Migalhas Notariais e Registrais

Oficina notarial e registral: Instrumento particular. Título inscritível - Certidão de RTD

O assunto não é exatamente inédito. Há precedentes que apontam a uma orientação já pacificada no âmbito da justiça registral.

9/11/2022

 

Dando seguimento aos debates técnicos e práticos da nossa Oficina Notarial e Registral (Migalhas Notariais e Registrais), apresento-lhes um caso interessante de apresentação a registro de título consistente de certidão expedida pelo Registro de Títulos e Documentos de instrumento particular ali registrado.

O assunto não é exatamente inédito. Há precedentes que apontam a uma orientação já pacificada no âmbito da justiça registral. O que chama a atenção, na verdade, é a viragem representada pela reforma da Lei de Registros Públicos pelo advento da lei 14.382/22. Como veremos mais à frente, o novo marco legal pode levar a uma rediscussão dos temas postos na dúvida suscitada, afinal julgada procedente, razão pela qual a veiculo por aqui.

Vamos ao caso concreto.

Tema da dúvida

Foi-nos apresentado para registro um título consistente em certidão de RTD extraída de microfilme do contrato particular de compromisso de compra e venda datado do início da década de 90, expedida em 2021 pelo Oficial de RTD competente. O título foi devolvido por nota devolutiva contra a qual o interessado se insurgiu, reingressando com o requerimento de suscitação de dúvida, nos termos do art. 198 da lei 6.015, de 1973.

Quais foram basicamente as razões de recusa? Os motivos impedientes para o acesso do título foram os seguintes: (a) certidão de RTD ou cópia reprográfica não são títulos hábeis para ingresso no fólio real e (b) o título é omisso quanto o estado civil do adquirente.

A necessidade de determinação do sujeito de direito na aquisição de direitos parece extreme de dúvidas. A lei 6.015/1973 impõe, como requisito formal do registro (e, portanto, do próprio título que lhe sirva de base) a indicação da qualificação completa do promitente comprador (art. 176, § 1º, III, 2, “a”). Entretanto, só isto não basta; é necessário, também, sendo casado, que se indique o nome e a qualificação do cônjuge, bem como a indicação do regime de bens no casamento e se este se realizou antes ou depois da lei 6.515/77. Deverá ser sempre indicado o número do CPF (Instrução Normativa RFB 1.548, de 13/2/2015, art. 3º, II, “a” e “d”). Sempre será possível suprir tal exigência por aditamento ao título ou mediante a juntada de documentos pessoais (RG, CPF, certidão de casamento atualizada e, se for o caso, escritura de pacto antenupcial e certidão de seu registro, tudo no original ou em cópia autenticada).

Parece não haver dúvidas a esse respeito. O tema central, e mais relevante, da dúvida, era outro. Vamos desde logo a ele.

Título – via original

A questão fulcral repousa no fato de que o interessado juntou certidão de RTD e cópia de promessa de compra e venda, conjunto que retraça uma sucessão desencadeada a partir da proprietária tabular. Ela teria prometido a venda do imóvel a determinado promitente comprador e este, por seu turno, o prometeu vender a terceiro.

À parte a incorreção consistente na intitulação do instrumento como “promessa de compra e venda”, superável com espeque no art. 112 do CC, atentando-se mais à intenção das partes do que ao sentido literal da linguagem, havia um obstáculo mais sério: como admitir a registro uma certidão de RTD que ostenta, segundo o interessado, o “mesmo valor probante que o original” (art. 217 do CC e art. 161 da LRP)?

