Migalhas Patrimoniais

Lei da Liberdade Econômica e seu desprestígio à autonomia privada no Direito Contratual brasileiro

Lei da Liberdade Econômica e seu desprestígio à autonomia privada no Direito Contratual brasileiro.

16/4/2020

Texto de autoria de Eduardo Nunes de Souza

Muito já se comentou sobre as inovações trazidas pela assim denominada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (instituída pela lei 13.874/2019) e a reforma por ela promovida no Código Civil – debate este bastante fomentado pela polarização ideológica que assola o País nos últimos anos e pelo cenário político sui generis que viabilizou a edição da lei. A despeito de conter diversas previsões bastante positivas em outras áreas, no campo específico do direito civil a reforma revela, do ponto de vista técnico, grave desconhecimento sobre o estado da arte do direito contratual brasileiro imediatamente anterior ao seu advento.

De fato, imbuída de um viés alegadamente liberal, a lei precisou, em larga medida, construir, no plano discursivo, o próprio cenário (inexistente) de ameaça à autonomia privada que afirma combater. Tal constatação parte de sua própria designação, que remete aos grandes textos políticos que marcaram a história ocidental, como a Magna Carta de 1215 ou o Bill of Rights de 1689. Como prontamente lembrou a doutrina1, quem declarou a liberdade como direito fundamental na ordem jurídica brasileira foi a Constituição de 1988, que estipulou, em seu art. 170, os princípios fundantes da ordem econômica. Causa estranheza, assim, uma suposta declaração de direitos feita não apenas neste momento da História mas, mais ainda, por lei ordinária ou, pior, pela Medida Provisória 881/2019, que a antecedeu (sem sequer evidenciar a urgência que autorizaria a edição dessa espécie normativa).

O discurso da declaração de direitos, contudo, não parece ter sido acidental: voltou-se à tentativa de difundir uma ilusória noção de que a liberdade privada estaria sob ataque, dentre outras áreas, também no próprio direito civil brasileiro. A nova lei, assim, assumindo ares de quem funda uma incabível nova ordem constitucional, avocou-se o papel de instituir garantias para o que nunca esteve em ameaça no direito privado. O resultado prático, lamentável do ponto de vista da estrita técnica jurídica, foi a edição de normas como a do atual art. 49-A do Código Civil, que, ressuscitando disposição da codificação de 1916, enuncia a obviedade da autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos seus membros. Ignora-se, nesse processo, a valiosa lição de autorizada doutrina, que há muito preleciona não ser de boa técnica legislativa a enunciação de conceitos pela lei, cabendo à doutrina enunciá-los2.

A nova lei, na mesma direção, é pródiga na enunciação de autojustificativas como se de normas se tratasse. Eis um dos graves efeitos de se demarcar uma disputa ideológica pela via legislativa: confere-se força normativa a textos que, por sua própria redação, seriam mais adequados como simples cartas de intenções. Este é o caso, por exemplo, do atual parágrafo único do mesmo art. 49-A do Código Civil, introduzido pela reforma, que, ao positivar uma espécie de slogan em prol da livre constituição de pessoas jurídicas, dispõe que "a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos".

Qual é o valor normativo de uma disposição com esse teor? Como já anotado em doutrina, a norma teria sido editada em resposta, dentre outros fatores, à suposta desconfiança, por parte do Judiciário, contra a tendência da chamada pejotização (isto é, a constituição de pessoas jurídicas voltadas a viabilizar, para pessoas naturais, vantagens tributárias e de outras naturezas no exercício de suas profissões)3. Afirma-se, assim, que se cuidaria de uma regra de interpretação, voltada a defender a pessoa jurídica em face da progressiva ampliação das hipóteses autorizadoras da desconsideração de sua personalidade.

