No coração da civilização grega antiga, filósofos como Sócrates buscavam desvendar os mistérios do mundo e compreender o papel do ser humano em meio à constante transformação da realidade. Suas palavras ecoam através dos séculos, lembrando-nos da importância de abraçar a mudança e direcionar nossa energia para a construção do novo. Hoje, em um mundo marcado pela revolução tecnológica, somos desafiados a aplicar esse princípio fundamental ao campo dos direitos humanos.
À medida em que nos encontramos imersos na era digital, onde a tecnologia permeia todas as esferas de nossas vidas, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de proteger não apenas nossos direitos tradicionais, mas também outros direitos que nunca estiveram em voga até então, como nossa integridade mental e cognitiva. Os neurodireitos emergem como uma resposta a essa demanda, representando um novo paradigma na proteção dos direitos humanos na era digital.
Nesta era de avanços tecnológicos rápidos e incessantes, é essencial que as sociedades reconheçam novos desafios que surgem com essas tecnologias que afetam diretamente o padrão pré-existente, nos forçando a olhar com novos olhos para áreas como à integridade mental das pessoas, por exemplo. Este artigo se propõe à uma análise desses “novos direitos” relacionados à neurociência e às tecnologias, e a urgência de sua inclusão na legislação nacional, com foco na atualização do Código Civil de 2002.
No início do século XX, os avanços na compreensão do cérebro humano abriram novas perspectivas para a neurociência, proporcionando insights sem precedentes sobre o funcionamento da mente humana, como por exemplo descobertas fundamentais sobre a estrutura do sistema nervoso1, mapeamentos cerebrais e técnicas de estimulação2, desenvolvimentos de técnicas de imagem cerebral3 e também na segunda metade do século XX, os cientistas começaram a identificar e estudar os neurotransmissores4.
Essas descobertas levantaram diversas questões éticas e legais sobre o uso de tecnologias que afetam diretamente o funcionamento neural, dando origem aos “neurodireitos”, que se conceitua por um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana frente aos avanços das neurotecnologias.5
O termo "neurodireitos", surgiu em 20176 por pesquisadores (IENCA e ANDORNO), que constataram de que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos não estava preparado para lidar adequadamente com os desafios decorrentes do avanço e uso das tecnologias neurocientíficas. Esse conceito ganhou destaque na comunidade científica internacional com a publicação de um artigo liderado por Rafael Yuste e Sara Goering na revista Nature7, no artigo eles identificaram quatro importantes áreas, e hoje com o avanço dos estudos no tema, a Neurorights Foundation8 traz cinco importantes neurodereitos a serem considerados. E são eles: (tradução livre)
1 – O direito à Privacidade Mental
Qualquer NeuroData obtido através da medição da atividade neural deve ser mantido em sigilo. Se armazenado, deve haver o direito de excluí-lo a pedido do sujeito. A venda, transferência comercial e uso de dados neurais devem ser estritamente regulamentados.
2 - O direito à Identidade pessoal
Devem ser estabelecidos limites para proibir que a tecnologia perturbe o senso de identidade.
Quando a neurotecnologia liga indivíduos a redes digitais, pode confundir a linha entre a consciência de uma pessoa e os inputs tecnológicos externos.
3 - O direito ao Livre Arbítrio
Os indivíduos devem ter o controlo final sobre a sua própria tomada de decisão, sem manipulação desconhecida de neurotecnologias externas.
4 - O direito ao Acesso justo à ampliação mental
Devem ser estabelecidas diretrizes tanto a nível internacional como nacional que regulamentem a utilização de neurotecnologias de melhoramento mental.
Estas orientações devem basear-se no princípio da justiça e garantir a igualdade de acesso.
5 - Proteção contra vieses
Contramedidas para combater vieses deveriam ser a norma para algoritmos em neurotecnologia.
E muito embora pareça que estejamos nos referindo aos neurodireitos como conceitos futurísticos, a verdade é que já estamos vivenciando sua aplicação e impacto na sociedade contemporânea.
O uso das neurotecnologias, especialmente no campo das Interfaces Cérebro-Computador, conhecidas como “BCI” (sigla em inglês para Brain-Computer Interfaces), está se tornando cada vez mais tangível e relevante. As BCIs permitem a comunicação direta entre o cérebro humano e dispositivos tecnológicos, abrindo um vasto leque de possibilidades em áreas como saúde, reabilitação, entretenimento e até mesmo aprimoramento cognitivo.
No contexto das BCIs, os avanços recentes na neurociência e na tecnologia têm permitido o desenvolvimento de sistemas cada vez mais sofisticados e acessíveis. Hoje em dia, querem tornar cada vez mais possível controlar próteses robóticas, realizar tarefas computacionais, interagir com ambientes virtuais, o céu é o limite, ou melhor, não o é, pois, não há limites quando falamos do mundo digital.
