Texto de autoria de Pedro Marcos Nunes Barbosa
Ulrich Beck nos anos oitenta escreveu sobre a Sociedade de Risco1, tendo seu denso texto sociológico analisado alguns dos impactos da pós-modernidade no mercado de trabalho. Perpassadas mais de três décadas desde a publicação de seu clássico, vê-se que o autor alemão acertou ao asseverar que a cada ano o aperfeiçoamento da formação do trabalhador seria necessário; porém, mesmo àqueles que conseguissem lograr novos títulos (bacharelado, extensão, especialização, mestrado ou doutorado), talvez tal não fosse o suficiente.
Necessário, porém muitas vezes insuficiente, o ato de conquistar aprovação no exame de ordem faz com que aquele que ingressa na carreira de causídico possa sentir a rivalidade de mais de 1.179.2392 (um milhão, cento e setenta e nove mil e duzentos e trinta e nove) colegas inscritos e ativos. O mercado de trabalho pulula em quantidade de profissionais, ainda que nem sempre se possa dizer o mesmo em termos da qualidade profissional.
A própria dinâmica mutacional do Direito aloca seu profissional em constante incômodo, uma vez que os textoS3 e contextos estão em um contínuo processo de sístole e diástole; a hermenêutica é alterada e as normas, deste modo, também cambiam.
A pós-graduação, deste modo, acaba sendo uma exigência de parte dos escritórios de advocacia como uma forma de diferenciar o seu corpo de procuradores: (i) seja para aprimorar o jovem recém-formado; (ii) para atualizar o advogado com certa experiência; ou (iii) para informar o profissional que deseja expandir seus horizontes para um novo segmento do Direito.
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A partir da segunda metade dos anos 90 (logo, recentemente), uma série de Leis4 foram editadas para harmonizar o parâmetro legiferante interno para com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil com a constituição da Organização Mundial do Comércio. Deste modo, a eficácia social5 (e não a meramente normativa) foi se implementando passo a passo em direção a uma comunidade que precisa dar ênfase à tutela às criações imateriais.
Assim, se Francisco Clementino de San Tiago Dantas tinha razão ao afirmar que os bens de raiz, a propriedade imobiliária, prevalecia economicamente sobre os denominados bens móveiS6, tal assertiva precisa ser contextualizada a tal período histórico que antecede ao final do século XX. Hoje não7 é o Direito Imobiliário que concentra os litígios e os bens mais relevantes no bojo do Direito Privado, tal é o espaço do Direito da Propriedade Intelectual.
Discussões sobre a reprodução por streaming e a execução pública (com relação aos Direitos de Autor)8, os debates sobre liberdade de expressão e signos distintivos9 (especialmente no tocante às marcas), as abrasões entre acesso à saúde e o direito das exclusividades tecnológicas10 (peculiarmente no tocante às patentes de invenção), as disputas entre concorrentes que são criativos no modo de desviar a clientela um d’outro (atraindo o regime da concorrência desleal), o conflito de interesses entre os produtores de commodities agrícolas e os titulares de exclusivas sobre sementes (em curioso caso de sobreposição de direitos entre Cultivares e Patentes)11 se tornam mais corriqueiras, atraem as grandes bancas, passam a ser questionadas em concursos públicos e até objeto de publicação nos informativos de jurisprudência.
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Nesta esteira, se a bolha imobiliária afetou o ambiente jurídico setorial neste ciclo depreciativo econômico do qual o Brasil demora a se recuperar, o mesmo não pode ser dito com relação ao setor de Propriedade Imaterial. O ramo da propriedade intelectual cresce, cada vez mais se demanda mão de obra qualificada, mas a maioria das Instituições de Ensino Superior resiste a alocação de uma disciplina obrigatória – às vezes até eletiva – que delineie as linhas mestras do segmento12.