Caberia, contudo, questionar se, de fato, havia necessidade de semelhante defesa no direito pátrio, que nunca pareceu se opor às pessoas jurídicas voltadas à promoção de interesses legítimos unipessoais (pense-se, por exemplo, no ainda recente reconhecimento da EIRELI). Além disso, não se pode deixar de constatar que a norma do parágrafo único do art. 49-A do Código Civil em nada modifica as hipóteses em que o direito positivo brasileiro já autorizava a desconsideração da personalidade jurídica. Se tal era o propósito daquele dispositivo, melhor andou o codificador processual civil de 2015 quando transformou a desconsideração em incidente processual e privilegiou a formação do contraditório anterior à concessão da medida. Não é demais notar, ainda, que uma das searas em que com mais frequência se dá a desconsideração (o direito do consumidor) sequer foi tocada pela nova lei.

Para além de tais críticas, importa constatar que a redação conferida ao parágrafo único do art. 49-A não sugere uma efetiva regra de interpretação, limitando-se a proclamar a licitude das pessoas jurídicas que gerem empregos, tributos, renda e inovação. Assim, o dispositivo remete muito mais à técnica legislativa de uma norma voltada ao controle de validade dos atos jurídicos – quase como a sugerir que a regularidade de constituição da pessoa jurídica passaria a depender da demonstração da geração de empregos e dos demais "itens" constantes do rol. Nessa inconcebível interpretação, caberia indagar: tais requisitos seriam cumulativos? Qual seria a consequência do seu descumprimento? A nulidade do ato constitutivo? Seria esse descumprimento um indício autorizador da desconsideração da personalidade jurídica, de que trata o artigo seguinte do Código Civil? E a quem incumbiria o ônus da prova de que a pessoa jurídica gera (ou não gera) renda, tributos, emprego e inovação?

Em outros termos, não pudesse o intérprete amparar-se na garantia proporcionada pela coerência sistemática do direito civil (reiteradamente desafiada, mas não destruída, por leis de ocasião como a Lei da Liberdade Econômica), seria relativamente simples transformar uma norma voltada a afirmar a licitude de uma liberdade que sempre se presumiu lícita (como a de constituir pessoas jurídicas) em uma norma gravemente restritiva dessa liberdade.

Problema semelhante pode ser encontrado na norma do art. 113, §2º do Código Civil, que franqueia às partes pactuarem regras de interpretação negocial. Em sua literalidade, a norma enuncia o óbvio: o princípio da legalidade já permite presumir que as partes estão autorizadas a pactuar o que bem entenderem (ressalvadas, evidentemente, normas de ordem pública). Portanto, cláusulas voltadas à interpretação negocial sempre foram, em princípio, válidas no direito brasileiro4. A inusitada disposição bem poderia, contudo, criar o efeito inverso ao pretendido, e suscitar dúvida quanto à validade de tais cláusulas, sobretudo em contratos firmados antes do advento da lei. Teria o legislador evidenciado, a contrario sensu, uma despercebida nulidade dessas cláusulas no regime anterior à "declaração de direitos"?

Os exemplos anteriores, deliberadamente caricatos e voltados a evidenciar as interpretações absurdas à qual a atecnia da reforma abriu margem, não surpreenderiam se fossem encontrados, no futuro próximo, nas páginas de petições ou de decisões judiciais. Contra as incompreensões geradas pela positivação de normas garantidoras de liberdades que jamais haviam sido questionadas, contudo, conta o intérprete, como já se afirmou, com o direcionamento oferecido por uma metodologia, há muito defendida pelo direito civil-constitucional, deferente à axiologia da Lei Maior, atenta à sistematicidade dos institutos e contrária ao raciocínio meramente subsuntivo e à interpretação setorizada ou fragmentada do ordenamento. Presumindo-se a razoabilidade do legislador (ainda quando a realidade ponha em dúvida tal postulado) e afirmando-se a unidade lógica e valorativa do sistema, é possível preservar a coerência entre os institutos e superar os problemas criados pela reforma. O sistema do direito civil, assim, persevera, ainda quando tocado em seus pilares fundantes, como já ocorrera, por exemplo, poucos anos antes, em matéria de incapacidade civil5.

Mais graves, por isso, são outras inovações, por assim dizer substanciais, pretendidas pela Lei da Liberdade Econômica em matéria de direito civil – quase todas voltadas a atacar a principiologia que tem pautado o direito contratual brasileiro nos últimos anos. A reforma legislativa, neste ponto, vem tumultuar o processo (por si próprio lento e acidentado, mas de crucial importância) de constitucionalização do direito contratual, implementação do projeto solidarista previsto pela ordem jurídica de 1988 também para o direito privado.

