Migalhas Notariais e Registrais

A complexidade do júizo notarial nas "novas" atas

A ata notarial, exclusiva do tabelião de notas, é um meio de prova previsto na lei que documenta fatos de forma objetiva e verificada.

16/9/2024

A autenticação de fatos é atividade intrínseca à prestação dos serviços notariais. Quando um tabelião de notas reconhece como verdadeira a assinatura aposta na sua presença em um documento, ele autentica um fato. Da mesma forma, quando certifica que a reprodução de um documento confere com o original ou quando constata objetivamente um determinado acontecimento e o descreve em uma ata notarial, tornando-o perene.1  

A lavratura de ata notarial é ato de competência exclusiva do tabelião de notas, com previsão expressa na lei que regulamentou os serviços notariais e de registro - lei 8.935/94. Contudo, é possível afirmar que a comunidade jurídica despertou para a ata notarial quando a lei que instituiu o CPC - lei 13.105/15 -, a incluiu como um meio de prova típico, conforme o artigo 384: "A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". A esta ata notarial, a doutrina estrangeira atribui o nome de “ata de constatação”, pois é exatamente isso que o tabelião faz, ele constata um fato e o consigna em um instrumento público, revestido de valor probante cuja veracidade e autenticidade somente é afastada por declaração judicial de falsidade (art. 427, CPC), incumbindo à parte que a arguir o ônus probatório (art. 429, CPC).

A ata de constatação pode ter por objeto qualquer fato (acontecimento) objetivamente percebido pelo tabelião de notas, que o traduzirá na forma escrita com a estrutura gramatical de uma narrativa. Não é à toa que a ata notarial é referida como uma “fotografia em palavras”, afinal, a partir da captação dos sentidos, o notário apurará um fato e, sequencialmente, o descreverá em palavras, arquivando o instrumento em livro próprio, tudo isso sem a emissão de juízos de valor2. Ainda assim, é de salientar a inequívoca subjetividade, própria da condição de ser de cada indivíduo, que proporciona a produção textual com nuances distintas a partir de uma mesma constatação, caso dois tabeliães sejam chamados para presenciar o mesmo fato.

A doutrina sinaliza diversos exemplos de situações passiveis de aferição pelos sentidos do notário, como:

Mas, as atas notariais vão além da mera descrição objetiva de fatos. Amparada nos ensinamentos estrangeiros, a doutrina brasileira identifica diferentes espécies de atas notariais, como a ata de presença, “ata de notificação”, “ata de subsanação” e a ata de notoriedade. Compreender a distinção entre elas é fundamental, especialmente a partir do momento em que a legislação passou a prevê-las em certos procedimentos. O primeiro caso é a usucapião extrajudicial, introduzida no ordenamento jurídico pelo Código de Processo Civil. O legislador trouxe, como primeiro requisito para requerimento junto ao registro de imóveis, a ata notarial de atestação da posse. Na sequência, a Lei 14.382/22 disciplinou o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, e a ata notarial figura como requisito para provar o pagamento do preço e a mora na obrigação de outorga ou recebimento do título de propriedade. Mais recentemente, a lei 14.711/23 incluiu um novo artigo na lei 8.935/94 e deu competência expressa aos tabeliães de notas para lavratura de atas de certificação do implemento ou frustração das condições negociais. Em todos esses procedimentos, as atas notariais não são de constatação, porque a tarefa do tabelião de notas transcende a mera constatação objetiva de um fato. Nessas atas haverá um o juízo notarial, sim, que envolve a apuração sobre a realidade de um fato ser considerado certo em determinado contexto, para, então, certificá-lo.

No caso da usucapião extrajudicial, a ata notarial tem por finalidade atestar o exercício da posse, com as características necessárias e durante determinado período de tempo. Para isso, é indispensável que ao tabelião de notas seja fornecido os elementos suficientes, aqui compreendidos por documentos, depoimentos de vizinhos, confrontantes, diligências no local e, em suma, tudo para que se forme o convencimento de que aquele fato (posse) é certo naquele contexto e por aquele período de tempo (o necessário de acordo com a espécie de usucapião). Esse é conteúdo a ser atestado. Até porque não é possível uma constatação objetiva de posse pretérita, e toda posse que legitima usucapião, é pretérita.