Por exemplo, pesquisadores têm explorado o uso de BCIs para ajudar pessoas com deficiências físicas severas a recuperar a mobilidade e a independência. Por meio de implantes cerebrais ou eletrodos externos, esses indivíduos podem aprender a controlar dispositivos, utilizando apenas sinais cerebrais.9-10
Empresas como a Neuralink, fundada por Elon Musk, estão explorando ativamente o potencial das interfaces cérebro-computador para permitir a comunicação direta entre o cérebro humano e dispositivos tecnológicos. O objetivo é oferecer soluções para pessoas com deficiências físicas e neurológicas, além de explorar novas formas de interação homem-máquina. Recentemente em 29 de janeiro de 2024, a empresa anunciou ter implantado seu primeiro chip cerebral.11
Outro exemplo notável deste desenvolvimento foi a empresa Apple, que em 2023 patenteou uma nova linha de airpods capazes de ler ondas cerebrais.12
Embora as neurotecnologias ofereçam inúmeros benefícios e promessas de avanços significativos em várias áreas da vida humana, também é importante reconhecer os ônus e os riscos associados. Entre esses desafios estão questões relacionadas à privacidade e segurança dos dados neurais, potenciais usos indevidos ou manipulativos das informações cerebrais, bem como preocupações éticas sobre o consentimento informado e a autonomia individual. Além disso, o surgimento de desigualdades sociais e econômicas no acesso e na utilização das neurotecnologias também é uma preocupação legítima.
Sendo assim, à esta altura já se faz evidente que o rápido avanço das neurotecnologias e a crescente integração da neurociência em nosso cotidiano, torna imperativa a proteção dos neurodireitos para garantir o bem-estar e a dignidade das pessoas na era digital. Tornado-se fundamentais para proteger a privacidade, a autonomia e a liberdade de pensamento e expressão das pessoas em um contexto cada vez mais influenciado pela tecnologia. Sem regulamentação adequada, existe o risco de abusos e violações dos direitos humanos, incluindo a manipulação da atividade cerebral, uso indevido de dados neurais, dentre outros.
Além disso, a regulamentação dos neurodireitos é crucial para garantir a equidade e a justiça no acesso às neurotecnologias, assim como aos seus benefícios. Ao estabelecer políticas e regulamentações sólidas para protegê-los, podemos promover a inovação responsável e o uso ético dessas tecnologias, maximizando seus benefícios potenciais enquanto minimizamos seus riscos e impactos negativos. Isso requer um esforço colaborativo entre governos, instituições acadêmicas, empresas e sociedade civil para desenvolver e implementar estruturas legais e éticas que garantam a proteção em todas as etapas do desenvolvimento e uso.
Em última análise, a regulamentação é essencial para preservar a dignidade humana, a integridade mental e a liberdade individual em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. É hora de reconhecer e proteger os neurodireitos como parte integrante dos direitos humanos universais, garantindo que todos possam se beneficiar dos avanços da neurociência e da tecnologia de maneira justa, equitativa e ética.
Isto posto, ressalta-se que os neurodireitos foram lembrados quando da elaboração do parecer da subcomissão de direito digital da Comissão de atualização do Código Civil de 2002, do Senado Federal, que está propondo em um novo livro dentro do Código Civil, o seguinte texto:
“Art. x Os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados.
I - São considerados neurodireitos as proteções que visam a preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias.
II – São garantidos a toda pessoa natural os seguintes neurodireitos:
a) direito à liberdade cognitiva, sendo é vedado o uso de neurotecnologias de forma coercitiva ou sem consentimento;
b) direito à privacidade mental, concebido como direito de proteção contra o acesso não autorizado ou não desejado a dados cerebrais, vedada a venda ou transferência comercial;
c) direito à integridade mental, entendido com o direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias, sendo vedada a alteração ou eliminação do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento;
d) direito de continuidade da identidade pessoal e da vida mental, com a proteção contra alterações na identidade pessoal ou coerência de comportamento, sendo vedadas alterações não autorizadas no cérebro ou nas atividades cerebrais;
e) direito ao acesso e equitativo a tecnologias de aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas que deve ser guiado pelos princípios da justiça e da equidade;
f) direito à proteção contra práticas discriminatórias, enviesadas a partir de dados cerebrais.
Parágrafo Único – Os neurodireitos e o uso ou acesso a dados cerebrais poderão ser regulados por normas específicas, desde que preservadas as proteções e as garantias conferidas aos direitos fundamentais e aos direitos de personalidade.”