Como descrito pela doutrina nas últimas décadas, uma relevante repercussão do reconhecimento da força normativa das normas constitucionais e da adoção, pelo constituinte de 1988, do princípio da dignidade humana como fundamento da República (art. 1º, III) foi a incidência do princípio da solidariedade sobre as relações privadas. Corolário imediato da cláusula geral de tutela da pessoa humana, o princípio da solidariedade é responsável por inserir, nos diversos campos do direito civil, a imperatividade do respeito aos interesses de terceiros e da coletividade no exercício de liberdades individuais6. Por tal razão, costuma-se atribuir à solidariedade a difusão de princípios como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio contratual, às vezes designados como "novos princípios contratuais"7.

Não por acaso, os dispositivos normativos que tratavam desses três princípios foram alvos preferenciais da nova lei – que, ao construir o já mencionado cenário de suposto ataque à autonomia privada, associa o solidarismo constitucional a um suposto óbice ao exercício da "liberdade econômica". Ignora-se, com isso, a compreensão, hoje amplamente difundida, de que liberdade e solidariedade atuam com igual grau de intensidade na promoção da dignidade humana, correspondendo a manifestações de idêntica grandeza desta última8. Ignora-se, ainda, que a implementação da solidariedade no direito contratual como meio de reduzir iniquidades e proteger contratantes vulneráveis tem sido há muito compreendida como pressuposto para a promoção de uma liberdade contratual efetiva – no que já se denominou, em feliz expressão, liberdade substancial9. Tal concepção é anterior, no Brasil, ao processo de constitucionalização do direito privado propriamente dito, datando já das primeiras leis que, ao longo do século XX, promoveram o chamado dirigismo contratual.

A reforma ignora, ainda, como já registrou a doutrina, o fato de que, dentre as liberdades civis, a livre-iniciativa não é prevista pelo constituinte como um fim em si mesmo, reconhecendo a Constituição Federal apenas o valor social da livre-iniciativa como princípio, o que já levou alguns autores a sustentarem até mesmo a inconstitucionalidade da MP 881/2019, posteriormente convertida na Lei da Liberdade Econômica10.

Nesse contexto, buscou a nova lei resgatar a autonomia privada supostamente restringida (mas, na realidade, efetivamente promovida) pelos princípios derivados da solidariedade social. O primeiro deles, e também aquele de aplicação mais bem-sucedida (ou, ao menos, mais difundida) no direito brasileiro, foi o princípio da boa-fé objetiva. Originalmente prevista no art. 113 do Código Civil como vetor interpretativo dos negócios jurídicos ao lado dos usos e costumes, em cláusula geral inovadora e de enorme impacto na hermenêutica contratual, a boa-fé passou a dividir espaço, após a reforma, no §1º do mesmo dispositivo, com critérios os mais diversos, alguns de todo incompreensíveis. O fato de o rol de cinco incisos do §1º repetir o critério da boa-fé que já se encontra previsto no caput (em aparente erro material por ocasião da conversão da MP 881/2019 na lei)11 suscita preocupante dúvida: teria o rol simplesmente enfatizado a boa-fé ou, em vez disso, teria instituído uma ordem de prevalência dos critérios hermenêuticos (na qual a boa-fé objetiva, uma norma de ordem pública, ocuparia somente a terceira posição)?

Aqui, deverá o intérprete socorrer-se do status constitucional da solidariedade para afirmar a cogência da boa-fé objetiva independentemente de estipulações contratuais, resguardando-se, em particular, do histórico legislativo da nova lei, no âmbito do qual se pretendeu, desde a MP 881/2019, afastar a incidência de normas de ordem pública das relações empresariais (como se esta fosse uma competência aberta ao legislador ordinário)12. Preocupa, ainda, em matéria de boa-fé objetiva, a disposição do art. 3º, V da Lei da Liberdade Econômica, que presume a "boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica". Uma das melhores soluções interpretativas para a previsão parece ser a de considerar que ela trata apenas de boa-fé subjetiva no exercício de atividades econômicas (solução deliberadamente voltada a reduzir a relevância prática da norma), já que uma inconcebível presunção da adoção dos standards de eticidade e cooperação que traduzem o princípio da boa-fé objetiva não apenas faria pouco sentido do ponto de vista processual (já que a observância desses parâmetros consiste muito mais em uma questão jurídica do que fática) como ainda esvaziaria, em grande parte, a relevância do princípio.

