O direito à identidade
Aprendemos logo no início da faculdade que onde há sociedade, há Direito, e vice-versa. Trata-se de uma relação inescapável. Sendo assim, e considerando que a sociedade está em constante mudança (evolução?), o Direito também muda constantemente.
Uma das principais mudanças pelas quais passou o Direito Civil nos últimos tempos, agora já não mais representando novidade a ninguém, é a chamada despatrimonialização. Sobretudo por conta da supremacia da dignidade da pessoa humana, prevista como princípio supremo em diversas constituições do Ocidente, no pós-guerra, inclusive a brasileira, o Direito Civil deixou de dar ênfase às situações patrimoniais.
Uma dessas marcas é a previsão de um tópico exclusivo para tratar dos direitos da personalidade no CC/02. Esses direitos deixaram de ser tutelados apenas indiretamente, por meio da imposição de sanções civis ou penais a ofensas ou ameaças a eles, como ocorria sob a égide do CC/16, e passaram a ser previstos e, consequentemente, tutelados de forma direta, preferencialmente de modo preventivo.
Consoante lição de Menezes Cordeiro, condicionamentos histórico-culturais determinam a possibilidade de serem isolados atributos da personalidade. 1 Por vezes, como sabemos, esses condicionamentos levam à positivação de certos direitos, como ocorreu com os direitos ao nome e à vida privada no CC/02. Outras vezes, eles não permitem que se chegue a esse ponto, de tal modo que o reconhecimento de um direito da personalidade depende da aceitação da ideia de que certo atributo possa ser tutelado, independentemente dessa positivação.
No Brasil, aparentemente, prevalece a noção de que existe norma que permite a tutela a personalidade como um todo. Maria Celina Bodin de Moraes, por exemplo, diz que o art. 1º, inc. III, da CF/88, a que nos referimos acima, é justamente a cláusula geral dos direitos da personalidade. 2 Fernanda Cantali, por sua vez, afirma que o art. 12 do CC é a norma que prevê o direito geral da personalidade. 3
Sob esse prisma, o direito à identidade pode ser extraído do nosso sistema jurídico como um direito da personalidade. Não apenas o direito à identidade com viés publicista, para fins de controle e organização do Estado, como é o caso do nome, mas outros aspectos dessa identidade, como é o caso da identidade religiosa, enquanto visão de mundo (Weltanschauung) que ela também representa.
A propósito, vale mencionarmos uma lição de Charles Taylor, professor emérito de Filosofia e Ciência Política na Universidade de McGill, acerca da identidade de que estamos tratando:
“Minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma decisão”. 4
Um caso emblemático de identidade religiosa
Em virtude das limitações deste espaço, vamos nos limitar a dizer que a identidade religiosa é uma das espécies de direito à identidade porque representa justamente uma visão de mundo, consoante mencionamos acima, ou seja, uma lente através da qual a pessoa pensa e toma as suas decisões.
Dito isso, examinemos, à guisa de exemplo, o caso envolvendo a “Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura”, doravante denominada apenas “associação”, e as “Católicas pelo Direito de Decidir”, doravante chamada apenas “coletivo”.
A associação ajuizou ação objetivando impedir os integrantes do coletivo de usarem justamente o termo “católicas”, uma vez que defenderiam a descriminalização e legalização do aborto. Em suma, como elas não seriam católicas, não poderiam autointitularem-se desse modo.
Em primeira instância, o processo foi extinto por ilegitimidade ativa, visto que a referida associação não teria legitimidade para postular isso em juízo; somente a autoridade eclesiástica o teria.
Julgando a apelação interposta pela referida associação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento ao recurso 5 para, no mérito, proibir o supracitado coletivo de utilizar o termo “católicas”, pois estariam fazendo uso dele de forma abusiva, nos termos do art. 187 do CC.
Reproduzimos abaixo breve trecho da ementa apenas para facilitar a compreensão do leitor:
“EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA – ASSOCIAÇÃO – Abstenção do uso da expressão “Católicas” no nome – Atuação e finalidade da associação requerida que revelam PÚBLICA E NOTÓRIA incompatibilidade com os valores adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral – Violação à moral e bons costumes, havendo evidente contrariedade ao bem e interesses públicos, valores expressamente tutelados pela LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS (Inteligência do artigo 115 da lei 6.015/73, que inclusive veda o registro de ato constitutivo de pessoa jurídica em tais circunstâncias) - Preservação de tal nome em associação que para além de ferir notoriamente o Direito Canônico, se traduz em inegável desserviço à sociedade, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade - Incidência do art. 5º da LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO, segundo o qual na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum - Violação, ademais, ao artigo 7º do DECRETO Nº 7.107/2010, segundo o qual A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ASSEGURA, NOS TERMOS DO SEU ORDENAMENTO JURÍDICO, AS MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA GARANTIR A PROTEÇÃO DOS LUGARES DE CULTO DA IGREJA CATÓLICA E DE SUAS LITURGIAS, SÍMBOLOS, IMAGENS E OBJETOS CULTUAIS, CONTRA TODA FORMA DE VIOLAÇÃO, DESRESPEITO E USO ILEGÍTIMO - Liberdade de expressão que não estará minimamente prejudicada, podendo a associação requerida defender seus valores (inclusive o aborto) como bem entender, desde que utilize nome coerente, sem se apresentar à sociedade com nome de instituição outra que adota pública e notoriamente valores flagrantemente opostos - Titular de direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes que também pratica ato ilícito (ARTIGO 187 DO CÓDIGO CIVIL).”
A decisão chamou a atenção de vários operadores do Direito, tanto que foi objeto de artigo escrito neste mesmo site em 4/11/20. Em artigo intitulado “No Estado laico, juiz não pode atuar como intérprete da fé”, Maíra Fernandes teceu críticas à decisão tomada.