Tradicionalmente, sempre se entendeu que tais títulos não merecem o ingresso. Citemos uma decisão do Conselho Superior da Magistratura que indica várias outras que se orientaram no mesmo sentido:

“No que respeita às certidões expedidas pelos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, a partir dos assentamentos mantidos como fruto de sua atividade, este Conselho Superior já firmou orientação no sentido de sua irregistrabilidade, vez que distingue-se o valor probante previsto no artigo 161 da Lei Federal n.6015/73 da forma específica reclamada para o ingresso dos títulos no registro predial e imposta, restritivamente, pelo artigo 221 do mesmo diploma legal (Apelações Cíveis 3.332-0, da Comarca de Guarujá; 3.522-0, da Comarca de Barueri; 6.391-0, da Comarca de Atibaia; 10.962-0/8, da Comarca da Capital; 14.797-0/3, da Comarca da Capital).

A possibilidade de certidões serem admitidas como títulos registráveis se limita a sua extração de autos judiciais e, implicitamente, quando expedidas por notários, a partir de instrumentos por estes lavrados, não se incluindo, neste âmbito, as certidões emitidas pelos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, de atos praticados com base em instrumentos particulares, sob pena, inclusive, de se tornar letra morta o disposto no artigo 194 da Lei de Registros Públicos, que determina, ao registrador imobiliário, que, diante da recepção de um instrumento particular, promova seu arquivamento”1.

Além disso, pode-se questionar: qual o valor probante das certidões extraídas do RTD?

O Código Civil prevê no seu artigo 217 que terão “a mesma força probante os traslados e as certidões, extraídos por tabelião ou oficial de registro, de instrumentos ou documentos lançados em suas notas”. Já a LRP prevê em seu artigo art. 161 que as “certidões do registro de títulos e documentos terão a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados, físicos ou nato-digitais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo”.

Paleologia registral

O tema versado na dúvida é tradicional no direito pátrio. A validade e o valor probante dos instrumentos registrados em RTD foram objeto de acesa diatribe que envolveu os advogados no antigo Instituto da Ordem dos Advogados de S. Paulo. Na sessão plenária do dia 16/4/1929 foi a debates e discussões a tese proposta por LIMA PEREIRA e SPENCER VAMPRÉ acerca do valor probante das certidões expedidas pelo RTD. O Professor AZEVEDO MARQUES resolveria a questão adequadamente – e as suas lições atravessariam a noite dos tempos e nos chegariam com o mesmo vigor, atualidade e pertinência. Diz o lente das Arcadas que a “certidão extraída por oficial do Registro de Títulos e Documentos Particulares, de transcrição integral do documento, sendo impugnada, não contém, por si só, desacompanhada do original, valor probante algum”2.

As objeções levantadas no começo do século passado foram acolhidas e hoje se acham assimiladas, malgrado o fato da redação dada ao art. 161 da LRP após o advento da lei 14.382/22. De fato, não se pode admitir a quebra do sistema de segurança jurídica do Registro de Imóveis com a admissão de títulos cuja validade, integridade e autenticidade não sejam previamente certificadas ou notarizadas, consoante a regra do inc. II do art. 221 da LRP3.

Acerca da legitimidade das obrigações, fazemos nossas as advertências do mesmo Professor AZEVEDO MARQUES, que qualificaria de “monstruosidade” considerar, de modo absoluto, que a certidão expedida pelo RTD possa ostentar o mesmo valor probante que todo e qualquer original ali registrado: de outro modo resultaria que “qualquer documento falso, uma vez registrado, tornar-se-ia válido e provado!”4.

CARVALHO SANTOS mais tarde defenderia a ideia de que as certidões extraídas dos instrumentos particulares registrados em RTD fazem a mesma prova que os originais, “vale dizer, [o mesmo valor probante] que esses livros”. E conclui: “o valor probante que serve de paradigma, portanto, tem de ser o dos livros”, jamais do título neles registrado5.

Há uma confusão subjacente entre atribuições próprias de notários em contraste com registradores de RTD. Distinguindo as hipóteses, indaga o mesmo CARVALHO SANTOS: por que razão a certidão (ou o traslado) faz prova como o original? Responde-nos: “Precisamente porque pressupõe a lei que o original tenha sido feito pelo oficial público, cujos atos merecem inteira fé”. E concluiu: a “certidão poderá merecer fé que houve o registo do documento, mas nunca que o documento é verdadeiro e para os devidos efeitos do registo é que a sua certidão não pode merecer fé”6.