Com relação às especializações que direcionem o bacharel ao maravilhoso mundo da propriedade intelectual, ganham destaque as duas mais tradicionais – e constantes – escolas da PUC-Rio13 e da FGV/SP14. A primeira é mais antiga e fica no mesmo território geográfico que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (o que em geral atrai a jurisdição do TRF-2 que tem Varas e Turmas Especializadas na matéria), e a segunda no Estado economicamente mais pujante da Federação e no qual o Tribunal de Justiça conta com Varas e Câmaras especializadas em propriedade intelectual.
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Às vésperas da segunda década do século XXI se faz necessária a concentração no estudo e no ensino da temática do Direito que não seja voltada, apenas, à análise do passado e das tecnologias obsoletas. É preciso que se formem profissionais que saibam lidar com a imperatividade de (a) se avaliar ativos intangíveis, (b) dirimir contendas que dialoguem o direito antitruste com o trespasse que envolva bens intelectuais, (c) o controle sobre as propriedade intelectuais imiscuídas em recuperações judiciais e em falências, e (d) se editar instrumentos negociais que lidem com o aspecto cambiário, regulatório e redacional na transferência de tecnologia e nas franquias.
O Direito do século XXI é transdisciplinar e carece de um profissional gabaritado e em constante atualização.
*Pedro Marcos Nunes Barbosa é sócio do escritório Denis Borges Barbosa. Discente do Estágio Pós-Doutoral em Direito Civil da FADUSP, doutor em Direito Comercial (USP), mestre em Direito Civil (UERJ) e especialista em Propriedade Intelectual (PUC-Rio).
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vida profissional, e são, nessa medida, desvalorizados. De outro lado, tornam-se sempre mais necessários, para poder participar da luta pelos postos de trabalho cada vez mais escassos, e são, nessa medida, revalorizados" BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a Uma Outra Modernidade. Traduzido por Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 129.
2 Dados atualizados diuturnamente no sítio oficial da Autarquia Profissional, acessado em 17/2/2020, às 15h02.
3 Citando Max Solomon: "Três palavras adequadas do legislador e bibliotecas inteiras tornam-se em papel de embrulho" CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, 3ª Edição, tradução por CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes, p. 46.
4 Com destaque para lei 9.279/96 (Código da Propriedade Industrial), lei 9.456/97 (Lei de Proteção aos Cultivares), lei 9.609/98 (Lei que regula o ambiente dos Softwares), lei 9.610/98 etc.
5 "Cabe distinguir da eficácia jurídica o que muitos autores denominam de eficácia social da norma, que se refere, como assinala Reale, ao cumprimento efetivo do Direito por parte de uma sociedade, ao "reconhecimento" (Anerkennung) do Direito pela comunidade ou, mais particularizadamente, aos efeitos que uma regra suscita através do seu cumprimento. Em tal acepção, eficácia social é a concretização do comando normativo, sua força operativa no mundo dos atos" BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª Edição, Editora Renovar; Rio de Janeiro, 2009, p. 82.
6 "A propriedade imóvel é, portanto, interdependente e a isso se acrescente a importância econômica a respeito dos imóveis, indubitavelmente muito maior do que a dos móveis" DANTAS, Francisco Clementino de San Tiago. Programa de Direito Civil III, Direito das Coisas. Edição Histórica – Editora Rio; Rio de Janeiro, 1979, p. 124.
7 Ilustrativamente permita-se remissão a pesquisa de 2019 da Revista Forbes que aloca o signo Apple como a marca mais valiosa do mundo (US$205 bilhões), seguida da Google (US$167 bilhões) e da Microsoft (US$125 bilhões). Dificilmente se encontra um imóvel que importe em tais valores econômicos.
8 STJ, REsp 1.559.264.
9 STJ, Resp 1.548.849.
10 STF, ADIn 4234 e 5529.
11 STJ, REsp 1.610.728.
12 Ao conhecimento deste autor apenas o Departamento de Direito da PUC-Rio e a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco têm, ininterruptamente, disciplinas no bacharelado há mais de uma década.
13 Dados disponíveis acessado em 17/2/2020.
14 Dados disponíveis acessado em 17/2/2020.