Seu Vitinho era o Oficial-Maior do Registro de Imóveis da comarca. Era um homem de meia idade, atarracado, nervoso, mal cabia no terno cinza surrado e camisas puídas e amareladas. A gravata era verde esmeralda, destoava do conjunto, mas sempre lhe pareceu que o complemento o tornava ainda maior. Afinal, ele era o Oficial “Maior” da Serventia.
Já Seu João Arconte era o Oficial do Registro de Imóveis. Homem bondoso, tímido, de poucas palavras. Não tinha filhos. Era casado com Dona Rutinha Arconte, de quem se dizia ter sido escrevente autorizada em priscas eras. Era uma mulher de “boa família e fina estampa”, diziam os que um dia a conheceram. Com sorte se podia encontrar sua letrinha miúda e caprichada perenizada nalgum livro de transcrição das transmissões. Os mais velhos juravam que se devia a ela o fato de o Cartório jamais contratar mulheres.
Seu João Arconte havia acedido ao cargo de Oficial ainda na década de 50, por concurso público, nomeado pelo Governador do Estado. Encontrou o Cartório como o deixara o antecessor, importante figura da Primeira República. Mantinha o mobiliário que vinha de outras gerações de notários, escrivães, depois registradores. Ali havia carimbos, penas, mata-borrões, tinteiros, sovelas, prensas, mimeógrafos… O cartório terá sido sempre assim, cravado no mesmo lugar, imune à passagem de corregedores, promotores, advogados e do próprio tempo, que fluía lenta e preguiçosamente.
O prédio do Registro de Imóveis era um casarão de várias salas, cada qual com sua especialização: havia a sala de conferência, exame e extrato, a de certidão, a de transcrição. Os escreventes lavravam atos manuscritos por cópia dos extratos que eram redigidos pelos mais experientes. Havia ainda o arquivo, a sala do café e o balcão de atendimento das “partes”. No final do corredor, bem escondidinho, achava-se a saleta do Oficial. Seu João se deliciava em ouvir os clássicos na Rádio Eldorado enquanto prenotava os títulos, sempre munido de sua Parker 51 e de seus indefectíveis óculos Persol 649.
Escreventes, auxiliares, fiéis…
Os escreventes, auxiliares, fiéis, formavam um grupo heterogêneo. Era como se fossem colegiados de uma ordem muito especial. Havia cerimônias que se repetiam, tal qual no noviciado. Uma delas era o rito de iniciação. Quando um jovem auxiliar ingressava no cartório, logo o submetíamos a uma tarefa “muito importante”. Encarregávamos o moleque de realizar uma grave missão: deveria encomendar uma nova pedra de “amolar carimbo” na vetusta Papelaria Bambino. A pedra em uso, dizíamos cerimoniosos, estava “cega”. O jovem então saía às ruas imbuído da nobre incumbência. Todos nós ficávamos espiando para ver quando voltava de mãos abanando e soprando pelas ventas.
Tudo isto era motivo de boas gargalhadas e não raro o jovem ganhava, ali mesmo, um apelido que o acompanharia pelo resto de sua vida. Sim, antes que eu me esqueça, quem ingressava num cartório, raramente dele saía. Cartórios eram mais do que um mero trabalho; representavam um “nobile officium”. Havia o “Pezão”, o “Melão”, o “Alemão” (esse era eu), o “Bodão”, o “Fininho”, o “Tim” (Maia), o Bepo, o Camonga… quantos apodos! Hoje soaria muito mal chamar alguém de “Camonga” (de camundongo), mas eram outros tempos. Às vezes as diferenças se resolviam nas vias de fato.
Os ritos probatórios dos jovens eram variados. Encarregava-se o noviço de lavar papéis-carbono ou de enxaguar fitas das máquinas de escrever, instávamos os noviços a comprar “selos raros” na Coletoria Estadual. O velho coletor já sabia das patranhas dos cartorários e de bom coração aproveitava o ensejo para aconselhar o bom menino. Além de coletor, “Seu” Jaziel Silveira era pastor evangélico…
Sempre nos divertíamos quando uma parte se irritava e alterada bradava do balcão – “quero falar com o Oficial MAIOR, entenderam?!”. Todos nós sabíamos que o oficial maior não era muito mais do que qualquer dos nossos escreventes autorizados. Espiávamos de soslaio e lá vinha ele, o Oficial-Maior, enfezado como um delegado de polícia que fosse despertado de uma soneca no plantão vespertino.
“Seu” Vitinho mal sabia de leis e provimentos, era um prático, mas dava bons conselhos e orientações. Quando confrontado, metia-se a falar num jargão inexpugnável que poucos compreendiam além das fronteiras do balcão do cartório. A “parte” saia dali sem entender muita coisa, mas confortava-se com o fato de ter podido “reclamar com o bispo”, não com o baixo-clero cartorário.
A tecnologia no passar do tempo
Havia no arquivo do cartório uma coleção de máquinas de escrever e de somar. Porém, uma geringonça misteriosa sempre me chamava a atenção – os mais velhos diziam tratar-se da gelatina. Era um apetrecho desajeitado, coberto com uma manta borrada de tons arroxeados. Diziam que era para reproduzir extratos antes do advento da moderna reprografia.
O “gelatinógrafo” dorme o seu sono eterno, ao lado da prensa, dos carimbos, da sovela e seus colchetes, do mimeógrafo. Aliás, eu era perito na datilografia às cegas sobre o estêncil e acho, mesmo, que ficava embriagado aspirando o vapor de álcool à medida que reproduzia os extratos. O resultado me parecia deveras lindo e maravilhoso.
Eu vivi este cartório e posso lhes dizer que ele ainda vive em mim. Penso como cartorário, ajo como cartorário, lavro atos como os velhos cartorários. Suscito dúvidas sem qualquer hesitação verdadeira… Os que se achegam ao cartório, chamo-os de “partes”, jamais de “utentes” ou de “clientes”.
Hoje vivo com os fantasmas que povoam a minha memória. Eles habitam o velho casario do cartório, assentam-se no canto das salas de audiência, perambulam pelos corredores do fórum, deleitam-se com a beleza exuberante do entardecer pelas janelas do sobrado.
Todos eles partiram, mas deixaram o menino cartorário encarregado de contar suas lembranças e afetos. Nada mais a certificar. O referido é verdade e dou fé.
__________
* Esta crônica é dedicada a meus mestres, Ademar Fioranelli e João Baptista Galhardo. O primeiro, por sua vida profissional exemplar e sua generosidade inigualável; o segundo, além de tudo disso, por ser o nosso cronista maior. Peritos na arte registral, mestres na pena.