Justamente por essa razão, não sendo o título extraído das notas ou do processo judicial, o instrumento particular original deveria ser mantido no arquivo do Registro de Imóveis, nos termos da redação anterior do art. 194 da LRP, a fim de prover a fonte primária para eventual prova de autenticidade.

Precedente da 1VRPSP

Por dever de lealdade é preciso dar notícia de existência de precedente da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo que deferiu registro nas condições aqui debatidas. Trata-se do Processo 1106944-05.2020.8.26.01007, cujos fundamentos para julgamento da dúvida improcedente foram os seguintes:

a) O art.161 da Lei de Registros Públicos revela que as certidões RTD “terão o mesmo valor probante dos originais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo”. Do mesmo jaez o item 44.1, Cap. XVIII, das NSCGJSP.

b) O registro no RTD “é uma forma de garantir autenticidade, conservação, publicidade e segurança de um documento original, a fim de manter intacto o conteúdo do documento em caso de extravio, desgaste pelo tempo ou mesmo na ausência do original”.

c)  O documento “autenticado” pelo Oficial de RTD “equipara-se ao original para qualquer finalidade a que se destina, ainda mais se considerarmos que atualmente vigoram as certidões eletrônicas, em substituição aos papéis, o facilita o trânsito pela via digital, não sendo mais necessária a apresentação de papéis pelos usuários”.

São respeitáveis os argumentos que fundamentaram a R. decisão. Todavia, as peculiaridades do caso concreto – em que se busca o registro de promessas instrumentalizadas por certidão de RTD e cópia reprográfica – autorizam o questionamento e o reavivamento das questões decididas em isolado precedente. Além disso, a decisão do caso concreto não se revestiu de “caráter normativo”, razão pela qual reitero os fundamentos jurídicos que se mantêm como razão de denegação de registro.

Como vimos, o art. 161 da LRP não livra o título registrado de eventual invalidade por inautenticidade. A eficácia do registro em RTD não é saneadora. Não é adequado, sob pena de subverter o sistema de segurança jurídica preventiva, que se admita o registro de documentos que podem se revelar inquinados de vício de inautenticidade.

Já nos alvores do século XX, o mesmo professor AZEVEDO MARQUES vislumbrava uma distinção essencial entre os documentos que eram registrados para mera perpetuação e aqueles que geram obrigações. Diz ele:

“Há a distinguir duas espécies de documentos: os meramente graciosos, que se registram para serem conservados ou perpetuados (expressões sinônimas), e os que geram obrigações, os quais são registrados para marcar o início dos seus efeitos contra terceiros. As certidões destes últimos nada provam, senão a época, ou a data em que produzem efeitos contra terceiros, se ‘apresentados em juízo os respectivos originais’, forem contestados por terceiros. A certidão do registro, portanto, não supre o original, quando a sua apresentação for necessária por versar a controvérsia sobre o próprio original. Eis porque é desnecessária a formalidade complicada e prematura da conferência no ato do registro”8.

O registro no RTD, tal e como conformado atualmente pelas recentes reformas, provaria unicamente a data do registro e eventual início de prova de sua existência e validade – nada que um bom sistema de blockchain não supriria com vantagens, inclusive econômicas. As declarações consubstanciadas em instrumentos particulares, desde que assinados, presumem-se verdadeiras em relação aos signatários (art. 219 do CC) e não dependem a priori da formalidade de registro no RTD. Diferentemente, a eficácia jurídica em face de terceiros dos instrumentos particulares que tenham por objeto um direito real se consuma com o seu registro no Registro de Imóveis. O art. 221 da LRP impõe o preenchimento de certos requisitos formais que o simples registro no RTD não supre.

