Migalhas Notariais e Registrais

Julgamento colegiado da dúvida registral pelos próprios delegatários: Uma inovação compatível com a Constituição Federal

A dúvida registral, um procedimento administrativo controverso, surge da legislação anterior à Constituição de 1988, conflitando com seu novo regime para tabeliães e registradores.

24/6/2024

1. Introdução e delimitação do tema

Apesar da profunda alteração jurídica operada nos serviços a cargo dos tabeliães e registradores pela Constituição de 1988, as leis atuais que disciplinam as delegações e os registros públicos continuam a ser influenciadas pelas normas anteriormente vigentes, a exemplo do que ocorre com a dúvida registral, objeto deste trabalho.

A dúvida registral, como aqui defendida, é um procedimento administrativo adotado com supedâneo nas leis e normas administrativas brasileiras e se destina a resolver dissenso entre o registrador e o usuário interessado na prática de algum ato registral, sendo admitida em alguns estados da federação não apenas a dúvida propriamente dita, mas também a dúvida inversa.

Nesse sentido, admitir que o ordenamento jurídico em vigor tenha recepcionado, em sua inteireza, a lei dos registros públicos, parece violar a engenharia  constitucional que passou a reger a temática a partir da Constituição de 1988, merecendo ser questionada ou, no mínimo debatida, a posição majoritária presente na doutrina e jurisprudência no sentido de que a dúvida registral deve ser decidida por um juiz, pois essa conformação implicaria na existência da revisão administrativa de atos dos delegatários por uma autoridade judiciária investida, também, de autoridade administrativa, o que seria inconstitucional em face do art. 236 da Constituição Federal, a qual ao transformar o regime jurídico dos titulares das serventias extrajudiciais não permite que o estado realize atos notariais e de registro por conta própria, exceção prevista somente na lei ordinária para os casos do exercício interino.

Assim, o panorama parece sinalizar que a dúvida registral não se encontra bem resolvida quanto a sua juridicidade, especialmente no que tange à dúvida inversa. A lei 6.015/73, mesmo com os ajustes recentes, não fornece a necessária pacificação do tema, talvez porque deixa de enfrentar as questões fundamentais que aqui se discutirão brevemente.

Com efeito, na seção 1, denominada conceitos básicos em relação à dúvida registral, apresentar-se-á diferentes conceitualizações do termo, para, na seção 2, intitulada dúvida registral e dúvida inversa: Implicações, dedicar-se à análise da natureza jurídica e as implicações da dúvida registral propriamente dita e da dúvida inversa, com especial atenção às escolas jurisprudenciais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Pará e Pernambuco, a título de exemplos. Por fim, na seção 3, denominada considerações finais, serão explicitados o posicionamento trazido neste trabalho em relação às duas espécies de dúvida direta/inversa, justificando-o não como mero preciosismo intelectual, mas sim como elemento fundamental para aqueles que defendem que o sistema registral brasileiro seja o reflexo do poder constituinte originário. Quanto à metodologia, empregou-se o método dedutivo, em que se partiu da revisão bibliográfica e pesquisa jurisprudencial da área em questão para a formulação da proposta apresentada.

2. Conceitos de dúvida registral

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garantiu o direito de propriedade e lhe atribuiu uma função social no art. 5º, incisos XXII e XXIII. Além disso, municiou a sociedade do instrumento por intermédio do qual esse direito poderia ser onerado, transferido e publicizado, a fim de que seja oponível perante todos.

Com efeito, o Constituinte estabeleceu um arcabouço de regras (art. 236/CRFB) que, regulamentado pela lei 8.935/94, transformou a natureza jurídica dos popularmente conhecidos cartórios extrajudiciais que passaram a ser denominados serviços notariais e de registro, muito embora a nova nomenclatura não tenha caído no gosto popular.

Até então, esses serviços eram prestados por servidores públicos lato sensu, nomeados pelos entes subnacionais (Estados e Distrito Federal), como tabeliães e registradores, os quais, na grande maioria, remunerados exclusiva e diretamente pelos usuários dos serviços por meio de emolumentos e não eram delegatários do Poder Público.

Assim sendo, a jurisprudência majoritária, inclusive, do STF, assentou o entendimento de que a remuneração paga diretamente pelos usuários não descaracterizaria a condição de servidor público, haja vista que os emolumentos recebidos por esses agentes públicos têm a natureza jurídica de tributo.

Noutro giro, com a Constituição de 1988 os serviços notariais e de registro passaram a ser exercidos por delegação.

 No que se refere à dúvida, esse fato ainda não despertou a merecida atenção, pois o entendimento que predomina não leva em consideração essa mudança, conforme se poderá verificar das definições abaixo, trazidas por grandes juristas da área.

Confira-se:

Walter Cenevivadefine a dúvida como “o procedimento administrativo pelo qual o serventuário submete à decisão judicial, a pedido do interessado, a exigência apresentada por aquele e não satisfeita por este”.

Victor Kümpel2 leciona que:

A dúvida consiste no procedimento administrativo pelo qual o oficial de registro, a pedido do interessado, submete a exigência apresentada, mas não satisfeita, à decisão judicial. Trata-se de procedimento de revisão hierárquica do juízo administrativo de objeção a uma pretensão de registro.

 Lamana Paiva3 afirma que:

O procedimento de dúvida é o mecanismo que serve para verificar a correção – ou não – das exigências formuladas pelo registrador, ou para que ele seja autorizado a proceder a um ato registral, quando a parte não apresente condição de atendê-las.

Por sua vez, Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento4 menciona que “surge a dúvida da objeção fundamentada do delegatário à prática de ato que lhe é solicitada por interessados, na esfera de sua serventia”.

Sobre o conceito, note-se que a mencionada “revisão hierárquica” diz respeito à superposição dos órgãos de decisão (serventia/juízo), valendo mencionar que tecnicamente é incorreto se falar em hierarquia entre os agentes públicos (juiz/registrador), uma vez que o serviço notarial e de registro é vinculado ao Judiciário, na forma do art. 236, caput e §1º da Constituição Federal e dos arts. 37 e 38 da lei 8.935/94.

Nesse sentido, à exceção de Sarmento que se utiliza do termo técnico delegatário, Ceneviva e Kümpel ao se valerem das expressões “serventuário” e “poder hierárquico”, respeitosamente, são exemplos claros de que a doutrina majoritária da dúvida já toma por correta a qualificação registral por parte de um juiz no plano administrativo, quando o certo seria que essa “qualificação” fosse realizada por um colegiado de registradores, que por decisão do Constituinte, somente eles poderiam realizar uma qualificação registral imobiliária válida.

___________

1 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada, 9 ed. Ver. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2014. p. 251.

2 KÜMPEL, Vitor Frederico et. al. Tratado Notarial e Registral. vol. 5. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020. Pg. p. 587-588.

3 PAIVA, João Pedro Lamana. O procedimento de dúvida e a evolução dos sistemas registral e notarial no século XXI – 4. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. p. 75.

4 SARMENTO, Eduardo Sócrates Castanheira. A dúvida registral: doutrina, prática, legislação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 63.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.