Texto de autoria de Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira
O Poder Judiciário tem enfrentado diversas questões sensíveis na área da saúde suplementar. Questões que demandam um conhecimento para além das normas jurídicas, pois dependem de outras áreas do saber, tais como a Medicina, a Biomedicina, a Economia, entre outras, já que envolve conhecimentos técnicos relativos à eficácia de determinados medicamentos, procedimentos e tratamentos médicos, informações atuariais sobre reajustes e estudos que englobem as consequências das decisões judicias para toda coletividade.
Os contratos de planos de saúde têm natureza jurídica dúplice, pois, para além dos aspectos patrimoniais envolvidos decorrentes até mesmo da contraprestação, têm como objeto e fim último a saúde e a vida humana, com impacto inclusive na coletividade. As ações envolvendo esses contratos de plano de saúde versam sobre diversos temas já enfrentados pelos tribunais inferiores e superiores. A título de exemplo, cabe citar os casos de cobertura de procedimentos, inclusive, técnicas de fertilização in vitro1, natureza taxativa ou exemplificativa do rol de doenças estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para fins de cobertura contratual obrigatória2, fornecimento de medicamentos experimentais3, home care4, negativas e/ou limitação de atendimento5, rescisão contratual6, reajustes etc.
Em estudo de junho de 2019, o observatório da Judicialização da Saúde Suplementar do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) apontou que, no Estado de São Paulo, registram-se mais de 21 mil ações, tendo o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2019, julgado 140 ações por dia contra planos de saúde. A maioria das ações, 47%, se referia à negativa de cobertura e 33 % delas ao reajuste de mensalidades7.
Mas seriam os agentes da saúde suplementar os únicos vilões e responsáveis por todos os danos sofridos pelos consumidores? É inegável que existem muitas falhas em todos os setores da saúde, que demandam maior proteção por parte do Estado das pessoas vulneráveis, por razões patrimoniais ou existenciais, especialmente quando se trata de pessoas com vulnerabilidade potencializada, ou seja, pacientes, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência.
Esses dados, a despeito de demonstrarem falhas no setor de saúde suplementar, demonstram a importância de unificar as decisões, a fim de garantir maior celeridade e de conferir maior segurança jurídica em matéria de grande impacto na vida de diversas pessoas que dependem dos planos de saúde, até mesmo devido à precariedade da saúde pública. Por isso, alguns casos envolvendo planos de saúde foram afetados, uns com decisões já transitadas em julgado, tais como os temas: 6108, 9529, 98910, 99011, e outros pendentes de julgamento, como o tema 1.016, ora comentado, e o 1.03412.
Nesse contexto, merece destaque o Tema 1.016, em fase de julgamento pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. A afetação decorreu de decisão do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, acolhida pela maioria, no Resp 1.715.798/DF, interposto contra a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que considerou abusivo o reajuste de mensalidade por mudança de faixa etária em plano de saúde coletivo, atraindo para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos seis Recursos Especiais (nºs 1.716.113, 1.721.776, 1.723.727, 1.728.839, 1.726.285 e 1.715.798). Caberá ao Colegiado decidir sobre: i) validade de cláusula contratual de plano de saúde coletivo, que prevê reajustes por faixa etária; e ii) ônus da prova da base atuarial do reajuste, dando ensejo à suspensão da tramitação de diversos processos em todo o território nacional (art. 1.037 do CPC). A afetação teve como fundamento a multiplicidade de demandas sobre esse tema e a relevância das questões judiciais a elas subjacentes, aplicando-se o disposto no artigo 1.036, do CPC.
A relevância da matéria e a complexidade técnica do reajuste por faixa etária fundamentaram a decisão do Ministro relator, Paulo de Tarso Sanseverino, de marcar audiência pública para uma análise mais profunda dos diversos fundamentos relevantes para a consolidação da tese jurídica sobre o tema (art. 1.038 do CPC), realizada em fevereiro de 2020, e que contou com a participação de pessoas representantes de várias entidades, tais como o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, a Federação Nacional de Saúde Suplementar, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Instituto Brasileiro de Atuária, a Associação Brasileira de Planos de Saúde, e a União Nacional das Instituições de Autogestão da Saúde, e pesquisadores etc13. Naquela ocasião, tive a oportunidade de apresentar aos ministros, na qualidade de expositora e pesquisadora da área de direito da saúde, alguns dos argumentos que exponho a seguir.
