Migalhas Notariais e Registrais

Vésperas do SERP: uma ideia fora do lugar – Parte III

Veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do Direito brasileiro.

4/10/2023

No artigo anterior1, vimos como nasceram as entidades registradoras e se inaugurou um novo regime registral das garantias reais e mobiliárias ao lado do sistema tradicional de publicidade jurídica. Na sequência, veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do direito brasileiro.

A MP 897/2019 – a entidade registradora "registral"

A tramitação do PLC 30/2019 (MP 897/2019, convertida afinal na lei 13.986/2020) revelaria o movimento concentrado, e muito bem orquestrado, no sentido de se buscar a modificação dos paradigmas do sistema de registro de direitos e de distribuição de competências e funções notariais e registrais. No relatório final do dito PLC 30, apresentado pelo deputado PEDRO LUPION, houve a tentativa de incluir, na redação derradeira, a criação de uma Central Nacional de Registro Imobiliário (art. 51)2. Na complementação de voto, o nobre deputado ainda alteraria a redação do art. 51 "para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica". A emenda assim achava-se redigida:

"art. 51 do PLV: alteração do caput para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica; alteração no §2° para conferir maior abrangência ao recebimento eletrônico de títulos pela Central Nacional de Registro de Imóveis; supressão do §3º, pois o ato notarial somente adquire eficácia após sua confirmação pelo registro; e alteração do §7°, renumerado para §6°, para atribuir ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e o funcionamento da Central Nacional de Registro de Imóveis"3.

A ideia de uma entidade registradora, ou como preferia o Deputado DENIS BEZERRA – Central Nacional de Gravames –, se insinuava nos debates legislativos de modo discreto. Assim a concebia o ilustre deputado (e notário) do Ceará:

"Por fim, a criação de uma central nacional de gravames atende a uma necessidade do mercado de crédito, para que o agente financiador possa obter, de maneira rápida e efetiva, informações sobre a capacidade de pagamento e grau de endividamento do produtor, de forma a avaliar mais assertivamente o risco de crédito e as garantias ofertadas e ter uma plataforma de acesso aos cartórios. Quanto mais fácil e transparente foram essas informações, mas rápida será a concessão do crédito e mais fortes serão as garantias recebidas pelo financiador".

Com fundamento nesta justificativa, o deputado apresentaria sua emenda, cujo teor era o seguinte:

"Art. XXX. Fica criada a Central Nacional de Gravames organizada pelos registradores de imóveis, em cooperação com os registradores de títulos e documentos e tabeliães de protesto, e que compreenderá os registros de garantias, gravames, constrições judiciais, indisponibilidades e protestos, indexados a partir do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), ou número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda (CNPJ). Parágrafo único. Até 31 de julho de 2022 todos os atos anteriores constantes e vigentes até a edição desta lei serão inseridos na base de dados da Central Nacional de Gravames"4.

Todo o minucioso arcabouço então criado acabou soçobrando por um despacho lacônico do Presidente da Mesa Diretora:

"Comunico ao Plenário que a Medida Provisória n. 897/2019 recebeu 350 (trezentas e cinquenta) emendas parlamentares e que a Comissão Mista, no Parecer n. 1/2019, concluiu pela apresentação do Projeto de Lei de Conversão n. 30/2019.

Na esteira do entendimento externado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.127, ocorrido em 15 de outubro de 2015, e nos termos do artigo 7º, II, da Lei Complementar n. 95/1998 e dos artigos 55, parágrafo único, e 125 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados - RICD, considero como não escritos o § 2º do art. 19 e os arts 51, 62 e 63 do Projeto de Lei de Conversão n. 30/2019, por não guardarem relação temática com a Medida Provisória n. 897/2019"5.

Assim terminaria esta aventura de centralização – de modo melancólico e infrutífero. A proposta que havia sido veiculada pelo Dep. LUPION acabou por revelar pontos de contato com a MP 1.085/2021, como veremos a seu tempo. A comparação entre elas pode ser bastante instrutiva por permitir retraçar a autoria das propostas que seriam consumadas no futuro com o advento da MP 1.085/2021, depois convertida na lei 14.382/2022.

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1 JACOMINO. Sérgio. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte II. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais.

2 Parecer CN 1/2019 da Comissão Mista do CN. Relator Dep. PEDRO LUPION in Diário da Câmara dos Deputados, n. 221, de 10/12/2019, p. 1.311.

3  Complementação de voto do Dep. PEDRO LUPION, loc. cit. p. 1.375. A leitura atenta do relatório revela os íntimos pontos de contato com as propostas ensejadoras da MP 1.085/2021.

4 Emenda 222, de 8/10/2019, Dep. DENIS BEZERRA. In Diário da Câmara dos Deputados n. 221, de 10/12/2019, p. 973-4. A CNG – Central Nacional de Gravames não vingou na lei 14.382/2022, embora seus apologistas ainda insistam na sua consagração – seja na regulamentação ou mesmo na prática do SERP. ABELHA. André. CHALHUB. Melhim Namem. VITALE. Oliver. Org. Sistema Eletrônico de Registros Públicos – lei 14.382 de 27 de junho de 2022 comentada e comparada, p. 27, n. 4.

5 Dep. CÉSAR MAIA, despacho de 11 de fevereiro de 2020. O projeto seria aprovado na sessão de 18/02/2020 e encaminhada ao Senado Federal, convertido na lei 13.986/2020.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

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Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.