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Regime da separação legal de bens e o STF (ARE 1.309.642)

Carlos E. Elias de Oliveira aprofunda questões práticas do recente julgado do STF que autoriza pessoas maiores de setenta anos a escolherem o regime de bens do casamento.

2/2/2024

Na sessão de 1º de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu: nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.

A propósito, veja o art. 1.641 do CC:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; 

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Apesar de o inteiro dos votos ainda estar pendente de publicação, foi possível acompanhar os debates dos Ministros na sessão por meio da TV Justiça1.

Diante disso, passamos a expor nossas considerações sobre o tema.

No caso de septuagenário, o STF deu ao inciso II do art. 1.641 do CC interpretação conforme à Constituição Federal (STF, ARE 1.309.642/SP, Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 1º/02/2024). Estabeleceu que o regime da separação legal pode ser afastado por escritura pública: o art. 1.641, II, do CC não é norma cogente, e sim norma dispositiva (ou supletiva). Decidiu ser inconstitucional privar a pessoa idosa da liberdade de gestão patrimonial, inclusive na escolha de regime de bens do casamento ou da união estável.

O afastamento do regime da separação legal pode ocorrer destas formas:

a) por escritura pública de pacto antenupcial ou – no curso do casamento – por meio do procedimento legal de alteração de regime de bens (art. 1.639, § 2º, CC; art. 734 do CPC); ou

b) mediante escritura pública lavrada antes ou no curso da união estável.

Sobre esse último ponto (o da união estável), não se aplica a regra geral do art. 1.725 do CC, que admite instrumento particular para a escolha de regime de bens no caso de união estável. O STF exige escritura pública, que é lavrada por um tabelião de notas. Isso, porque o tabelião tem o dever de apurar a capacidade dos declarantes (art. 215, § 1º, II, CC), fato que reduzirá os riscos de golpes contra a pessoa idosa. Trata-se de cautela importante diante da maior vulnerabilidade a que podem estar expostas as pessoas idosas.

No caso de casamentos ou união estável anterior ao supracitado julgado do STF sob o regime da separação legal, é direito dos consortes mudar o regime de bens na forma acima.

Há alguns pontos sensíveis a serem enfrentados à vista do supracitado julgamento do STF. Passamos a expor nossa posição.

Em primeiro lugar, o STF não extinguiu o regime da separação legal. Este segue em vigor, com todas as suas particularidades. Não se confunde, portanto, com o regime da separação convencional. Citamos três exemplos de diferenças práticas:

a) o viúvo não concorre com descendentes no regime da separação legal de bens, ao contrário do caso do regime da separação convencional (art. 1.829, CC);

b) a outorga conjugal do art. 1.647 do CC é devida no regime da separação legal, e não no do regime da separação convencional;

c) os aquestos se comunicam no regime da separação legal se houver prova do esforço comum e não existir pacto antenupcial em sentido contrário, conforme Súmula nº 655/STJ ("Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum").

Em segundo lugar, o afastamento do regime da separação legal pelo septuagenário ocorre mediante a escolha de qualquer outro regime de bens, típico ou atípico. Até mesmo o regime da separação convencional pode ser pactuado, por ele ser diferente do regime da separação legal. É livre a estipulação do regime de bens (art. 1.639, CC). A única diferença entre o septuagenário e os demais é que o regime legal de bens é o da separação legal (art. 1.641, II, CC). Para as demais pessoas, o regime legal é o da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC).

Em terceiro lugar, caso o septuagenário escolha outro regime de bens (inclusive o da separação convencional), essa escolha tem de ser respeitada para todos os fins, inclusive para a interpretação do art. 1.829, I, CC. Esse dispositivo não permite o viúvo concorrer com os descendentes na herança se era casado no regime da separação legal ou em alguns outros regimes de bens.

Assim, se o septuagenário adotou outro regime de bens – diverso do da separação legal –, a interpretação do art. 1.829, I, do CC tem de levar em conta esse regime escolhido pelas partes. Interpretação diversa seria restringir a liberdade de escolha de regime de bens da pessoa idosa, em afronta ao supracitado julgado do STF.

Em quarto lugar, o afastamento do regime da separação legal por ato de vontade é apenas para o caso de pessoa maior de 70 anos (art. 1.641, II, CC). O STF não estendeu essa liberdade de escolha para as demais hipóteses de regime da separação legal: violação a causa suspensiva ou exigência de suprimento judicial (art. 1.641, I e III, CC).

Em quinto lugar, indaga-se: seria ainda tecnicamente valer-se da expressão regime da separação obrigatória como sinônima de regime da separação legal? Entendemos que sim, por dois motivos.

De um lado, o adjetivo “obrigatória” qualifica o substantivo “separação”, e não o verbete “regime”. Isso significa que a obrigatoriedade está na incomunicabilidade dos bens (separação dos bens), e não propriamente na imposição do regime.

De outro lado, nomenclatura tem de manter aderência à escolha legislativa: os arts. 496, parágrafo único, e 1.829, I, do CC valem-se da expressão regime da separação obrigatória. Seja como for, apesar da sinonímia, reputamos ser preferível valer-se da expressão regime da separação legal, para evitar incompreensões acerca do direito do septuagenário em afastá-lo por ato de vontade.

Enfim, podemos resumir o ambiente patrimonial do regime de bens da seguinte maneira.

Há dois regimes legais supletivos, assim batizados porque vigoram se não tiver havido escolha de outro regime pelos consortes pela forma legalmente cabível. São eles:

a) o regime da separação legal de bens envolvendo septuagenário (art. 1.641, II, CC);

b) o regime da comunhão parcial de bens, que se aplica aos demais casos em que se admite a liberdade de escolha do regime de bens.

Além disso, há um regime legal cogente: o regime da separação legal envolvendo suprimento judicial ou violação de causa suspensiva (art. 1.641, I e III, CC). Nesses casos, os consortes não podem afastar esse regime por ato de vontade.

Como se vê, o regime da separação legal pode ser cogente ou supletivo, a depender da sua origem.

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1 Disponível aqui. Também houve publicações nos noticiários jurídicos. Veja aqui.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.