I. Noção geral
No caso de violação de deveres jurídicos, o infrator pode ser responsabilização. A responsabilidade é uma consequência da violação de um dever jurídico. Parafraseando Karl Larenz, a responsabilidade é a sombra da obrigação1.
Os cada ramo do Direito estabelece os deveres jurídicos pertinentes e disciplina a correspondente responsabilização.
No Direito Penal, os tipos penais estabelecem deveres jurídicos que, se violados, acarretam uma responsabilidade penal. Por exemplo, o art. 121 do Código Penal2 estabelece o dever jurídico de não matar. A violação desse dever acarreta, como responsabilidade penal, a sujeição do infrator a pena de reclusão de seis a vinte anos. Grosso modo, a responsabilidade penal consiste em punições, entre as quais se destaca a prisão (pena restritiva da liberdade). Há também outras penas alternativas à prisão, como as penas restritivas de direito, a exemplo da prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, e as multas3.
No Direito Administrativo, as normas também estabelecem deveres endereçados não apenas aos agentes públicos, mas também a particulares. E fixam a responsabilidade administrativa para os diversos casos.
No caso de particulares, há diferentes hipóteses. Se um particular viola, por exemplo, o dever de não dirigir o veículo acima da velocidade-limite da rodovia, ele é sujeito a uma responsabilidade administrativa disciplinada no Código de Trânsito Brasileiro, a qual consiste em punições como multa pecuniária, cassação da Carteira Nacional de Habilitação e outras4. Se, porém, o particular viola deveres oriundos de um contrato administrativo celebrado com o Poder Público, ele sofrerá uma responsabilização administrativa disciplinada pela Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a qual envolve, entre outras penalidades, a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar5.
No caso de agentes públicos, é preciso ver a legislação específica6, mas, em geral, todas as leis especiais punem o agente infrator a uma responsabilidade administrativa que, entre outras punições, envolvem o seu desligamento total do serviço público, geralmente sob o nome de demissão.
No Direito Civil, há deveres jurídicos (como de não causar dano a outrem por culpa7) cuja violação acarreta a responsabilização civil do infrator. A responsabilidade civil consiste em indenização.
Como se vê, cada ramo do Direito ostenta espécies de responsabilidade própria. De modo geral, temos três tipos de responsabilidade: a penal, a administrativa e a civil. Há, porém, tipos específicos de responsabilidade que oscilam entre esse trio. É o caso da improbidade administrativa, que envolve elementos de responsabilidade administrativa e de responsabilidade civil. Além disso, mesmo dentro da responsabilidade administrativa, pode haver uma concorrência de diferentes subespécies de responsabilidade administrativa.
No caso dos oficiais extrajudiciais, que são agentes públicos, eles estão sujeitos a responsabilização penal, civil e administrativa, além de ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa.
II. Princípio da independência das instâncias
As instâncias de responsabilidade são, em regra, independentes8. Trata-se do princípio da independência das instâncias.
Isso significa que uma pessoa pode ser alvo de uma artilharia de responsabilidades em razão da prática de um único ato que, simultaneamente, seja considerado ilícito nas diferentes esferas.
Um agente público federal, por exemplo, ao praticar um determinado ato que configure simultaneamente uma ilicitude nas diferentes esferas de responsabilização, pode vir a ser responsabilizado:
a) administrativamente com diferentes punições, oriundas de diferentes subespécies de responsabilidade administrativa (ex.: uma multa infligida pelo Tribunal de Contas da União (com base na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União9; a demissão do cargo público aplicada pelo ente público; uma multa por uma condenação em ação de improbidade administrativa10; uma multa aplicada pelo órgão de trânsito; uma multa aplicada pelo órgão ambiental; etc.);
b) penalmente com a prisão;
c) civilmente com a indenização.
Há, porém, exceções à independência ao princípio da independência das instâncias.
A mais conhecida é o principal efeito pamprocessual do processo criminal: a decisão criminal que decide a autoria ou a materialidade vincula as demais esferas.
Se, por exemplo, um cidadão é absolvido pelo juízo criminal por ter comprovado não ter sido o autor do fato, esse aspecto (a não autoria) obrigatoriamente tem de ser levada em conta nas demais esferas de responsabilização, o que provavelmente acarretará a inocência.
As leis específicas costumam dar suporte a esse efeito pamprocessual do processo penal11.
Nesse contexto, o delegatário dos serviços notariais e registrais é um agente público, na categoria de particular em colaboração com o Estado por ter recebido uma delegação de serviço público. Ele, também, está sujeito à artilharia de responsabilização no caso de praticar um ato que, cumulativamente, seja considerado ilícito nos diferentes ramos do Direito.
A particularidade é a de que, dentro da responsabilidade administrativa, o delegatário é uma subespécie própria, disciplinada pela Lei de Notários e Registradores – LNR (Lei nº 8.935/1994) –, que, entre outras penalidades, envolvem a pena capital: a perda da delegação.
Assim, em tese, pela prática de apenas um ato, o oficial pode ser uma chuva de bombardeio de responsabilização, com disparos provenientes da:
a) responsabilidade administrativa pelas diferentes subespécies, envolvendo penalidades como perda da delegação com base na LNR, multa pelo município por eventual infração de norma de postura municipal, multa pelo órgão ambiental etc.;
b) responsabilidade criminal, com a prisão ou outras sanções penais;
c) responsabilidade civil, com a indenização; e
d) responsabilidade por improbidade administrativa.
As instâncias são independentes, em regra. Os arts. 23 e 24 da LNR lembra isso. Veja:
Art. 23. A responsabilidade civil independe da criminal.
Art. 24. A responsabilidade criminal será individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a administração pública.
Parágrafo único. A individualização prevista no caput não exime os notários e os oficiais de registro de sua responsabilidade civil.
A LNR, porém, é omissa quanto ao efeito pamprocessual da sentença criminal que decide a autoria ou a materialidade.
Entendemos, porém, que esse efeito é aplicável, porque o seu fundamento é o fato de que o juízo criminal é o mais rigoroso de todos em termos de apuração probatório, por buscar a verdade real (e não a verdade formal), tudo por envolver a ameaça ao principal bem de um indivíduo: a liberdade.
Assim, se o juízo criminal reconhece que está comprovado que determinada pessoa não foi a autora do fato ou que ela não praticou determinada conduta, todas as demais esferas de responsabilização estão vinculadas e, portanto, deverão apreciar o regime de responsabilidade com base na premissa fática desenhada pelo juízo criminal.
O fundamento para esse entendimento é que, diante do silêncio legal, é preciso aplicar, por analogia, os dispositivos que preveem esse efeito pamprocessual da sentença criminal que decide a autoria ou a materialidade em relação à instância civil para afastar a indenização (art. 935, CC), à instância administrativa para repelir a punição do servidor público federal (art. 126, lei 8.112/1990), à instância da improbidade administrativa (art. 21, § 3º, da Lei de Improbidade Administrativa – lei 8.924/1992). Confira-se:
Código Civil
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
Lei 8.112/1990
Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.
Lei 8.924/1992 (Lei de Improbidade Administrativa)
Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:
(...)
§ 3º As sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria.
__________
1 "Karl Larenz afirmou, em fase célebre e muito repetida: “Embora a responsabilidade se diferencie conceitualmente da obrigação (o dever prestar), segue-a igual a uma sombra." (Die Haftung ist zwar von der Schuld, dem Leistensollen, begrifflich zu sondern, sie folgt ihr aber gleichsam wie ein Schatten nach.) (Larenz, 1987, pp. 23-4)” (OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2023, p. 751).
2 "Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. (...)"
3 Arts. 43 a 52 do Código Penal.
4 Art. 256 do Código de Trânsito Brasileiro lista as penalidades.
5 Art. 156 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133/2021).
6 Servidores públicos federais sujeitam-se, em regra, à lei 8.112/1990. Servidores públicos estaduais e municipais, às pertinentes leis da pertinente esfera federativa. Algumas categorias de agentes públicos (federais, estaduais ou municipais) submetem-se a regime jurídico próprio, caso dos magistrados (sujeitos à Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN – Lei Complementar nº 35/1979), dos membros do Ministério Público (suscetíveis à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – lei 8.625/1993)
7 Art. 186 do Código Civil – CC.
8 Por exemplo, o art. 125 da Lei nº 8.112/1990 dispõe: Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.
9 Lei 8.443/1992.
10 Art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992).
11 Ilustrativamente, citam-se o art. 126 da lei 8.112/1990 (“Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvoição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”) e o art. 935 do CC (“Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”).