Enquanto na ata de constatação, espécie mais conhecida e amplamente utilizada, o tabelião de notas consigna de forma objetiva os fatos que foram por ele presenciados ou as evidências observadas, como a presença de pessoas em determinados locais, o conteúdo de páginas na internet, mensagens de texto ou o estado físico de bens e imóveis, na ata de notoriedade ou certificação, a atuação notarial envolve um processo mais aprofundado de investigação, análise e decisão. Diferentemente do que acontece na ata de constatação, na ata de certificação, é inequívoco o juízo de valor pelo tabelião de notas, e por isso é fundamental a compreensão pelo advogado que representa o interessado no procedimento de que os elementos probatórios apresentados são decisivos para que a finalidade da ata notarial seja alcançada.

No caso da ata de certificação do implemento ou frustração das condições ou outros elementos negociais, a atividade notarial pode alcançar um impacto ainda maior, definindo os rumos da relação contratual sem a necessidade de atuação do Poder Judiciário. Nela, o notário realiza um juízo valorativo acerca do direito, o que demandará uma análise técnica e jurídica minuciosa, condizente com os fundamentos balizadores da função notarial (de caráter jurídico, preventivo, pacificador, imparcial, público, rogatório e técnico da atividade notarial).5

Com efeito, a fim de se extrair todo o potencial existente nas atas notariais, é preciso compreender que o papel do tabelião de notas vai além da verificação, autenticação e documentação de fatos objetivos - limitação histórica que se explica, em parte, por sua recente descoberta pela comunidade jurídica. Os novos procedimentos que iniciaram com a usucapião extrajudicial no Código de Processo Civil expandem os horizontes da ata notarial, trazendo-lhes novos contornos, inclusive com funções mais analíticas e valorativas. Nessas “novas atas”, como as de notoriedade, o notário exerce uma função que se aproxima de um juízo técnico, no qual sua interpretação e análise dos fatos têm consequências diretas para a segurança jurídica dos atos praticados.

A confiança depositada no tabelião de notas pelo legislador reflete uma expectativa de que ele seja capaz de manejar complexidades jurídicas com precisão e imparcialidade, afinal “el registro notarial consagra la seguridad preventiva mediante formalismos que garantizan la validez de los contratos y propician un ambiente de confianza para la actividad económica”6. A responsabilidade do tabelião é garantir que as atas reflitam fielmente os fatos e condições, certificando, em certos casos o próprio direito, minimizando riscos de litígios e incertezas jurídicas.

A evolução do direito notarial exige um alto nível de conhecimento técnico e jurídico, para o desempenho das funções com a diligência e competência necessárias. A ampliação das espécies de atas notariais e a complexidade a algumas delas intrínsecas refletem as demandas sociais e jurídicas contemporâneas. Não se trata de mera extensão das antigas práticas, mas, com efeito, de uma reconfiguração do próprio conceito de juízo notarial, exigindo dos tabeliães de notas uma atuação cada vez mais qualificada e multidimensional. Isso reforça a sua presença como um garantidor da segurança jurídica e da efetividade dos atos e negócios jurídicos na sociedade moderna.

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1 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial – Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 161.

2 GUÉRCIO NETO, Arthur Del; GUÉRCIO, Lucas Barelli Del. Teoria geral do direito notarial e registral. CASSETTARI, Christiano (Coord.). 1 ed. Indaiatuba, SP: Foco, 2023. 

3 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial – Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 200-201.

4 BRANDELLI, Leonardo. Atas Notariais. In: SILVA NETO, Amaro Moraes et. al. Ata notarial. BRANDELLI, Leonardo (Coord.). Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, 2004, pp. 45-47.

5 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 127-133

6 GUTIERREZ CABAS, Willy. El notario de Fe pública como garante de la seguridad jurídica preventiva en los documentos notariales. Rev. Jur. Der., La Paz,  v. 11, n. 16, p. 129-142,  jun.  2022. Acesso em:  26  ago.  2024.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.