Independentemente de o caso ainda se encontrar sub judice, cabe asseverar que a questão posta deve ser lida sob uma perspectiva dogmática à luz da hermenêutica civil-constitucional, considerando todo o arcabouço normativo-regulatório pátrio. O objetivo é fazer uma interpretação que equilibre os interesses merecedores de tutela. De um lado, os interesses econômico-financeiros dos prestadores de serviço de assistência à saúde (Operadoras de Saúde) respaldados na livre iniciativa ancorada no Texto Constitucional (arts. 1º, IV, 170, III e 199), e, de outro, o dos beneficiários do plano de saúde, em especial das pessoas idosas que demandam maior proteção em razão de sua vulnerabilidade e da necessidade de proteção dos direitos fundamentais à vida e à saúde, todos assegurados na Constituição Federal (arts. 1º, III, 6º, 196 e 197).
O contrato de plano privado de assistência à saúde é um contrato de prestação de serviço, sinalagmático, oneroso, de adesão, formal, de execução diferida, por prazo indeterminado, comutativo, e tem natureza jurídica securitária, o que atrai a aplicação dos mesmos princípios que incidem nos contratos de seguro no que se refere aos aspectos técnicos, econômico-financeiros e atuariais. Isso porque os planos de saúde constituem e administram um fundo comum distribuído por meio de contratos individuais ou por grupos constituídos para alocar cada beneficiário, de acordo com as cláusulas contratuais, receita suficiente para cobrir os riscos contratados, o que confere o caráter de mutualidade. Ocorre a divisão da sinistralidade, em que se busca o equilíbrio entre a contribuição agregada e a utilização de procedimentos médicos/hospitalares pelos beneficiários/segurados. Logo, a interpretação deve se dar considerando essa peculiaridade, pois se qualifica como um contrato relacional, e, por isso mesmo, se deve garantir o equilíbrio das prestações por meio da confiança mútua, da boa-fé e da cooperação, de forma a tutelar as legítimas expectativas das partes contratantes.
A cláusula de reajuste por faixa etária deve ser interpretada à luz dos princípios contratuais, não só os clássicos, que estabelecem a liberdade de contratar, a autonomia, a obrigatoriedade dos contratos e a relatividade, mas também com as diretrizes de proteção da dignidade da pessoa humana (igualdade e solidariedade), a boa-fé objetiva, a função social e o equilíbrio contratual, e todo o arcabouço normativo-regulatório vigente.
Nos contratos de planos de saúde coletivo, de trato sucessivo e por prazo indeterminado, o valor da mensalidade é calculado com base em um complexo critério econômico-atuarial. É feito todo um cálculo considerando os custos dos serviços médico-hospitalares cobertos e utilizados pelos beneficiários, e os riscos envolvidos a fim de garantir o pagamento das despesas médicas de todos os contratantes que venham a necessitar dos serviços. E, por ser um contrato de longa duração, há a previsão da cláusula de reajuste para que não haja desequilíbrio nas prestações/mensalidades, onerando uma das partes para além do pactuado. . Pois o equilíbrio só se sustenta com o reajuste das mensalidades (anual e por faixa etária), o que encontra respaldo não somente na lei (Leis nº 9.656/98 e nº 10.741/2003), mas também nas resoluções expedidas pelo órgão regulador do setor de saúde suplementar (Resolução CONSU nº 06/1998, RN 63/2003 e RN 441/2018 da ANS). Nessa seara, é importante compreender o sistema desenvolvido para o financiamento dos planos de saúde, que se dá na forma mutual, em regime de repartição simples, não havendo reservas financeiras específicas em nome de cada beneficiário. É, portanto, um sistema de solidariedade intergeracional: todos contribuem para um fundo comum, administrado pela operadora, do qual serão obtidos os recursos para custeio das despesas médicas de todos os beneficiários.
Logo, a cobrança de mensalidades maiores se justifica pelo incremento natural dos riscos subjetivos e objetivos aos quais estão expostos, o que não viola o princípio da igualdade, eis que o aumento equilibrado tem como consequência a efetivação da solidariedade, em virtude da diluição dos riscos e da ampliação da malha de beneficiários, evitando exclusões discriminatórias. Isso, por sua vez, não afasta um controle dos reajustes pelo órgão regulador (ANS), nem a observância da boa-fé objetiva por ambas as partes envolvidas.
