Migalhas Notariais e Registrais

O reforço do sistema de garantias do agronegócio brasileiro e a lei 14.421/22

Esse artigo buscou demostrar de forma simples e objetiva as principais disposições trazidas pela lei, destacando três regimes que foram aperfeiçoados.

5/7/2023

O Agronegócio é um dos setores econômicos mais relevantes do Brasil, sendo responsável, do ponto de vista econômico, por quase 30% (trinta por cento) do Produto Interno Bruto brasileiro. A cadeia produtiva agrícola e pecuária brasileira movimentou em 2020 cerca de R$ 1.98 trilhão de reais1, e, apesar das oscilações, as cifras permanecem altas. Esse setor econômico envolve atividades fundamentais para o crescimento do país e para desenvolvimento social, já que engloba desde as commodities exportadas até a produção dos alimentos consumidos pelas famílias brasileiras.

Essa pujança econômica da produção rural brasileira, contudo, não está imune a riscos consideráveis. O agronegócio, diferentemente de outros setores, depende necessariamente de ciclos biológicos e está intimamente ligado ao risco da agrariedade.2 Isto significa dizer que além de eventuais riscos econômicos e financeiros, como oscilações de preços no mercado externo e variações cambiais, a produção agrária também pode ser afetada por riscos naturais, como problemas climáticos, pestes e infestações ou insucesso de safras.

Esses riscos inerentes ao Agro elevam a importância da existência de um mercado de crédito bem estruturado e de fácil acesso, com oportunidades de financiamento da produção a baixos custos de transação. Para tanto, se afigura fundamental que o sistema de garantias atrelado aos financiamentos seja seguro e eficaz, já que permite uma redução significativa dos custos envolvidos e principalmente dos juros cobrados.3

Esse movimento de reforço do sistema de garantias dos financiamentos voltados ao agronegócio tem se intensificado nos últimos tempos, e ganhou um novo capítulo com a edição, em 20 de julho de 2022, da lei 14.421/224, decorrente da conversão da medida provisória 1.104/22. O diploma legal, que está prestes a completar 1 anos, estabelece a alteração de diversas outras leis relacionadas com o sistema de garantias dos financiamos voltados ao agronegócio, procurando dar maior segurança e eficácia por meio da simplificação de procedimentos de emissão de documentos de garantia e do respectivo registro, ampliação dos agentes financiadores e dos legitimados a obter tais financiamentos e aperfeiçoamento de fundos garantidores e de investimento. Além disso, a lei procura potencializar dois tipos de garantias vinculados diretamente ao agronegócio: o penhor rural e o novel instituto do patrimônio rural em afetação.

O presente artigo tem por objetivo analisar, de forma breve, as principais alterações trazidas pela lei 14.421 de 2022 do ponto de vista registral.

Modernização do regime do Penhor Rural

O penhor rural é modalidade especial de penhor previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro nos artigos 1.438 e ss do Código Civil e a regulamentação e os procedimentos são estipulados em leis esparsas. Ele comporta duas espécies que variam de acordo com as coisas empenhadas, sendo o penhor agrícola aquele no qual o objeto compreende máquinas e equipamentos da agricultura a colheitas, frutos e animais de serviço5 e o penhor pecuário que abrange os animais que integram a atividade agropastoril e leiteira.6

A principal característica desse tipo de penhor especial está no fato de ele se dar de forma não possessória, permitindo que o devedor (via de regra, o produtor rural) ofereça em garantia bens que permanecerão em sua posse.7 Diferentemente do penhor comum, no penhor rural o credor não recebe a coisa empenhada, que permanecerá no controle do produtor rural, permitindo que ela seja integralmente utilizada no desenvolvimento da atividade agrária.

O penhor rural, em razão dessa característica, possui uma grande potencialidade de aplicação, pois permite que o produtor rural ofereça uma garantia real por meio da afetação de coisas inerentes à sua atividade. O produtor rural pode empenhar tanto coisas já existentes, como as “máquinas e instrumentos de agricultura”, os “frutos acondicionados ou armazenados” ou “os animais que integram a atividade”, quanto bens futuros como “colheitas pendentes, ou em via de formação”.

Pensando nessa grande utilidade do instituto, a lei 14.421/22 veio propor uma modernização no regime desse penhor especial, procurando trazer mais eficiência para as leis que regulamentam os instrumentos financeiros aos quais o penhor será vinculado. Neste sentido, a norma, por exemplo, altera disposições da lei 492/37 (que regula o penhor rural e a cédula pignoratícia), do decreto-lei 167/67 (que dispõe sore os títulos de crédito rural) e da lei 8.299/94 (que instituiu a cédula de produto rural).

