O só evocar o seu nome, logo me vem à memória a figura de um homem vigoroso, boina displicentemente jogada sobre a calva, sorriso cativante e dentes perfeitos e alinhados. Francisco Rodrigues da Silva foi o responsável pela faxina da serventia à época em que eu era um mero auxiliar de Cartório.
Sempre chegava quando todos já se tinham retirado. Abria a porta pantográfica, acendia as luzes, e logo se punha a faxinar o velho Cartório de Registro de Imóveis. Ouvia um radinho de pilha que depositava cuidadosamente sobre os arquivos enquanto varria as salas, retirava as bitucas do cinzeiro, esvaziava os papeis do “cesto ofício”, espanava e lustrava os móveis.
À noite tudo se acalmava. Eu ficava até mais tarde, o silêncio era convidativo, sentia conforto na solidão. Os livros se fechavam, as máquinas que matraqueavam as certidões negativas de ônus e alienações silenciavam, cessava a conversa fiada dos escreventes em disputa com o burburinho no balcão. Chicão vinha restituir a ordem após um dia inteiro de inscrições, averbações, transcrições e palrações frouxas e irrelevantes que reverberavam nas paredes cinzas do cartório.
Quando me encontrava com o Francisco, sempre falávamos de amenidades, ríamos de qualquer bobagem, éramos felizes, alegres, despreocupados. Ele jamais se detinha nas suas tarefas e quando me via, logo abria um sorriso cativante, tomava a vassoura e parecia que dançava ao som que brotava do pequeno Spica posto sobre o velho fichário União.
Não sei dizer quando começou a trabalhar no Cartório. Pergunto-me: quantos anos ele teria quando iniciei a minha jornada na lida cartorária? Hoje faço as contas, 40, 42? Não sei dizer... Parecia-me que sempre estivera ali, natural como a ranzinzice dos velhos escreventes, a empáfia do Oficial Maior empertigado com sua gravata esmeralda. Era tão antigo quanto as pesadas Remington, os livros de transcrição e o Protocolo – livro primaz, chave de todas as chaves do cartório.
Com o passar do tempo, o infatigável Chicão começava a arquear. Pesava-lhe a idade e a faina diuturna de muitos anos, mas algo mais o debilitava. Começamos a perceber que bebia todas as noites. Chegava ao Cartório, abria as portas e janelas, e logo buscava entre os apetrechos de limpeza a garrafa de aguardente.
No início era só um trago; com o tempo, vieram outros, e outros... Quando terminava a faxina, já perto da meia-noite, estava embriagado. Saia errando, arrastando o chinelo de dedo, a boina posta de lado para equilibrar-se, o radinho Spica chiava denunciando onde se achava o cativante Chicão na penumbra do cartório. Ao sair, deixava as salas limpas e vazias e o silêncio reinava no velho casarão do cartório.
Chegou um tempo em que eu me preocupava com o velho Chicão. Certa feita, ele necessitou licenciar-se para tratamento de saúde. Cuidei de elaborar o pedido, protocolei-o na Corregedoria Geral de Justiça. Sua condição física deteriorava-se a olhos vistos e uma certa demência se pronunciava. Chicão já não sorria, não dançava, nem mesmo bebia, vivia atormentado por fantasmas.
Primeiro foi levado a um sanatório próximo da Serra, onde ficou internado vários dias. O Oficial titular, um homem bom, justo e generoso, lhe foi visitar. À saída sussurrou de modo sombrio: – “sofre o pobre homem; está enfermo e obnubilado”. Nunca tinha ouvido a expressão – obnubilação. A palavra me causou intuições indefiníveis e sombrias.
Os dias foram passando, Chicão renovava as licenças à medida que a saúde se agravava. A senilidade tomava conta. Um dia teve que ser internado num hospital psiquiátrico. Era um homem só, não tinha parentes, não tinha filhos, eu nada sabia de seus pais ou irmãos, ninguém podia cuidar do velho funcionário. O que fazer?
Os escreventes então se cotizaram e resolveram interná-lo num nosocômio psiquiátrico. Avisei o Oficial e partimos em silêncio, eu e o velho Chicão, rumo a uma conhecida instituição do interior. Deixei-o sob os cuidados de enfermeiros. Quando saia, virei-me e ainda vi que me lançava um olhar melancólico, tingido de triste resignação.
Dirigi de volta a São Paulo imerso em pensamentos sombrios. De repente, um grande e belo pássaro chocou-se com o para-brisa do automóvel. Brum. O baque surdo me assustou. Pude ver pelo retrovisor que o pássaro jazia na pista, inerte. O coração disparou, a saliva secou, uma intuição sombria tomou o meu coração.
A verdade é que jamais pude reencontrar o velho Chicão. Não nos despedimos, não pudemos trocar um aperto de mãos, não pude dar um abraço naquele homem bom, alegre e sincero. Parece que sua nobre missão terá sido limpar o mundo de tanta impureza e sujidades.
Hoje penso que o destino nos conduziu como náufragos às portas de um velho cartório. Ali nos encontramos entre livros e fichas, carimbos e penas, vassouras e sovelas. Nossa biografia, encardida de poeira, cerziu-se lentamente no tempo, bordeou-se da beleza e simplicidade de todas as histórias humanas verdadeiras.
Hoje Chicão é uma linda estrela solitária que se pode ver nas claras e límpidas madrugadas de inverno. Quem tem olhos para ver, que veja. O referido é verdade e dou fé.