A nova redação conferida ao §1º do art. 113 do Código Civil merece críticas, ainda, no desserviço prestado à hermenêutica contratual. Ignorou o legislador a constatação, há muito feita por respeitável doutrina, de que muitas das tentativas de positivação de regras de interpretação contratual passaram a ser interpretadas, com o tempo, como meros conselhos para o julgador13. Tivesse levado tal advertência em consideração, evitaria a positivação da chamada interpretação contra proferentem, a qual, se encontra aplicações úteis em sua vetusta enunciação doutrinária, pode levar a resultados absurdos quando convertida em norma imperativa (sobretudo quando não se restringe sua aplicação às cláusulas ambíguas, como faz o art. 423 do Código Civil em matéria de contratos de adesão).

Lamenta-se, ainda, constatar que o §1º do art. 113 buscou abandonar a técnica das cláusulas gerais e retroceder em direção à técnica regulamentar, cuja falsa sensação de neutralidade e de maior segurança jurídica é, de longa data, denunciada pela doutrina14. Pior: nem mesmo logrou o dispositivo ater-se à técnica regulamentar, na medida em que acabou lançando mão de conceitos absolutamente estranhos à tradição jurídica brasileira e ainda pouco difundidos na doutrina, tais como a "racionalidade econômica das partes" (prevista pelo inciso V), cuja inconveniência já tem sido bastante criticada15. O mesmo inciso V ainda determina que o intérprete busque reconstruir qual teria sido a razoável negociação das partes ao tempo da celebração do contrato, expressão que sugere uma anacrônica (e, por isso, inconcebível) pesquisa da vontade real dos contratantes. A melhor interpretação da norma, por isso, parece ser a de que o critério balizador, neste caso, deve ser a causa, isto é, a síntese funcional de interesses objetivamente apreensível do contrato16.

Ainda no que diz respeito ao §1º do art. 113 do Código Civil, a interpretação do conteúdo negocial à luz do posterior comportamento das partes (prevista pelo inciso I) também inspira preocupação, eis que a norma não fez nenhuma ressalva quanto aos requisitos que seriam necessários para caracterizar, seja a novação tácita do acordo, seja uma hipótese de incidência de alguma das figuras parcelares da boa-fé objetiva (e nem mesmo se destaca que o comportamento unilateral de uma das partes não basta para a pretendida interpretação). Finalmente, o §2º do mesmo dispositivo, já comentado anteriormente, ao prever uma amplíssima liberdade para que as partes pactuem regras interpretativas "diversas daquelas previstas em lei", deve ser compreendido como aplicável somente aos casos disciplinados por normas dispositivas, e não por normas de ordem pública (cenário em que a inovação criada pela reforma restará, simplesmente, inócua).

E não apenas a boa-fé objetiva foi alvejada pela Lei da Liberdade Econômica. Também outros corolários da solidariedade, cujo desenvolvimento já era suficientemente tormentoso, foram objeto da reforma legislativa. Assim aconteceu, em particular, com a função social do contrato, princípio que era notório pelas controvérsias que suscitava e pelas dificuldades que enfrentava na identificação de uma eficácia autônoma (para além de disposições normativas específicas a ele creditadas)17. Trata-se, em termos simples, de princípio cujas repercussões práticas mostravam-se, no direito brasileiro, ainda bastante tímidas, quase sempre restritas à sua invocação retórica em sede jurisprudencial18. A reforma promovida pela nova lei, a despeito disso, preocupou-se em alterar a redação original do art. 421 do Código Civil, suprimindo a expressão "em razão", ao argumento de que o exercício da liberdade contratual nunca poderia ocorrer "em razão" de interesses outros que não os dos próprios contratantes.

