgam o tema como algo fútil. Em geral tal impressão viciada deriva da carência de leitura e de compreensão de um fenômeno cultural1, histórico2 riquíssimo3, além de economicamente ser pertinente ao sistema da obsolescência4 programada5. Como já defendi anteriormente6, o oposto dessa visão não significa dizer que o Direito da Moda seja um ramo autônomo do Direito. Mas é necessário um olhar cuidadoso sobre o impacto e a importância que esse setor possui sobre a sociedade capitalista. À título exemplificativo de sua importância, segundo a ABIT (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção)7, cuida da segunda seara que mais emprega dentre as indústrias de transformação além de também responder pela primeira oportunidade laboral de muitos jovens profissionais. Não obstante, o Brasil é tido como a maior cadeia têxtil completa do Ocidente.
Recentemente, pondo fim a uma longa negociação recheada de imbróglios e especulações8, o grupo econômico de origem francófona LVMH (tido como o maior grupo de luxo do mundo) concluiu a aquisição da joalheria estadunidense Tiffany & Co9 (a famosa joalheria da Blue Box e criadora do lendário Tiffany® Setting). A aquisição teria atingido a cifra de 16,2 bilhões de dólares ombreando a maior incorporação societária do grupo LVMH. A título informativo, cabe mencionar que já fazem parte do grupo LVMH famosas sociedades empresárias titulares de marcas10 do mercado de luxo, tais como: Louis Vuitton, Moet Chandon, Christina Dior, Fendi, Givenchy, Rimowa, Guerlain, Bvlgari, TAG Heuer, Sephora, Belmond entre outras.
A negociação da aquisição da joalheria trouxe discussões importantes para várias áreas do Direito, para além do Direito antitruste. Em setembro de 2020, após o grupo LVMH anunciar que desistiria da aquisição, a joalheria estadunidense acionou o Poder Judiciário nos Estados Unidos requerendo a manutenção da aquisição nos termos pré-acordados.
No campo do Direito Administrativo, Internacional e Tributário (quiçá também no campo do Direito Internacional) poderia ser discutida a questão suscitada pelo grupo LVMH de que sua decisão teria como fundamento um pedido do Ministério das Relações Exteriores da França solicitando um atraso na negociação devido a possibilidade anunciada pelo governo estadunidense de impor barreiras alfandegárias à produtos de luxo franceses.
No campo do Direito Civil abriram-se discussões como a possibilidade de obrigar a LVMH, através da ação judicial proposta em Delaware, a cumprir os exatos termos acordados na fase pré-contratual (execução específica). De outro lado, o apontamento do grupo LVMH de que a Tiffany teria tido uma má gestão durante a crise provocada pela pandemia da Covid-19 poderia gerar discussões de aplicação da cláusula material adversa (MAC clauses). Acaso a demanda fosse travada em solo canarinho, aqui caberiam também as considerações sobre a liberdade de contratar11, se haveria entre as partes um contrato preliminar12 ou mesmo quais efeitos teriam o conteúdo daquilo pactuado na fase pré-contratual.
Entretanto, chama a atenção, dentre outros vários temas que podem ser estudados, a recomendação do juízo de Delaware de que as partes tivessem "discussões produtivas"13 antes da audiência. A recomendação, na prática, talvez tenha tido o efeito de uma cláusula de renegociação14 entre as partes. A situação de crise que levou as partes ao Judiciário, ainda que hoje saibamos que tenha tido um final feliz após negociações extrajudiciais, demonstra a importância da cláusula que é fundada na boa-fé objetiva15 e que busca lidar com eventuais alterações supervenientes do equilíbrio contratual.
As pontuais considerações aqui feitas demonstram que é necessário que o Direito encontre harmoniosamente a Moda de modo que os advogados possam estar preparados para atuarem no setor. A grandiosidade da indústria da moda impõe que o profissional consiga entender suas peculiaridades de modo que possa ofertar as melhores e mais adequadas soluções.
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1 "Mas, entre dois ou mais que se aproveitam da res communis omnium, inclusive do que é moda, há semelhança e traços distintivos. Nesses é que há de estar o cunho individual. O que corresponde ao destino do objeto ao que a moda exige, pode ser comum, e há de ser comum. Não se poderia patentear." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XVI. 4ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 422.