Mas o caso não terminou por aí. Foi interposto novo recurso e em 30/8/22 o STJ reverteu o julgamento acima para reafirmar o entendimento do juízo de primeiro grau, isto é, que a associação não tem mesmo legitimidade para ajuizar a ação postulando o não uso do termo “católicas”.
Destacamos, novamente, um trecho da ementa do julgado para a melhor compreensão do leitor:
“5. Na hipótese dos autos, carece a parte autora de legitimidade ativa na medida em que inexiste qualquer relação jurídica de direito material entre as partes que justifique o ajuizamento da presente ação, sendo certo que, ao menos a partir do exame abstrato das alegações deduzidas na inicial, quem teria, em tese, ligação direta com o direito material deduzido em juízo não seria a associação de fiéis, mas a própria organização religiosa, que é pessoa jurídica de direito privado autônoma e titular da própria esfera jurídica, nos termos do inciso IV, do art. 44, do Código Civil.” 6
Na sequência, outro artigo sobre o tema foi publicado neste site, a demonstrar que se trata de matéria relevante no âmbito jurídico
Uma breve reflexão a partir do julgado
Esse caso nos permite pensar um pouco sobre o direito à identidade enquanto direito da personalidade.
Segundo Appiah, as identidades coletivas constroem os rótulos dos quais nos apropriamos e a partir dessa apropriação construímos aquilo se incorpora à nossa identidade individual. Dito isso, ele questiona se seria possível aceitar que apenas os próprios titulares da identidade pudessem defini-la. Por exemplo, somente negros poderiam definir o que é ser negro (significado do rótulo e suas circunstâncias)? 7
A sua resposta é negativa. Por primeiro, pois o reconhecimento alheio é sempre fonte de significado (problema externo). Por segundo, pois ainda que se aceitasse isso, o problema não restaria substancialmente resolvido, visto que os titulares da identidade precisariam do reconhecimento dos demais titulares (problema interno). E se houvesse divergência entre esses titulares? 8
Expurgados alguns que certamente não poderiam utilizar o rótulo porque não se adequariam ao conceito da maioria, o problema passaria a ser entre essa maioria e a outra minoria remanescente, e assim sucessivamente. É um círculo vicioso que conduziria a um esvaziamento do rótulo.
Sendo assim, malgrado possa haver conflito interno entre os pretensos titulares do rótulo que se pretenda tratar, no caso, de cunho religioso, não seria dado a alguns, ainda que componham a maioria, simplesmente definir quem e por que alguns devem integrar o grupo.
Cuida-se de um dilema que poderíamos chamar de “bacamartiano”, em homenagens ao médico psiquiatra do famoso livro de Machado de Assis, O Alienista, que de tanto internar as pessoas no manicômio que havia criado, acaba esvaziando a cidade.
Conclusão
Uma das principais características dos direitos da personalidade é que eles, em geral, segundo a doutrina, têm natureza erga omnes; são considerados absolutos. Entenda-se: geram obrigação passiva universal, assim como ocorre com os direitos reais.
Ocorre que, no caso de certas espécies de direito à identidade, nomeadamente aquelas ligadas à supracitada visão de mundo, pode não haver exclusividade na titularidade do direito ao uso de determinado rótulo.
Devem ser aceitas divergências internas entre os variados integrantes do grupo, somente sendo cabível cogitar de abuso de direito ligado ao direito à identidade, como é o caso da liberdade de expressão conectada ao direito à identidade religiosa, se ele é absolutamente claro e induvidoso 9. Do contrário, todos devem ter lugar de fala.
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1. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil. 5. ed., rev. e atual.: Pessoas. Lisboa: Almedina, 2019, v. IV, p.107.
2. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 125.
3. CANTALI, Fernanda. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 94/95.
4. TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Tradução Adail. U. Sobral e Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 1977, p. 44.
5. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Apelação Cível n. 1071628-96.2018.8.26.0100 – 2ª Câmara de Direito Privado – rel. Des. José Carlos Ferreira Alves - j. 20/10/2020.
6. Brasil. Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial n. 1.961.729-SP – 3ª Turma – rel. Minª. Nancy Andrighi. j. 30/08/2022.
7. APPIAH, K. Anthony. The ethics of identity. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 64/65.
8. APPIAH, K. Anthony. The ethics of identity. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 106/110.
9. “São facilmente criticáveis aquelas concepções que, para salvar a noção de direito subjetivo, identificam, no poder da vontade que se exprime de forma arbitrária e absoluta, o princípio; e, nos limites, a exceção. Por exemplo, quem é proprietário de um terreno só pode construir a determinadas distâncias da rua e das estradas; (...) O enfoque não é correto. No vigente ordenamento não existe um direito subjetivo – propriedade privada, crédito, usufruto – ilimitado, atribuído ao exclusivo interesse do sujeito, de modo tal que possa ser configurado como entidade pré-dada, isto é, preexistente ao ordenamento e que deva ser levada em consideração enquanto conceito, ou noção, transmitido de geração em geração. O que existe é um interesse juridicamente tutelado, uma situação jurídica que já em si mesma encerra limitações para o titular. Os chamados limites externos, de um ponto de vista lógico, não seguem a existência do princípio (direito subjetivo), mas nascem junto com ele e constituem seu aspecto qualitativo. O ordenamento tutela um interesse somente enquanto atender àquelas razões, também de natureza coletiva, garantidas com a técnica das limitações e dos vínculos. Os limites que se definem externos ao direito, na realidade não modificam o interesse pelo externo, mas contribuem à identificação da sua essência, da sua função”. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.121)