Enfim, o registro residual, feito no RTD, com as degradadas garantias formais, não se presta a mais do que assinalou a seu tempo AZEVEDO MARQUES – as certidões do RTD nada provam, “senão a época, ou a data em que produzem efeitos contra terceiros, se ‘apresentados em juízo os respectivos originais’”.

Por outro lado, as certidões eletrônicas e os títulos apresentados ao Registro de Imóveis, assinados digitalmente, devem conformar-se ao disposto no § 2º do art. 5º da Lei 14.063, de 23/9/2020, que exige a utilização da chamada assinatura digital qualificada – aquela que utiliza o certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2, de 24/8/20019.

Seja como for, o fundamento que permitiria o ingresso de títulos pela via eletrônica impõe a autenticidade dos firmantes e o preenchimento dos requisitos exigidos pela lei para aptificá-los à produção dos potentes efeitos que se alcançam com o registro público de direitos.

Títulos em cópia reprográfica

Por fim, resta enfrentar a questão remanescente que se relaciona com a promessa apresentada em cópia simples – a compromisso de compra e venda de 15/12/14, anexo.

As cópias simples não ingressam no Registro de Imóveis. Brevitatis causa:

“A cópia constitui mero documento e não instrumento formal previsto como idôneo a ter acesso ao registro e tendo em vista uma reavaliação qualificativa do título, vedado o saneamento intercorrente das deficiências da documentação apresentada”10.

Julgamento da dúvida

A dúvida por nós suscitada foi afinal julgada procedente. No julgamento, a MM. Juíza, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, observou que o art. 217 do Código Civil, o art. 161 da LRP e o item 44.1 do Capítulo XVIII da NSCGJSP “reconhecem a equivalência das certidões extraídas por Tabeliães ou Registradores com os documentos originais, mas apenas para o fim específico de prova, o que não os torna instrumentos hábeis ao ingresso no fólio real”. E segue:

“A possibilidade de certidões serem admitidas como títulos registráveis se limita a sua extração de autos judiciais e, implicitamente, quando expedidas por notários, a partir de instrumentos por estes lavrados, não se incluindo, neste âmbito, as certidões emitidas pelos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, de atos praticados com base em instrumentos particulares, sob pena, inclusive, de se tornar letra morta o disposto no artigo 194 da Lei de Registros Públicos, que determina, ao registrador imobiliário, que, diante da recepção de um instrumento particular, promova seu arquivamento.

De fato, a qualificação pelo registrador imobiliário, que envolve análise da higidez do documento, não pode prescindir do título original, acerca do que este juízo já emitiu entendimento (autos n. 1098944-89.2015.8.26.066311), tendo em vista a necessária segurança jurídica que norteia a sua atividade, notadamente quando se trata de certidão de instrumento particular (fls.), o que vale também para o contrato entregue em cópia simples, que se pretende registrar posteriormente (fls.).

Acerca da necessidade de apresentação do original, este juízo já fixou entendimento (processo de autos 1098944-89.2015.8.26.0663), destacando a farta jurisprudência do E. Conselho Superior da Magistratura (Apelações Cíveis 33.624-0/412, 94.033-0/313, 278-6/014, 38.411-0/915, 77.181-0/316 e 516-6/717, por exemplo)18.

Posteriormente, em recurso de apelação, o CSMSP acabou por não conhecer da dúvida pela ocorrência de impugnação parcial, sem cumprimento tempestivo da exigência remanescente, o que impôs o não conhecimento do recurso19.

Lei 14.382/22

O tema ainda haverá de ser revolvido pelas recentes alterações perpetradas na lei 6.015/73, algumas criticáveis, outras importantes e necessárias.