2 "This was the explicit basis for sporadic efforts to regulate luxury in dress in medieval Europe. In the fourteenth century "nothing was more resented by the hereditary nobles than the imitation of their clothes and manners by the upstarts ... Magnificence in clothes was considered a prerogative of the nobles, who should be identifiable by modes of dress forbidden to others." LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 209.
3 "Que a moda feminina propicia aos que a dirige e exploram novos feitios para os vestidos ou a roupagem é indiscutível. Que os desenhos e figurinos possam constituir obras artísticas no verdadeiro sentido da expressão é discutível, pois as leis de propriedade literária' e artística incluem nas que entram em seu regime para a devida proteção, as "obras de desenho" e as "obras de artes aplicadas". Mas o que é incontestável é que, estabelecidas pelos costureiros que ditam a moda em Paris, em Londres ou em Roma, as linhas do vestuário feminino em cada estação do ano, é da essência da moda que esta se generalize ou, melhor, se universalize." FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. Volume 7, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 67.
4 "Introducción y exposición de la problemática. Las denominadas "creaciones, de corta vida comercial», pueden ser definidas como prestaciones que siguen los dictados de la moda ("prestaciones de moda") y cuyo valor comercial generalmente se reduce a una sola temporada ("prestacionede temporada")." PÉREZ, Eva Domínguez. Competência Desleal a Través de Actos de Imitación Sismática. Navarra: Editorial Aranzadi, 2003, p. 412.
5 "Por que a Moda fala com tanta abundância do vestuário? Por que ela interpõe entre o objeto e seu usuário tamanha orgia de palavras (sem contar as imagens), tal rede de sentidos? A razão para isso, como se sabe, é de ordem econômica. Calculista, a sociedade industrial está condenada a formar consumidores que não calculam; se produtores e compradores de roupa tivessem consciência idêntica, o vestuário só seria comprado (e produzido) no ritmo, lentíssimo, de seu desgaste; a Moda, como todas as modas, baseia-se na disparidade das duas consciências: uma precisa ser alheia à outra." BARTHES, Roland. Sistema da Moda. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 15.
6 MAIA, Lívia Barboza. A Proteção do Direito da Moda pela Propriedade Intelectual. Revista da ABPI, nº 141, março/abril, 2016. Pp. 3-20. Disponível aqui, último acesso em 7/1/2020.
7 Disponível aqui, último acesso em 7/1/2020.
8 Disponível aqui e aqui, última visualização em 7/1/2020.
9 Disponível aqui, último acesso em 7/1/2020.
10 "Marca, ao invés de garantia estatal de qualidade, incorpora todas as características que o mercado atribui ao bem. Incorpora, portanto, a reputação do bem e é um poderoso veículo de transporte de preferências. Tão poderoso que, por vezes, é capaz por si só de concentrar as preferências, constituindo um poderoso meio de criação de monopólios." SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 140.
11 Numa acepção mais conservadora: "Quem diz contratual, diz justo, eis o lema da técnica contratual legada pelo milenário direito romano, ainda, com certos temperamentos, vigorante no direito comum. Se o contratante aceitou a convenção, a lesão que ela lhe possa ter causado foi por êle próprio querida, ou, em outros termos, sucedera apenas uma espécie particular de renúncia, e, então, não se poderá suspeitar de uma injustiça. Se alguém decide qualquer cousa a respeito de outro, é sempre possível uma injustiça, mas toda injustiça é impossível quando o homem decida para si próprio, para usar a expressão de Kant." ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do direito do comerciante à renovação do arrendamento. Imprensa Oficial de Minas Gerais: Belo Horizonte, 1940, p. 16. Numa acepção mais solidarista: “Como todo meio, a liberdade de contratar não existe 'em si', mas 'para algo', isto é: está permanentemente polarizada e conformada para os fins a que se destina.” MARTINS-COSTA, Judith. Novas reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. In Estudos de direito do consumidor. Coimbra, 2005. P. 49-109, p. 64.
12 Sobre o assunto: BIANCHINI, Luiza Lourenço. Contrato preliminar: conteúdo mínimo e execução. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.
13 Disponível aqui, última visualização em 07.01.2020.
14 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 278.
15 "A boa-fé surge, com frequência, no espaço civil. Desde as fontes do Direito à sucessão testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, nas obrigações, na posse e na constituição de direitos reais, a boa-fé informa previsões normativas e nomina vectores importantes da ordem privada." ROCHA, António Manuel da; CORDEIRO, Menezes. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Ed. Almedina, 2011, p. 17.