Portanto, o aumento deve ser feito de forma razoável, fundamentada, sem abusividade, observados os critérios legais (arts. 14, 15, 16, todos da Lei dos Planos de Saúde e art. 15, § 3º do Estatuto do Idoso) e regulatórios (art. 2º da Resolução 6/1998 do CONSU e art. 3º da RN 63/2003 da ANS). Logo, é perfeitamente aplicável para os planos de saúde coletivos a mesma tese já sedimentada sobre os planos individuais: "O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores; e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso"14.
O contrato de assistência à saúde de plano coletivo tem seus efeitos não só para o grupo de beneficiários que ele contempla, mas gera reflexos diretos e indiretos para toda a coletividade, haja vista a sua relevância social e econômica, que abrange milhares de pessoas que necessitam do serviço suplementar de saúde, por isso a importância de uma análise consequencialista para a decisão judicial que enfrenta tema tão relevante e de ampla repercussão. A decisão deve ser pautada nos novos paradigmas interpretativos trazidos pela Lei de Liberdade Econômica, quando não há relação de consumo e que conduzem à intervenção mínima e à excepcionalidade da revisão contratual, com ênfase na autonomia privada, na boa-fé objetiva e na função social. É preciso ainda considerar a relevância da motivação em casos como esses, ou seja, se encontram fundamento também na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, tudo de forma a garantir maior segurança jurídica e evitar consequências ruins geradas por determinadas decisões, o que está em consonância com o art. 93, IX, da CF e art. 489 e 927, ambos do CPC.
Portanto, os agentes da saúde suplementar não são nem vilões, nem heróis, nem amigos, mas são essenciais para uma parte da coletividade, o que impõe ao órgão regulador a árdua tarefa do controle em prol da sociedade, da saúde e da dignidade da pessoa humana.
Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é professora do Instituto de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Advogada.
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1 Em decisão recente, de 20 de fevereiro de 2020, os ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, conheceram parcialmente do Resp nº 1.823.077 – SP e, nesta parte, deram provimento a fim de julgar improcedente o pedido inicial para custeio pelo plano de saúde de tratamento por meio de fertilização in vitro, que não estava previsto expressamente no contrato, observado o disposto no artigo 10, III e IV, da lei 9.656/98, e nas resoluções normativas 167 e 192, da ANS. STJ, REsp 1823077/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 20/2/2020, DJe 3/3/2020. Acesso em 11 março de 2020.
2 Em dezembro de 2019, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proclamou, por unanimidade, no âmbito do Resp. 1.733.013/PR, a natureza taxativa do rol de doenças estabelecido pela ANS, colocando fim à controvérsia. STJ, REsp 1733013/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 20/2/2020. Acesso em 11 março de 2020.
3 STJ; Recurso Especial 1.769.557/CE: Relator(a): ministra Nancy Andrighi; Terceira Turma; Julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018. Acesso em 11 de março de 2020.
4 STJ, Recurso Especial 1.537.301/RJ, Rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 18/8/2015, DJe 23/10/2015. Acesso em 11 de março de 2020.
5 STJ, Recurso Especial 1.764.859/RS, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 6/11/2018, DJe 8/11/2018. Acesso em 11 de março de 2020.
6 STJ, Recurso Especial n. 1.346.495/RS: Rel. ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11/6/2019, DJe 2/8/2019. Acesso em 11 de março de 2020.
7 Disponível aqui. Acesso em 9 de fevereiro de 2020.
8 Tema 610 – "Na vigência dos contratos de plano ou de seguro de assistência à saúde, a pretensão condenatória decorrente da declaração de nulidade de cláusula de reajuste nele prevista prescreve em 20 anos (art. 177 do CC/1916) ou em 3 anos (art. 206, § 3º, IV, do CC/2002), observada a regra de transição do art. 2.028 do CC/2002".
9 Tema 952 – "O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso".
10 Tema 989 do STJ - "Nos planos de saúde coletivos custeados exclusivamente pelo empregador não há direito de permanência do ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa como beneficiário, salvo disposição contrária expressa prevista em contrato ou em acordo/convenção coletiva de trabalho, não caracterizando contribuição o pagamento apenas de coparticipação, tampouco se enquadrando como salário indireto".
11 Tema 990 do STJ - Tese "As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA".
12 Tema 1034 do STJ - Questão submetida a julgamento: Definir quais condições assistenciais e de custeio do plano de saúde devem ser mantidas a beneficiários inativos, nos termos do art. 31 da lei 9.656/1998.
13 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2020
14 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2020.