Em relação à primeira lei, a alteração traz modernidade para o contrato de penhor rural ao permitir que, quando celebrado por escritura particular, ele seja celebrado por assinatura eletrônica.

Em relação ao último diploma mencionado, a mudança objetivou um aperfeiçoamento do objeto do penhor vinculado à CPR (Cédula de Produto Rural). Ampliou-se o rol de bens que podem ser enquadrados como “produtos rurais” para incluir aqueles resultantes da cadeia agroindustrial e os insumos de produção e comercialização. Além disso, também há uma ampliação do rol dos legitimados a emitir a CPR e modernização dos meios de celebração e registro do penhor, que passam a admitir a assinatura eletrônica.

Mas as maiores contribuições da lei 14.421/22 para o regime do penhor rural decorrem das alterações realizadas no decreto regulamentador dos títulos de crédito rural. Em primeiro lugar, porque a partir da vigência da lei a constituição de penhores subsequentes passa a ser mais simples e eficaz, bastando a celebração de um novo penhor cedular em grau subsequente. Ademais, a eventual prorrogação da garantia por subsistência dos bens passa a dispensar a averbação na margem do registro. Da mesma forma, a eventual prorrogação da garantia decorrente da prorrogação do vencimento da dívida não mais dependerá da lavratura de termo aditivo, sendo eficaz após a mera anotação desta no instrumento do crédito.

Como apontado, essas alterações são relativamente simples do ponto de vista procedimental, mas tem o mérito de possibilitar uma modernização do regime de constituição e registro do penhor rural que traz maior segurança e eficácia para essa garantia real tão importante para o setor do agronegócio.

Aperfeiçoamento do regime do Patrimônio Rural em Afetação

O patrimônio rural em afetação é um novo tipo de garantia previsto no ordenamento jurídico brasileiro a partir da promulgação da chamada Lei do Agro (13.986/2020). Segundo a própria lei, no seu artigo 7º, esse instituto permite que o proprietário do imóvel rural afete a integralidade ou a fração desse imóvel em garantia de um débito. A técnica da afetação permite ao titular de um patrimônio ou acervo patrimonial segregar uma parte dele com o propósito de estabelecer um regime garantidor específico em favor de credores.8

Essa interessante técnica de garantia9, contudo, foi instituída pela Lei do Agro com certos problemas procedimentais e dúvidas sobre a sua abrangência, em especial pelas controvérsias em torno da sua natureza jurídica. Eles, contudo, parecem solucionados com o advento da lei 14.421/22, que traz definições importantes sobre a matéria e consequentemente aperfeiçoamento do regime legal do patrimônio rural em afetação.

Neste sentido, o diploma ora em análise adicionou dois novos parágrafos ao já mencionado art. 7º da Lei do Agro para estipular (i) que o patrimônio rural em afetação tem natureza real, constituindo um direito real de garantia sobre o bem afetado; (ii) não se confunde com a alienação fiduciária em garantia de imóvel, mas deve observar as regras procedimentais estipuladas pelo Código Civil e pela lei 9.514/97 quanto ao regime de excussão do patrimônio.

Além disso, por meio da alteração do art. 9º da Lei do Agro, a lei 14.421/22 soluciona as dúvidas que pairavam sobre a forma de constituição dessa nova garantia real do agronegócio. Assim, resta esclarecido que o patrimônio rural em afetação será constituído por meio de requerimento do proprietário de registro da garantia na matrícula do imóvel, sendo essencial a descrição do imóvel ou da fração do imóvel afetado. Para tanto, também foi alterado o art. 167 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), com a inclusão do patrimônio de afetação como direito registrável na matrícula do imóvel, solucionando-se assim um problema burocrático e operacional que persistia.

Tais alterações permitem o aperfeiçoamento do regime dessa nova técnica de garantia, com natureza real, que possui uma enorme relevância no setor do agronegócio. Por meio da instituição do patrimônio rural em afetação o produtor que seja proprietário de um imóvel rural pode obter financiamentos e investimentos oferecendo não só a totalidade da sua propriedade (como ocorre na alienação fiduciária e na hipoteca), mas de uma fração dela. Essa garantia estabelecida sobre a fração afetada terá natureza real, o que possibilita uma maior eficiência em sua eventual excussão (ou seja, na utilização do bem para pagamento da dívida) e deverá ser registrada na matrícula do imóvel, o que traz a segurança e reduz os custos de transação do financiamento.

Mudanças de Regras e procedimentos de Fundos do Agronegócio

A lei 14.421/22 também trouxe alterações relevantes nos fundos de investimento ou de garantia vinculados ao Agronegócio por via de reformas na lei 8.668/1993 e na Lei do Agro.