Os instrumentos particulares são agora uma espécie de corpo extravagante no sistema da LRP. O art. 194, reformado pela recente lei 14.382/22, indica que os “títulos físicos”, depois de digitalizados, serão devolvidos às partes, mantido o seu representante digital em repositórios da Serventia20. Somente os representantes digitais dos “títulos físicos” serão mantidos, os demais, não – físicos, natodigitais ou digitalizados21. A prova ou perícia (art. 23 da LRP), na hipótese de ocorrência de arguição de falsidade, se dará com base no representante digital, não no original devolvido à parte. O Oficial do Registro de Imóveis, por seu turno, dará fé, por certidão, do representante digital, não do documento em si, que foi dispensado (art. 18 da LRP). E voltamos à velha questão do registro em RTD – agora na perspectiva do RI: válido e autêntico, para todos os efeitos, será o registro, portado por certidão extraída do representante digital, não do título em si mesmo considerado. Ou como disse CARVALHO SANTOS, acima citado: “o valor probante que serve de paradigma, portanto, tem de ser o dos livros”, jamais do título registrado.

A defectiva redação do art. 194 foi criticada nos estudos sobre gestão documental do Registro de Imóveis22. Importante ressaltar, aqui, alguns poucos aspectos relevantes. Destaque-se que os registros feitos no RTD agora não exigem mais do que simples autenticação pelo apresentante do título.

O RTD foi pouco a pouco reconformado a mero sistema de arquivamento digital de documentos, com a progressiva supressão de requisitos formais – como reconhecimento de firmas e a comprovação de autenticidade e integridade dos documentos que lhe são submetidos a registro (artigos 127 e 129 da LRP). A responsabilidade pela autenticidade caberá, agora, “exclusivamente ao apresentante” (§2º do art. 130 da LRP, na redação dada pelo novo diploma legal, ainda na vacatio), in verbis:

“§ 2º O registro de títulos e documentos não exigirá reconhecimento de firma, cabendo exclusivamente ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular”.

O privado inesperadamente foi investido de um mister jurídico de afiançar, sob sua responsabilidade, a autenticidade de documentos particulares submetidos a registro, suprimindo-se a notarização pela via do reconhecimento de firmas. Já vimos o engenheiro que virou suco23, agora nos defrontamos com o privado investido de superpoderes e responsabilidades autenticatórios, uma espécie de notário ad hoc. Desenha-se no cenário pátrio situações tragicômicas ocorrentes em outros meridianos24.

Ora, se antes já se negava o acesso ao RI de certidões de RTD extraídas de instrumentos particulares que se quer convertidas em títulos em sentido próprio (inc. II do art. 221 da LRP), pelos bons fundamentos que se colhem nos precedentes citados, agora, com muito mais razão, deve-se obstar o seu acesso no Registro de Imóveis.

Com esta malsinada reforma agravou-se o quadro de incidentes de falsidade de documentos privados. Nos termos do art. 428 do CPC, cessa a fé do documento particular “quando for impugnada a sua autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade”. Nota bene: a simples impugnação de autenticidade do documento faz cessar a fé do instrumento particular. E isto por uma singela razão: tais títulos não gozam de fé pública, competência que só aos notários se reconhece e que vai impressa em todos os seus atos (inc. I do art. 411 do CPC cc. art. 3º da lei 8.935/1994). Bastará a impugnação da autoria (autenticidade) ou a “impugnação do conteúdo (quando supostamente tenha ocorrido preenchimento abusivo) para que se ponha em dúvida o seu valor”25.

Desenha-se uma perfeita anomalia no sistema de registro de direitos, vale dizer: dos chamados registros de segurança jurídica preventiva. Ao admitirmos o acesso de instrumentos particulares ao Registro, “autenticado” sob responsabilidade de meros privados – apresentante a quem a lei atribuiu a “responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular” – admitimos que os registros jurídicos passaram a equivaler a qualquer birô privado de arquivamento de papeis e documentos, sejam eles físicos, natodigitais, digitalizados ou não, cuja validade, autenticidade e eficácia estarão sempre na dependência de ulterior reconhecimento judicial quando ocorrente a hipótese de instauração de querela di falso.

