Migalhas Notariais e Registrais

Provimento 161/2024: atualização das normas de prevenção à lavagem de dinheiro para notários e registradores

O Procurador da República Rafael Brum Miron analisa a edição do Provimento 161/2024, destacando desafios e propostas de aprimoramento para fortalecer o combate à lavagem de dinheiro no Brasil realizada por notários e registradores.

1/4/2024

Introdução

O sistema brasileiro de prevenção à lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa (PLD/FTP) ganhou, em fevereiro de 2020, um reforço relevantíssimo com a edição do Provimento 88/19. Desde então, notários e registradores foram incluídos no sistema como sujeitos obrigados, colaboradores cuja função é monitorar suas atividades para fins de identificação de eventuais atos suspeitos desses ilícitos e comunicar eventuais suspeitas à unidade de inteligência financeira brasileira, o COAF.

Ao incluir notários e registradores possibilitou-se a inserção de milhares de profissionais altamente qualificados, capilarizados em todo o país e com informações importantíssimas para fins de prevenção à lavagem de capitais.

Logo após a implementação do Provimento, observou-se um engajamento expressivo desses profissionais, que enviaram centenas de milhares de dados para a unidade de análise financeira. Iniciativas educacionais, como cursos e palestras, foram promovidas para capacitá-los esses profissionais e seus auxiliares na nova responsabilidade que lhes foi atribuída. Associações de classe criaram manuais de orientação para seus integrantes, demonstrando empenho coletivo na adaptação a esses requisitos de prevenção e combate ao crime financeiro.

Seguindo o que aconteceu em outros países, logo esses profissionais se consolidaram como a “atividade e profissão não financeira designada” (APNFD)mais importante para o sistema PLD/FTP nacional.

Apesar desses avanços, desde o início enfrentaram-se certos desafios com as comunicações, originados por incertezas na interpretação das normas, uma tendência dos profissionais a adotar uma abordagem excessivamente defensiva, bem como de falta de adaptação do sistema de comunicações (SISCOAF) às peculiaridades das profissões envolvidas.

Já reportamos esses problemas em diversas oportunidades2, vale contudo, sistematizar os problemas no momento:

  1. Intepretação equivocada do termo “em espécie” relacionado nas comunicações automáticas, muitas vezes sendo confundido com transferências bancárias ou interpretação do termo “pago em moeda corrente” colocados nas escrituras públicas;
  2. Realização de comunicação suspeita com mero indicativo normativo da suspeição, sem uma efetiva análise e fundamentação do profissional.
  3. Realização de comunicações defensivas, sem efetiva análise do caso, mas visando apenas a autoproteção do agente colaborador;
  4. Realização de comunicações em caso de dúvidas;
  5. Realização de comunicações com informações não fidedignas, como por exemplo, relatar uma operação em espécie quando ela na prática não existia, ou relatar um grande extraordinário ganho de capital na operação quando a diferença de preços decorria apenas da diferença da data da confecção da escritura pública ou do registro3.

Também foram publicadas algumas orientações em diversos artigos e palestras com orientações a respeito. Destacamos, no momento, o artigo denominado “COAF: comunique menos, comunique melhor!”.

Na ocasião salientamos basicamente cinco orientações a respeito das comunicações ao COAF para notários e registradores:

  1. Não comunique com objetivos defensivos;
  2. Não comunique em caso de dúvida;
  3. Não comunique operações suspeitas como se comunicações obrigatórias fossem. Não transforme meros indicativos de suspeição em casos e comunicações automáticas;
  4. Não comunique operações em espécie sem a convicção de que houve transferência física do numerário;
  5. Não comunique falta de informação do título como se fosse resistência ao prestar informações.

As sugestões poder-se-iam resumir em “empoderem-se dessa nova função”4 na medida em que todas sugeriam maior assunção dessa nova responsabilidade atípica dos profissionais de serem sujeitos obrigados perante o sistema PLD/FTP brasileiro. É importante destacar que o principal objetivo da inclusão de sujeitos privados no sistema não são propriamente as informações que eles possuem, mas sim o conhecimento especializado para poder identificar na sua atividade ordinária operações que consideram atípicas e que podem ser suspeitas de lavagem de capitais. Em outros termos, o que o Estado deseja é apoderar-se deste know-how especializado, que conhece as peculiaridades da atividade exercida, com suas características específicas (tipo de atividade, local de atuação, etc.)5.