Embora tal constatação já fosse feita por alguns autores do civil-constitucional19, a previsão de que a liberdade de contratar deveria ser exercida "em razão" e nos limites da função social do contrato sinalizava um posicionamento relevante, fruto do desenvolvimento histórico da noção de função social (particularmente nos direitos reais), que refletia a relevância do princípio como postulado hermenêutico a determinar a observância ao interesse social como limite interno, e não apenas externo, ao exercício de situações jurídicas individuais20. A despeito da reforma, o entendimento ainda se aplica ao direito brasileiro, devendo, mais uma vez, ser extraído do próprio princípio constitucional da solidariedade (e das disposições constitucionais que, ao disporem sobre a livre-iniciativa, fazem-no sempre em conjunto com seu valor social).

Finalmente, no que diz respeito ao princípio do equilíbrio contratual, também aqui a suposta ameaça à autonomia privada combatida pela Lei da Liberdade Econômica existiu apenas no discurso da lei. Como se sabe, dentre os princípios contratuais, o do equilíbrio foi aquele que menor eficácia autônoma encontrou até hoje no direito brasileiro, estando sua aplicação restrita, em grande medida, às hipóteses em que a lei expressamente autoriza a revisão contratual. A despeito disso, a reforma legislativa inseriu um parágrafo único no art. 421 do Código Civil, dispondo que, nas relações contratuais, "prevalecerá o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". Trata-se de mais uma tentativa de consolidar no Código Civil uma ideologia de Estado mínimo que se traduz em um (inexistente e desconhecido) "princípio da intervenção mínima"21. Ademais, a disposição em nada modifica as normas que autorizam a revisão contratual e não deveria, por isso, surtir grande repercussão. No limite, porém, a nova norma pode servir de subterfúgio para que o julgador passe a indeferir pedidos de revisão de forma vazia, sem a imprescindível aferição dos requisitos previstos por aquelas normas.

O novo parágrafo único, além disso, apresenta o efeito nocivo de popularizar a noção arcaica de que a intervenção judicial nos contratos seria atentatória à autonomia privada22. A rigor, que os contratos válidos são, em princípio, obrigatórios nos termos em que foram pactuados nunca se questionou, e qualquer entendimento ainda mais restritivo a respeito da revisão judicial apenas representa um retrocesso na implementação dos valores constitucionais em matéria privada. De mais a mais, não se vivia, até 2019, um cenário de revisão contratual desenfreada pelo Poder Judiciário, sendo certo que o setor em que a intervenção direta do julgador no conteúdo contratual se revela notoriamente mais intensa (o direito do consumidor) não chegou a ser afetado pela reforma. Nesse diapasão, a reforma legislativa vilaniza indevidamente a revisão judicial dos contratos, na contramão da doutrina contemporânea, que defende inclusive a ampliação das hipóteses de revisão judicial dos contratos como mecanismo de proteção e implementação do programa contratual em face de diversas vicissitudes (como o próprio inadimplemento)23.

Como se buscou comentar, a principiologia que pauta o direito contratual contemporâneo nunca constituiu ameaça à autonomia privada; muito menos se encontra na constitucionalização do direito civil um óbice à atividade empresarial. Ao contrário, a doutrina civil-constitucional sempre destacou o equívoco em se demonizar a autonomia privada24, verdadeira razão de ser do direito civil e manifestação da dignidade humana, afirmando que, na ordem jurídica brasileira, liberdade e solidariedade são noções complementares e tuteladas com igual intensidade. Contudo, não encontra amparo no direito pátrio um retorno à autonomia da vontade clássica, na qual contratantes vulneráveis não recebiam a tutela necessária, proporcional à sua concreta condição, e não gozavam, portanto, de liberdade efetiva. Com efeito, se muito ainda está por fazer em matéria de funcionalização do contrato, um longo caminho já foi percorrido desde as primeiras manifestações do dirigismo contratual – e o retrocesso é vedado em nossa ordem jurídica.