Os tribunais inclinam-se à tese de que cessaria a fé do documento particular quando impugnada sua autenticidade e enquanto não se comprovar sua veracidade26. O fenômeno aqui discutido acaba por desconstituir a eficácia probatória (= deixam de provar), cabendo à parte que produziu o documento o ônus da prova de autenticidade e validade (inc. II do art. 429 do CPC).

Nos documentos oriundos do financiamento imobiliário ou nos casos dos contratos de incorporações imobiliárias – em que as cláusulas são predispostas pelo agente financeiro ou pelo incorporador – avultam os riscos e os cuidados que o sistema deve ter para garantir a segurança dos consumidores27.

Enfim, o RTD, no passado um bom sistema de prevenção de conflitos e litígios, passa a figurar no rol dos sistemas de meros registros administrativos28, cuja validade e eficácia busca o apoio na contraparte de certeza e higidez ocorrentes em proclamações judiciais, em que se estabilizam e sacramentam as relações jurídicas ex post. Está em causa a instituição de sistemas registrais de tutela forte ou fraca, como preleciona MÓNICA JARDIM29. O sistema brasileiro paulatinamente movimenta-se para o segundo caso, talvez por conta de uma certa racionalidade econômica ou tecnológica não provada.

Adiro às conclusões da r. decisão. De fato, os defeitos congênitos que eventualmente possam inquinar os instrumentos particulares não podem ultrapassar as barreiras formais (inc. II do art. 221 da LRP) e contaminar o Registro de Imóveis.

Com a nova lei, adentramos os átrios de um admirável mundo novo das novas tecnologias a nos impor um novo paradigma. Como disse alhures, “mudam os ventos, mas as velhas árvores resistem”.

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1 Ap. Civ. 65.430-0/8, São Paulo, j. 23/12/1999, DJ 3/2/2000, rel. des. Sérgio Augusto Nigro Conceição. Acesso: http://kollsys.org/11w. Adite-se para indicar que o art. 194 da LRP acaba de ser reformado pela Lei 14.382/2022 que dispôs que somente os “títulos físicos” serão digitalizados e devolvidos aos apresentantes, mantidos exclusivamente em arquivo digital.

2 RT 70/297, maio de 1929.

3 A propósito, indico as seguintes considerações: JACOMINO. Sérgio. MP 1.085/2021 - O vinho e a água chilra. Migalhas Notariais e Registrais. Acesso: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/362724/mp-1-085-21--o-vinho-e-a-agua-chilra.

Idem, ibidem.

5 CARVALHO SANTOS. J. M. Código Civil Brasileiro Interpretado. Vol. III, 14ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991, p. 190 e 191, passim.

6 CARVALHO SANTOS. J. M. Op. cit. p. 190. No mesmo sentido: SERPA LOPES. M. M. de. Tratado. Vol. II, 4ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 113.

7 Processo 1106944-05.2020.8.26.0100, j. 13/1/2021, DJ 15/1/2021, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://kollsys.org/pto.

8 Idem, ibidem nota 2.

9 Mesmo após o advento da Lei 14.382/2022, seguimos sustentando que para a prática de atos de registro imobiliário é necessária a assinatura digital qualificada. CAMPOS. Ricardo. JACOMINO. Sérgio.  Assinaturas Eletrônicas. Notas e Registros Públicos: implicações da Lei 13.482/2022 e o Valor Probatório no Sistema Legal Brasileiro. No prelo.

10 Ap. Civ. 33.624-0/4, Ribeirão Preto, j. 12/9/1996, rel. des. Márcio Martins Bonilha. No v. aresto há citação de inúmeros precedentes. Acesso: http://kollsys.org/dc.

11 Processo 1098944-89.2015.8.26.0100, , j. 26/10/2015, Dje 29/10/2015, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://kollsys.org/ies.

12 Ap. Civ. 33.624-0/4, Ribeirão Preto, j. 12/9/1996, DJ 21/11/1996, Rel. Des. Márcio Martins Bonilha. Acesso: http://kollsys.org/dc.