Os sujeitos obrigados são os principais catalizadores da inteligência financeira. É a partir das informações que eles prestam que a UIF consegue direcionar sua análise:

En la evolución normativa de los tratados internacionales, en el contenido de las normas de soft law y en las disposiciones de las directivas europeas expedidas para combatir el blanqueo, la colaboración de los sujetos obligados se ha erigido como pilar fundamental de los mecanismos de prevención de este fenómeno criminal. Adicional a lo anterior, un análisis histórico permite comprender que el sistema de prevención del blanqueo, tal cual lo conocemos, es el producto de un intrincado proceso de discusión política, económica y jurídica que ha dado forma a una red integral de prevención, cuyo centro neurálgico es la investigación financiera. Esta se enfoca, concretamente, en el desarrollo de estrategias de control de los delitos que generan rendimientos económicos. En esta red, los sujetos obligados adoptan un papel esencial, siendo considerados como catalizadores de la actuación de los órganos públicos de investigación6.

Em janeiro de 2022, após quase dois anos de vigência do Provimento 88/19, o COAF encaminhou a Nota Técnica n. 107152 à Corregedoria Nacional de Justiça, destacando a necessidade de aperfeiçoamento das regras sobre o assunto. Ressalta-se do documento:

4. Deficiências como a ausência de detalhamento da suspeição identificada, falhas na identificação dos envolvidos e incompreensão do comando regulamentar predominam nas comunicações recebidas, limitando sua utilidade para fins de inteligência financeira. Apenas 1% das comunicações recebidas desse segmento fizeram parte de análises em Relatórios de Inteligência Financeira – RIF Percentual bastante inferior a outros segmentos obrigados (...)7.

No mesmo sentido, no ano passado o GAFI, o principal órgão internacional de orientações sobre políticas PLD/FTP, realizou avaliação no sistema brasileiro. Em seu relatório podemos destacar conclusões similares, ou seja, em geral existe grande engajamento do setor de notários e registradores no sistema PLD/FT, mas ainda existem deficiências significativas na compreensão das comunicações que devem ser realizadas:

197. The STR form include indicators that should be marked by the reporting institution and an open field where they should describe and justify the suspicion ground. The entities receive a scoring based on the quality of the reports submitted to COAF (see IO.4). While this scoring indicates that the quality of the STRs from FIs and DNFBPs is overall good, some entities still tend to send automated communications to COAF based on indicators and red flags, rather than ML/TF suspicions. Moreover, mayor deficiencies were identified regarding the understanding and reporting by the DNFBPs sectors, including in relevant sectors such as the notaries8.

503. There is a large discrepancy in the number of STRs filed by notaries – out of almost 21,000 notaries, in 2022, more than 1.2 million STRs were filed. The vast majority of STRs are automatic, threshold or value-based filings rather than actual suspicious STRs. The notaries acknowledged that more work needs to be done to file better quality STRs9.

Em novembro de 2023 a Corregedoria Nacional de Justiça, realizou o seminário Atuação dos Cartórios Extrajudiciais no Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo10. O evento teve como principal objetivo debater as mudanças necessárias nas regras de PLD/FTP para notários e registradores, com o objetivo de proporcionar colaboração mais efetiva do setor de combate a esses ilícitos. Na ocasião, diversos especialistas e profissionais envolvidos no tema abordaram as deficiências existentes e propuseram alterações normativas nas regras de PLD/FTP para notários e registradores.

As informações de problemas nas comunicações foram reiteradas pela Dra. Liz Resende, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional em live promovida pelo Registro de Imóveis do Brasil com apoio do Conselho Federal do Colégio de Notários do Brasil11.

Após um período de recebimento de sugestões de mudanças12 e de aprimoramento da redação, a Corregedoria Nacional de Justiça editou, em 11 de março de 2024, o Provimento 161, cuja vigência prevista terminará em 02 de maio de 2024. O Referido Provimento realiza atualizações das regras do Provimento 88/19, incorporado entre os artigos 137 e 181 do Provimento 149/23, o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), doravante Código Nacional de Normas do Extrajudicial (CNNE). Diante do exposto, este artigo tem como objetivo analisar essas mudanças.

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1 Definição de Atividades e Profissões não Financeiras Designadas nos termos do glossário do GAFI: Atividades e Profissões Não-Financeiras Designadas significam: a) Cassinos b) Corretores de imóveis. c) Comerciantes de metais preciosos. d) Comerciantes de pedras preciosas e) Advogados, tabeliães, outros profissionais jurídicos independentes e contadores – refere-se a profissionais liberais que exercem sua profissão de forma independente, sócios ou profissionais empregados em escritórios. Não se refere a profissionais “internos” que sejam empregados de outros tipos de empresas, nem a profissionais que trabalhem para agências do governo que já estejam sujeitas a medidas ALD/CFT. f) Prestadores de serviços a empresas e a trusts referem-se a todas as pessoas ou empresas que não estejam cobertas em outras partes dessas Recomendações e que, como empresas, prestem quaisquer dos seguintes serviços a terceiros: (...). Disponível aqui

