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A "separação obrigatória" para o maior de 70 anos não é mais "obrigatória"

O Plenário do STF entendeu que manter a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas.

7/2/2024

O regime da separação de bens, em sua face obrigatória por razões etárias, não é novidade no sistema brasileiro. Esteve presente no Código Civil de 1916, a princípio tornando compulsório o regime de separação para o homem maior de sessenta e a mulher maior de cinquenta anos (CC/2016, art. 258). O legislador de 2002 manteve o critério, apenas igualando a idade de ambos para sessenta anos, até que a lei 12.344 de 09/12/2010, elevou a idade base para setenta anos, alterando o inciso II do art. 1.641.

A separação obrigatória de bens já suscitava desconforto no Supremo Tribunal Federal (STF), razão pela qual o Pretório Excelso, ainda quando cumulava as funções de instância recursal, guardião da legislação federal e da Constituição, sintetizou sua jurisprudência sobre o tema na súmula 377, aprovada na sessão plenária de 03 de abril de 1964, oriunda de decisões que tiveram como referências legislativas os artigos 258 e 259 da Lei 3.071/1916 (código civil revogado), o art. 7º, § 5º do decreto-lei 4.657/1942, art. 3º da lei 883/1949, e, art. 18, do decreto-lei 3.200/1941, que sustentaram os precedentes RE 10951 (DJ de 26/09/1963), RE 7243 EI (DJ de 16/08/1957), RE 8984 EI ( DJ de 11/01/1951) e  RE 9128 (DJ de 17/12/1948). O texto da súmula – “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento” - mitigava, por força pretoriana, o principal efeito do regime se separação - o de estabelecer incomunicabilidades – ao permitir a comunhão de aquestos.

A súmula 377 do STF ganhou recentemente uma versão dada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), aplicável à união estável de pessoas com idade igual ou maior de setenta anos. Trata-se da súmula 655 do STJ, cujo conteúdo, além de revigorar a súmula do STF, assegura seus efeitos também na união estável e consolida a exigência de prova do esforço comum para a comunhão de aquestos: “Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum”. (SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/11/2022, DJe 16/11/2022)

O STF, que desde a década de 1960 não tinha mais voltado ao tema, no dia 1º de fevereiro de 2024, no julgamento da matéria objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236), faz inserir no sistema uma novidade de grande impacto social e jurídico, principalmente no Direito de Família e no Direito das Sucessões.

Segundo o guardião da constituição, o regime estabelecido em razão do art. 1.641, II, do Código Civil é constitucional, mas pode ser afastado por convenção entre as partes, mediante a lavratura de pacto antenupcial.

A tese de repercussão geral fixada pelo STF é a seguinte: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública".

Assim, o regime de bens conhecido por “separação obrigatória de bens” nega seu próprio nome e não será mais tão obrigatório, pelo menos para os maiores de 70 anos de idade. Com essa interpretação o STF reconhece que a questão do art. 1.641 não é de ordem pública, porque passível de modificação pela vontade das partes, característica das normas dispositivas, seja para quem protagoniza casamento ou união estável.

O Plenário do STF entendeu que manter a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas. A interpretação é saudável porque se ergue contra a discriminação em função da idade das pessoas, cuja vedação tem sede constitucional. Aliás, não há no sistema jurídico relativização da capacidade jurídica de fato, como um deletério efeito colateral da graça de se alcançar uma idade provecta.

A interpretação conforme à Constituição Federal dada pelo STF ao art. 1.641, II, do Código Civil não inibe a existência ou os efeitos do regime da separação obrigatória, nem nega a súmula 377, posto que, no silêncio das partes, o regime continuará a ser aplicado para todas as hipóteses em que tem previsão expressa na legislação infraconstitucional, inclusive para o casamento ou união estável de pessoas com idade igual ou maior que setenta anos. O estado de coisas somente muda se houver manifestação expressa das partes.

Com a decisão, a pessoa maior de setenta anos de idade pode afastar o regime da separação legal por pacto antenupcial, no casamento, e por escritura ou termo de união estável, com a escolha de qualquer outro regime de bens pelo maior de 70 anos de idade, inclusive o “trágico” regime da comunhão universal de bens. Se o casal não optar por lavrar pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável, vale o regime da “separação legal”.

A decisão traz uma ampliação das possibilidades, no exercício da autonomia privada no que se refere ao regime da separação obrigatória de bens, que pode ser assim sintetizada, considerando o julgado do STF e o estado da arte sobre o assunto:

a) Se as partes desejam o regime da separação e que seus efeitos sejam aqueles definidos na súmula 377 do STF ou na súmula 655 do STJ, no casamento ou na união estável, basta o silêncio dos interessados para assegurar as consequências esperadas, sendo que eventual esforço comum deverá ser demonstrado no futuro, para garantir a aplicação da súmula.

b) Se as partes admitem o regime de separação de bens, mas não desejam os efeitos das súmulas, também podem realizar o casamento ou a união estável, manifestando sua vontade em pacto antenupcial ou termo declaratório, no sentido de afastar aqueles efeitos (REsp n. 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 1/2/2022.)

c)  Se as partes não desejam o regime da separação de bens, nem os efeitos das súmulas, então podem pactuar o regime de sua preferência, sem as amarras da restrição imposta pelo art. 1.641, II, do Código Civil.

A opção volitiva de alteração do regime de bens, oportuno lembrar, implica em efeitos que se espraiam durante o casamento ou a união estável, mas também, e principalmente, nos efeitos sucessórios. Embora não haja ainda acesso aos votos escritos, pensamos que a eventual adoção de regime típico ou customizado pelas partes leva consigo os efeitos sucessórios inerentes ao novo regime, ficando completamente descartado qualquer efeito residual do regime da separação obrigatória.

Uma interessante questão está relacionada com a terminologia adequada à nova perspectiva do regime, que perde sua virtude (ou vício) de obrigatório. Nesse primeiro momento, entendemos que o mais adequado é denominá-lo “regime da separação legal de bens”, para diferenciá-lo do regime da separação convencional de bens, que é aquele decorrente de pacto antenupcial ou de escritura pública ou termo declaratório de união estável.

Reiteramos que continua existindo o regime da separação de bens que decorre da lei – regime que até dia 1º de fevereiro de 2024 denominávamos “separação obrigatória”, permanecendo íntegras as hipóteses descritas no art. 1.641 (É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial).

Esse regime é diferente do regime da separação convencional, pois, pelo art. 1.829, I, do Código Civil, em concorrência com descendentes, na “separação legal” o cônjuge não é herdeiro nem meeiro. Como já dito, cabe ressaltar, também, que a Súmula 377/STF ainda é aplicável e pode ser reconhecido judicialmente o direito à meação dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento ou da união estável no regime da “separação legal” se provado esforço comum pelo interessado.

Outro tópico que merece atenção é que esse direito de escolha, pelo menos por enquanto, vale apenas para o maior de setenta anos de idade. Para os outros casos do art. 1.641 do Código Civil o regime da separação legal de bens continua sendo obrigatório. Exceto para o maior de 70 anos de idade, nos casos previstos no art. 1.641 do Código Civil, cabe a lavratura de pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável apenas com o objetivo de afastar a Súmula 377/STF, mas não pode ser escolhido outro regime de bens.

Seja como for, é sempre oportuno celebrar as normas e decisões que fortalecem a autonomia existencial e negocial das pessoas, o que equivale a respeitar suas opções de vida e o caminho que escolheram trilhar.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.