Por um lado, a partir de uma alteração no artigo 20-A da lei 8.668/93, foi ampliado o rol de destinatários dos investimentos realizados no Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (FIAGRO)10. Com isso, qualquer sociedade que explore atividade ou qualquer ativo financeiro emitido pelas pessoas jurídicas inseridas na cadeia produtiva do agronegócio podem ser destinatários dos recursos do FIAGRO, que anteriormente estava restrito àqueles participantes da cadeia produtiva agroindustrial. Ademais, os recursos desses fundos podem ser aplicados em direitos creditórios imobiliários relativos a imóveis rurais, ativos financeiros, títulos de securitização, FIDCs, entre outros instrumentos financeiros emitidos por produtores inseridos na cadeia do agronegócio.

Por outro lado, por meio de alterações nos artigos 1º, 3º e 6º da Lei do Agro, foram aprimorados as regras e os procedimentos relacionados com o Fundo Garantidor Solidário (FGS)11, que tem como objetivo a garantia das operações financeiras e dívidas decorrentes da atividade empresarial rural por meio da participação de pelo menos dois devedores e um garantidor. A primeira das modificações é a exclusão do âmbito de abrangência do FGS do financiamento para implantação e operação de infraestruturas de conectividade rural. A segunda é clarificação quanto à estrutura e procedimento do FGS, que será composto por duas cotas sem limitação de valores, sendo uma primária de responsabilidade dos credores e outra secundária de responsabilidade do garantidor. Por fim, a terceira esclarece e sistematiza as disposições essenciais do estatuto do FGS, que precisa prever, entre outras coisas, a forma de constituição do fundo, a sua administração, as taxas a serem pagas, a forma de utilização dos recursos e a gestão dos ativos.

Conclusão

Como visto, o setor do Agronegócio, ao mesmo tempo que tem inegável protagonismo econômico, está permeado de riscos que muitas vezes dependem da busca pelos produtores rurais de financiamento ou investimento externo. Em razão disso, se afigura essencial a existência de um mercado de crédito robusto e com custos reduzidos, que por sua vez acaba dependendo de um sistema de garantias seguro e eficiente.

Nos últimos anos o legislador brasileiro tem se preocupado com esse ponto, e buscado a simplificação e modernização do sistema de garantias do agronegócio. Esse movimento ganha mais um capítulo com a edição da lei 14.421/22.

Esse artigo buscou demostrar de forma simples e objetiva as principais disposições trazidas pela lei, destacando três regimes que foram aperfeiçoados. Neste sentido, evidenciou-se que a mencionada lei, buscou dar um maior dinamismo e segurança ao penhor rural, clarificar dúvidas sobre o patrimônio rural em afetação e alterar algumas regras e procedimentos do FIAGRO e do FGS. Acredita-se que são alterações que possuem relevância e que podem servir para um maior fortalecimento do mercado de crédito do agronegócio por meio do reforço do sistema de garantias.

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1 Como mostra a pesquisa Panorama do Agro realizada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA): https://cnabrasil.org.br/cna/panorama-do-agro.

2 Conceito bastante trabalhado pela doutrina agrarista brasileiro que pode ser conferido em: DE MATTIA, Fábio. Métodos e conteúdo do direito agrário. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 93, p. 135-225, 1998, p. 174-175.

3 Tal ponto já foi demonstrado pelo Prêmio Nobel de economia George Akerloff no seu célebre artigo “The Market for "Lemons": Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3. (Aug., 1970), p. 488-500.”

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14421.htm

5 Brasil. Código Civil. Art. 1.442. Podem ser objeto de penhor: I - máquinas e instrumentos de agricultura; II - colheitas pendentes, ou em via de formação; III - frutos acondicionados ou armazenados; IV - lenha cortada e carvão vegetal; V - animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola.

6 Brasil. Código Civil. Art. 1.444. Art. 1.444. Podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios.

7 Como destaca RENTERIA, Pablo. Penhor e Autonomia Privada. São Paulo: Atlas, 2016, p. 189-190.

8 Segundo ensinamento de KÜMPEL, Vitor Frederico. Patrimônio de afetação e a Cédula Imobiliária Rural. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/354999/patrimonio-de-afetacao-e-a-cedula-imobiliaria-rural.

9 Denominada recentemente de supergarantia: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/371366/o-sistema-de-credito-rural-brasileiro-e-o-patrimonio-rural-em-afetacao.

10 Cujo regime e particularidades são bem esclarecidas por: CALCINI, Fábio Pallaretti; BURANELLO, Renato. Fiagro: relevância e necessidade de tratamento fiscal específico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-26/direito-agronegocio-fiagro-relevancia-necessidade-tratamento-fiscal-especifico.

11 Sobre o FGS em sua versão original veja: REIS, Marcus Vinícius de Carvalho Rezende. O fundo garantidor solidário. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/06/23/fundo-garantidor-solidario/.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.