Preocupa, nesse sentido, constatar que, dentre as disposições da Lei da Liberdade Econômica, há vestígios da crescente consolidação dos chamados contratos "civis" e "empresariais" como categorias apartadas (por exemplo, no art. 421-A do Código Civil). Ora, não é por meio da consagração de novas categorias abstratas e estáticas que se poderá avançar no propósito de dar aos contratantes uma tutela adequada (nem deficitária, nem excessiva) à sua concreta vulnerabilidade. Ao contrário, o apego à estrutura e à categorização abstrata dos contratos tende a levar, com o tempo, a aplicações exageradas de remédios protetivos, particularmente pela jurisprudência (tendência já muito observada no direito do consumidor, e que deveria ser evitada caso se pretenda uma tutela efetiva à autonomia privada).

A criação da categoria normativa dos "contratos empresariais", assim, parece traduzir a tentativa de construir um âmbito do direito privado totalmente infenso à incidência da solidariedade social – postura que contraria, como já explicitado, não apenas a autonomia privada, mas a ordem constitucional como um todo. A unificação do direito obrigacional pelo codificador de 2002, neste particular, representou um avanço importante no combate a esse raciocínio, que não deveria ser desconsiderado. Espera-se que reformas legislativas futuras, se comprometidas com a promoção da autonomia, dediquem-se à construção de instrumentos que permitam ao intérprete dosar os remédios adequados à vulnerabilidade específica das partes em cada caso concreto – esta sim, uma pauta premente do direito contratual atual.

*Eduardo Nunes de Souza é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ, professor do Instituto de Direito da PUC-Rio e professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ.

__________

1 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. MP da "liberdade econômica": o que fizeram com o direito civil?. Conjur, 13.5.2019.

2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 71.

3 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A "pejotização" e a esquizofrenia sancionatória brasileira (parte 2). Conjur, 10.2.2020.

4 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 2), Conjur, 8.5.2019.

5 Como se analisou em SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Autonomia, discernimento e vulnerabilidade estudo sobre as invalidades negociais à luz do novo sistema das incapacidades. Civilistica.com, a. 5, n. 1, 2016.

6 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da solidariedade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

7 Por todos, v. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, cap. 2.

8 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade humana. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

9 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fins. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 49.

10 LÔBO, Paulo. Inconstitucionalidades da MP da “liberdade econômica” e o Direito Civil. Conjur, 6.6.2019.

11 V., a respeito, o relato de TARTUCE, Flávio. A “lei da liberdade econômica” (lei 13.874/19) e os seus principais impactos para o Direito Civil. Segunda parte. Migalhas, 15.10.2019.

12 Ilustrativo dessa tendência legislativa era o teor do art. 3º, VIII da MP 881/2019, que dispunha ser direito de toda pessoa "ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato".

13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: GEN, 2019, p. 424.

14 RODOTÀ, Stefano. Il tempo delle clausole generali. Rivista critica del diritto privato. Napoli: ESI, 1987.

15 TARTUCE, Flávio. A "lei da liberdade econômica" (lei 13.874/19), cit.

16 Como já se sustentou, em outra sede, a respeito de redação semelhante utilizada pelo art. 170 do Código Civil (SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, pp. 302-304).

17 A respeito, permita-se a remissão a SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato. Civilistica.com, a. 8, n. 2, 2019.

18 Para uma análise da aplicação jurisdicional do princípio, v. KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 13. Belo Horizonte: Fórum, jul.-set./2017

19 Por todos, v. RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In: Moraes, Maria Celina Bodin de. Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 305.

20 KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit.

21 SCHREIBER, Anderson. Alterações da MP 881 ao Código Civil - Parte I. Carta Forense, 2.5.2019.

22 TEPEDINO, Gustavo. A MP da Liberdade Econômica e o direito civil. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 20. Belo Horizonte: Fórum, abr.-jun./2019.

23 SILVA, Rodrigo da Guia. A revisão do contrato como remédio possível para o inadimplemento. Revista dos Tribunais, vol. 995. São Paulo: RT, 2018.

24 TEPEDINO, Gustavo. Evolução da autonomia privada e o papel da vontade na atividade contratual. Revista do Ministério Público, vol. 53, 2014.

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Coordenação

Thamis Dalsenter é coordenadora acadêmica do Instituto de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio. Professora de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio.