Migalhas Notariais e Registrais

Infração disciplinar por tabeliães e registradores e a tipicidade material

Imagine, por exemplo, um registrador que atrasou a entrega de uma certidão em uma única oportunidade durante sua carreira profissional. Seria razoável aplicar-lhe sanção disciplinar por esse ato isolado?

6/9/2023

I. Tipos Disciplinares

O regime administrativo-disciplinar dos oficiais extrajudiciais está na lei 8.935/1994 (Lei de Notários e Registradores – LNR).

As infrações disciplinares que dão ensejo à responsabilização administrativa estão indicadas no art. 31 da LNR, que preveem tipos disciplinares abertos (assim entendidos aqueles que possuem uma redação capaz de abranger diversos atos). Tipos disciplinares são as condutas consideradas ensejadoras de responsabilização disciplinar.

Por exemplo, o art. 31, I, da LNR prevê, como infração disciplinar, a “inobservância das prescrições legais ou normativas”, o que acaba por abarcar inúmeros casos concretos.

Igualmente, o art. 31, V, da LNR estampa, como tipo disciplinar, o descumprimento de qualquer dos deveres descritos no art. 30. Entre esses deveres, há diversos que caracterizam normas abertas, com aptidão para alcançar diversas condutas. Ilustrando, o inciso II do art. 30 da LNR prevê o dever de o oficial “atender as partes com eficiência, urbanidade e presteza”.

Pode haver outros dispositivos legais que também prevejam, de modo específicos, tipos disciplinares. É o caso, por exemplo, do art. 39, VI, da LNR, que prevê, como infração disciplinar digna da pena máxima (a de perda de delegação), o descumprimento comprovado do dever de prestar gratuitamente o serviço de registro civil de nascimento e de óbito e de emissão da primeira certidão.

II. Enquadramento típico-disciplinar

O enquadramento típico-disciplinar é verificar se a conduta do oficial se encaixa ou não em um dos tipos disciplinares, os quais estão listados no art. 31 da LNR.

Esse procedimento não se resume a um exame meramente formal, baseado em uma mera conferência gramatical e semântica (tipo formal).

É forçoso também, dentro de um juízo de razoabilidade, analisar o grau de reprovabilidade e gravidade da conduta a ponto de ela ser considerada relevante do ponto de vista disciplinar (tipo material). Os tipos disciplinares não são meramente formais, mas também precisam ser materiais. Trata-se de exame próprio de qualquer atividade disciplinar1.

Há condutas que, embora se enquadrem no tipo formal (por conta do enquadramento semântico-gramatical da conduta no texto frio do art. 31 da LNR), não caracterizam o tipo material pela falta de relevância ou de razoabilidade.

Mera irregularidade não necessariamente é infração disciplinar. Há irregularidades que não devem ser tratadas sob a ameaça punitivo-disciplinar. Trata-se de um juízo de razoabilidade a ser feito pela autoridade competente.

Imagine, por exemplo, um registrador que atrasou a entrega de uma certidão em uma única oportunidade durante sua carreira profissional. Seria razoável aplicar-lhe sanção disciplinar por esse ato isolado? 

Parece-nos que não, por falta de tipicidade material. No máximo, sem qualquer punição disciplinar, a autoridade competente poderia simplesmente fazer recomendações de natureza gerencial para o registrador.

Cabe à autoridade julgadora perquirir cada caso concreto, sob a ótica da razoabilidade, para identificar se a irregularidade é ou não típica materialmente (ainda que o seja sob uma ótica meramente formal). Nesse exame, a autoridade deverá verificar o grau de reprovação da conduta, o nível de culpa ou dolo, os efetivos prejuízos concretos e outros elementos.

Por exemplo, suponha um caso de um tabelião que, por fraude de um funcionário, é enganado quanto ao efetivo recolhimento dos repasses obrigatórios de parte dos emolumentos aos fundos previstos em lei. Se efetivamente for identificado que o funcionário fraudava comprovantes de recolhimentos para enganar o registrador e desviava para si os pagamentos, parece-nos que não é se trata de situação atrativa de punição disciplinar contra o oficial, especialmente se este se dispuser a imediatamente a reembolsar o desfalque.

Situação diferente é se o tabelião estivesse envolvido nessa fraude, hipótese em que o comportamento criminoso atrairia punição máxima.

Enfim, na análise da tipicidade material, o juízo de razoabilidade é fundamental pelo fato de estarmos a tratar de atividade humana, que tem de conviver e tolerar pequenos erros oriundos da falibilidade natural da natureza de todo ser humano. A punição é reservada a hipóteses em que fujam ao que é ordinariamente tolerável, o que é linha de difícil identificação, fruto de juízos de ponderação na avaliação da tipicidade material. A própria LINDB, ao tratar de Direito Administrativo Sancionatório, caminha nesse sentido, ao estabelecer que a autoridade correcional deve atentar para conceitos como invalidade referencial (art. 24), convalidação por compromisso com ou sem compensação (arts. 26 e 27) e outros[2].

No caso de faltar tipicidade material, o caso é apenas de a autoridade julgadora emitir eventual recomendação de índole meramente orientativa, sem caráter punitivo, para aprimoramento dos serviços notariais e registrais.

Trata-se de conceito elementar do Direito Administrativo Sancionador, extensível ao regime disciplinar dos tabeliães e dos registradores.

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1 Sobre o tema, reportamo-nos a estes artigos: (1) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Competência para fiscalizar atividade jurídica de membros da advocacia pública federal: TCU ou órgão correcional próprio? Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24056/competencia-para-fiscalizar-atividade-juridica-de-membros-da-advocacia-publica-federal-tcu-ou-orgao-correcional-proprio. Publicado em 01/04/2012; (2) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O juízo de proporcionalidade na fase de instauração de procedimentos disciplinares. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24057/o-juizo-de-proporcionalidade-na-fase-de-instauracao-de-procedimentos-disciplinares. Publicado em 26/03/2013; (3) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. A Segurança Hermenêutica nos vários ramos do Direito e nos Cartórios Extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, junho/2018. Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Publicado em 20 de junho de 2018.

2 Reportamo-nos a este artigo para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. A Segurança Hermenêutica nos vários ramos do Direito e nos Cartórios Extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, junho/2018. Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Publicado em 20 de junho de 2018.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.