Migalhas Notariais e Registrais

Original e cópia – o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios

Neste pequeno ensaio, o autor trata da tema das distinções entre original e cópia e seus consectários – autoria, autenticidade, integridade.

11/3/2024

Introdução

Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários – autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado “com padrões técnicos” desempenha no processo registral? São equivalentes – o título original e o digitalizado – em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real? 

Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias – si non se uiderit – a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.1 Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: “os espelhos têm algo de monstruoso” porque “multiplicam o número dos homens”.2 Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön... Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?3

Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa...

As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados “com padrões técnicos”. O que são propriamente? Assombram-nos os extratos – emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real?

A realidade ultrapassa as mais ousadas distopias. Vivemos o tempo de avanços na digitalização da administração pública e judiciária, mas também testemunhamos o surgimento de simulacros que buscam suplantar a realidade e a materialidade das coisas, cedendo passo a representações complexas que se projetam no grande écran da hiper-realidade.

Voltando-nos ao microcosmo dos Registros Públicos, as reformas recentes da Lei nº 6.015/1973, consumadas pelo advento da Lei nº 14.382/2022, colocam-nos diante de velhas questões no confronto com as tendências que se verificam na sociedade da informação. A discussão acerca das mudanças – e o impacto que terão na atividade registral – é tarefa imperiosa e que ganha especial relevo quando consideramos que a Lei nº 14.382/2022 pende de regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Sabemos que o impulso essencial das mudanças foi a “modernização” do sistema registral pátrio, embalado por slogans e narrativas de jaez tecnocrático, o que, na opinião de uma pequena, mas qualificada, comunidade de juristas não se deu de modo satisfatório e adequado.4 Houve açodamento e uma certa dose de improviso e precipitação, fatos que podem inocular o germe da insegurança jurídica no sistema, além de instaurar uma barafunda sistemática, interditando os esforços despendidos em décadas de trabalho dedicado à modernização e ao aperfeiçoamento do modelar sistema registral pátrio.5

Divido essas meditações em dois pequenos artigos dedicados ao enfrentamento de três questões que se precipitaram na arena doutrinária pelas novas disposições legais: (a) O que são títulos digitalizados “com padrões técnicos” que agora podem acessar o Registro de Imóveis? Quais são seus pressupostos e requisitos técnicos e de validade jurídica? (b) Qual é o alcance do § 4º do art. 221 da Lei de Registros Públicos (LRP) na dispensa da reapresentação do título em algumas hipóteses, bastando mera referência ou certidão de atos já praticados? e finalmente (c) As certidões de documentos registrados no Ofício de Títulos e Documentos podem ser admitidas no Registro Imobiliário?

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1 BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Vol. II, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 176. “Foi ao grande profeta grego, ao mais célebre mántis, que Liríope consultou: Narciso viveria muitos anos? A resposta do adivinho foi lacônica e direta: si non se uiderit, se ele não se vir”. Narciso debruçou-se sobre o espelho d 'água e viu-se, e o vaticínio do velho Tirésias se cumpriria.

2 LUÍS BORGES, Jorge. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. O jardim dos caminhos que se bifurcam. Obras completas. Lisboa: Teorema, 1998. p. 447.

3 MAGRITTE, René. La reproduction interdite. (1937). Museum Boijmans van Beuningen – Rotterdam – Holanda.

4 MELO, Marcelo Augusto Santana de; MATUSZEWSK, Lorruane. Brevitatis causa. São Paulo: Migalhas, 12 abr. 2023. Disponível aqui. CRAMBLER, Everaldo Augusto. A Lei 14.382/2022, o sistema eletrônico de registros públicos e os negócios imobiliários. Ensaios sobre Direito Constitucional, Processo Civil e Direito Civil. Uma homenagem ao Professor José Manoel de Arruda Alvim. Curitiba: EDV, 2023, p. 239 passim. CAMPOS, Ricardo. Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário. São Paulo: Migalhas, 24 mar. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/383616/. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. In: Blog do Fausto Macedo, ed. de 1º maio 2022, atual. 28 ago. 2023. A carta aberta de civilistas brasileiros merece ser conhecida: Carta aberta de civilistas sobre trecho da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida). In: São Paulo: CONJUR, 2023. Disponível aqui. V. substancioso parecer subscrito pelos professores Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem elaborado a pedido do Colégio Notarial Brasileiro – Conselho Federal e o Conselho Notarial Brasileiro – Seção São Paulo acerca das repercussões da MP nº 1.085/2021 nos direitos do consumidor. A CGJSP produziu um verdadeiro libelo crítico a respeito das inovações da Lei nº 14.382/2022. V. Processo CG 100.217/2022, São Paulo, dec. de 16/1/2023, Dje 16/1/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível aqui.

5 Sobre o açodamento e a falta de aprofundamento da matéria, é bastante impressivo o testemunho de seus principais atores: “Já era noite quando o Ofício 196/2022 do Senado chegou à Câmara, e o Relator, Deputado Isnaldo Bulhões Jr., apresentou prontamente o relatório relâmpago (Parecer Preliminar de Plenário 3) votando pelo acolhimento das alterações promovidas pelo Senado”. ABELHA, André; CHALHUB, Melhim. VITALE, Olivar. Sistema eletrônico de registros públicos: Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. XVII. Tratou-se de verdadeira blitzkrieg empreendida por alguns setores do Governo Federal aliados a grupos interessados.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.