2 Já realizamos diversas palestras e publicamos diversos artigos sobre esses problemas, destacando-se: a) MIRON, Rafael Brum. O Provimento 88/2019 – Aspectos Gerais – Problemas Comuns. In. Escola Paulista da Magistratura. Notários e Registradores no Combate ao Crime. São Paulo, 2022. Disponível aqui. 24; b) MIRON, Rafael Brum. COAF: comunique menos, comunique melhor! In: NUNES, Marcielly Rosa (coord.). A expansão do extrajudicial: direito notarial e registral. Especialistas apresentam dicas práticas para atuar na área e apontam sugestões aos códigos de normas. Toledo: [S.n.], 2020b. p. 80; c) PEDROZO, F. G. G. A. ; MIRON, R. B. ; FELICIANO, G. G. ; TERRA JUNIOR, J. S. ; MATEO, F. E. . Direito Penal. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. v. 1. p. 142.

3 Esse ponto, de falta de confiabilidade das comunicações, é extremamente complicado e pode gerar danos a terceiros. Veja-se que notários e registradores possuem fé-pública. Além disso são duas das instituições mais respeitadas no país. Diante disso, imagine-se a situação de um membro do Ministério Público que receba informações de que um determinado investigado realizou quatro aquisições de bens acima de R$ 2.000.000,00 e que as aquisições foram pagas com recursos em espécie? Dessa informação evidentemente já teremos uma conclusão de que existe algo de errado que deve ser investigado. Não obstante, após a continuidade investigação (que poderia incluir, por exemplos, medidas drásticas como busca e apreensão), descobre-se que as aquisições foram regulares e pagas com transferências bancárias. Trata-se de um caso real no qual o autor deste livro foi consultado e que orientou a ter cautelas com as comunicações de recursos em espécie feitas por notários e registradores.

4 MIRON, Rafael Brum. O Provimento 88/2019 – Aspectos Gerais – Problemas Comuns. In. Escola Paulista da Magistratura. Notários e Registradores no Combate ao Crime. São Paulo, 2022. Disponível aqui. Acesso em 05 jan. 24. 55min.

5 “En este sentido, un análisis de la evolución normativa del sistema de prevención del BdeC permite afirmar que el sistema preventivo se fundamenta en el reconocimiento de que los sujetos obligados cuentan con mejores condiciones que los órganos de investigación policial para identificar operaciones sospechosas de blanqueo de capitales “OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Los deberes de colaboración em el blanqueo de capitales: Contesto normativo, fundamentos y limites. Atelier: Barcelona, 2023, p. 23.

6 OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Los deberes de colaboración em el blanqueo de capitales: Contesto normativo, fundamentos y limites. Atelier: Barcelona, 2023, p. 24

7 CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS (COAF). Qualidade das comunicações recebidas por notários e registradores. Nota Técnica nº 107152, 24 de janeiro de 2022.

8 GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL (GAFI). Padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação: As Recomendações do GAFI. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2024. p. 74

9 GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL (GAFI). Padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação: As Recomendações do GAFI. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2024. P. 183

10 CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Seminário “Atuação dos Cartórios Extrajudiciais no Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo”. Realizado em: Auditório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Brasília, em 07 de novembro de 2023. Disponível aqui. Acesso em 05 jan. 2024.

11 Novas normas de prevenção à lavagem de dinheiro: o que muda para notários e registradores? Disponível aqui, 14 min. Acesso em 26 mar 2024.

12 O signatário enviou diversas sugestões à Corregedoria Nacional de Justiça basicamente com os seguintes objetivos: a) inclusão da obrigação de análise setorial de risco; b) extinção das comunicações automáticas que não decorressem de comunicações suspeitas; c) obrigação de fundamentar as comunicações suspeitas realizadas; d) inserção de novos dados (PEP, meio e forma de pagamento) nas escrituras públicas; e) criação de órgãos centrais de prevenção. Desses itens sugeridos, os de “a” a “d” foram contemplados de forma mais ou menos ampla. O item “e”, ou seja, a criação de órgãos centrais de prevenção, não foi aprovado. Aproveita-se para destacar que o item não aprovado, ou seja, a criação de centrais, é o que o teria os maiores impactos qualitativos. A criação e órgãos centrais tem potenciais significativos de melhora da participação de notários e registradores no sistema PLD/FTP. O autor deste artigo esta pesquisando o tema em sua tese de doutorado que, tão logo concluída, tratara uma ampla análise sobre os benefícios desses instrumentos. No momento, indica-se para leitura sobre o tema artigo que será publicado na RDI n. 96 denominado “O Centro Registral Antiblanqueo (CRAB) Espanhol como modelo para aperfeiçoamento da participação de registradores brasileiros no sistema de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo”, que tem como autores a Dra. Caroline Feliz Sarraf Ferri e o autor do presente artigo.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.