A proposta desta atualização legislativa com foco em direito digital visa posicionar o Brasil também na vanguarda da proteção dos direitos humanos na era digital. Nesse contexto, é imperativo que a legislação reflita os avanços e desafios trazidos pelas neurotecnologias, incluindo a proteção dos neurodireitos.
Ao reconhecer a importância dos neurodireitos e incorporá-los à legislação de direito digital, estamos garantindo que nossa legislação esteja alinhada com os princípios fundamentais de justiça, equidade e respeito pelos direitos humanos. Estamos também demonstrando nosso compromisso em enfrentar os desafios emergentes e aproveitar as oportunidades oferecidas pelas neurotecnologias para promover o bem-estar e o progresso da sociedade como um todo, mas com responsabilidade e ética.
A OCDE em 2019 editou a “Recomendação do Conselho sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia”13, com o objetivo orientar os governos e os “inovadores” a antecipar e enfrentar os desafios éticos, legais e sociais levantados pelas novas neurotecnologias, ao mesmo tempo que promove a inovação neste campo. Tendo como recomendações: Promover a inovação responsável, priorizar a avaliação de segurança Promover a inclusão, Promover a colaboração científica, Habilitar a deliberação social, Capacitar os órgãos de supervisão e consultivos, Proteger dados cerebrais pessoais e outras informações, Promover culturas de gestão e confiança em todo o setor público e privado, Antecipar e monitorar o potencial uso não intencional e/ou uso indevido.
Vale neste momento ressaltar, que o Brasil não seria o primeiro a tratar sobre o tema, em 29 de setembro de 2021, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a instituir proteção legal aos neurodireitos com a aprovação da lei 21.38314, incluindo expressamente esta proteção em sua Constituição.
Também a Espanha e França em 2021, tomaram medidas regulatórias para proteção destes direitos com as Carta de Derechos Digitales, instituindo “Derechos digitales en el empleo de las neurotecnologi´as”15 e French charter for the responsible development of neurotechnologies16, respectivamente.
Após, organismos internacionais como a ONU em 2022 em Paris, abordou a questão com o Ethical Issues of Neurotechnology: Report17 e em 2023 a OEA publicou a Declaração Interamericana de Princípios sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos18.
Também há debates em andamento na Argentina e no México, solidificando ainda mais a posição da América Latina no tema.
Em resumo, a proteção dos neurodireitos e o desenvolvimento ético das neurotecnologias são desafios essenciais que temos que enfrentar, pois já são uma realidade.
Ao reconhecer e proteger os neurodireitos, estamos defendendo os princípios fundamentais da dignidade humana, da privacidade e da liberdade individual em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. Ao mesmo tempo, ao desenvolver e utilizar as neurotecnologias de maneira ética e responsável, podemos aproveitar seu potencial para melhorar a qualidade de vida das pessoas e promover o progresso da sociedade como um todo.
A proposta de regulamentação dos neurodireitos apresentada neste artigo representa um passo significativo na direção certa, mas é apenas o primeiro de muitos passos necessários para garantir uma proteção abrangente e eficaz dos direitos humanos na era digital e “biotecnológica”, por assim dizer, mas a implementação efetiva dessa proposta exigirá um compromisso contínuo com a ética e a transparência.
À medida que avançamos em direção a um futuro cada vez mais dominado pela tecnologia, é crucial que não deixemos de lado nossos valores e princípios fundamentais como sociedade. Devemos lembrar que, no cerne de todas as inovações tecnológicas, estão as pessoas e suas necessidades e direitos. Somente ao garantir que a tecnologia sirva ao bem comum e ao progresso humano, podemos verdadeiramente colher os frutos do nosso avanço tecnológico e construir um futuro mais justo, inclusivo para todos.
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1 “Golgi recebeu as mais altas honras e prêmios em reconhecimento ao seu trabalho. Ele compartilhou o Prêmio Nobel de 1906 com Santiago Ramón y Cajal por seu trabalho sobre a estrutura do sistema nervoso.” Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 20242 Técnica desenvolvida por Wilder Penfield, que tratava pacientes com epilepsia. Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024
3 No início da década de 1970, Allan McLeod Cormack e Godfrey Newbold Hounsfield introduziram a tomografia computadorizada ou tomografia computadorizada e imagens anatômicas cada vez mais detalhadas do cérebro se tornaram disponíveis para fins de diagnóstico e pesquisa. Cormack e Hounsfield ganharam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1979 por seu trabalho. Logo após a introdução do CAT no início dos anos 80, o desenvolvimento de radioligandos permitiu a tomografia computadorizada de emissão de fótons (SPECT) e a tomografia por emissão de positrons (PET) do cérebro. Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024
4 Loewi, Otto 1921
5 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024
6 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024
7 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024>
10 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024>
11 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024>
12 Disponível aqui. Acesso em 12 de março de 2024>
13 Disponível aqui.