13 Ap. Civ. 94.033-0/3, São Paulo, j. 13/9/2002, DJ 13/11/2002, Rel. Des. Luiz Tâmbara. Acesso: http://kollsys.org/cci.

14 Ap. Civ. 278-6/0, Santos, j. 20/1/2005, DJ 11/3/2005, Rel. Des. José Mário Antonio Cardinale. Acesso: http://kollsys.org/70x.

15 Ap. Civ. 38.411-0/9, São Vicente, j. 7/4/1997, DJ 9/5/1997, Rel. Des. Márcio Martins Bonilha. Acesso: http://kollsys.org/jj.

16 Ap. Civ. 77.181-0/3, São Paulo, j. 8/3/2001, DJ 3/4/2001, Rel. Des. Luís de Macedo. Acesso: http://kollsys.org/8e5.

17 Ap. Civ. 516-6/7, Novo Horizonte, j. 18/5/2006, DJ 12/7/2006, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas. Acesso: http://kollsys.org/8q5

18 Processo 1095809-59.2021.8.26.0100, j. 28/10/2021, Dje 28/10/2021, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso: http://kollsys.org/s5z.

19 Ap. Civ. 1095809-59.2021.8.26.0100, São Paulo, j. 1/9/2022, Dje 26/10/2022, rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Acesso: http://kollsys.org/s59.

20 Não há qualquer especificação acerca dos repositórios digitais das Serventias. V. nota 22, abaixo. Sobre os representantes digitais, v. definição em Organização de Representantes Digitais no Arquivo Nacional - Manual De Procedimentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2021, p. 9, n. 12.

21 Um efeito colateral, provavelmente não antevisto, é que o sistema imperfeito acaba por fortalecer a fé pública registral, admitindo-se que os títulos digitalizados (ou natodigitais) não remanescerão na Serventia, bastando, apenas, uma presunção que decorre do próprio ato de registro.

22 JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Gestão documental no registro de imóveis. A reforma da LRP pela Lei 14.382/2022. RDI 93, ago./dez. 2022, no prelo.  

23 CAFARDO. Renata in O Estado de São Paulo, ed. 27/7/2008. A jornalista conta a curiosa história do engenheiro desempregado que virou dono de lanchonete e símbolo de um período difícil.

24 V. JACOMINO. Sérgio. Tio Sam e a fé pública in Observatório do Registro, 5/12/2008. Acesso: https://wp.me/p6rdW-5R. V. também: JACOMINO. Sérgio.  Hipotecas podres, King Kong, notários e registradores. In Observatório do Registro, 5/12/2008. https://wp.me/p6YdB6-aC.

25 ARENHART. Sérgio Cruz. Breves Comentários ao CPC. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim, et. al. Org. São Paulo: RT, 2015, p.1.087.

26 V. RESP 1846649/MA, j. 24/11/2021, DJE 9/12/2021, rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE. No REsp 1.313.866/MG, j. 15/06/2021, DJe 22/6/2021, Rel. Ministro MARCO BUZZI, colhe-se: “a fé do documento particular cessa com a contestação do pretenso assinante consoante disposto no artigo 388 do CPC/73, atual artigo 428 do NCPC, e, por isso, a eficácia probatória não se manifestará enquanto não for comprovada a fidedignidade”.

27 “Será correto o maior interessado – a raposa – guardar o conteúdo, a integridade e legalidade do contrato?” – pergunta-nos CLÁUDIA LIMA MARQUES e BRUNO MIRAGEM no artigo A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. Acesso:https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-raposa-e-o-galinheiro-a-mp-1-085-2021-e-os-riscos-ao-consumidor/

28 V. JACOMINO, Sérgio. op. cit. nota 3, especialmente o sumidouro registral e a ineficiência do sistema.

29 JARDIM. Mónica. Os Sistemas Registrais e a sua Diversidade, Revista Argumentum. v. 21, n. 1, jan.-abr./2020. Vide também OLIVEIRA. Carlos Eduardo Elias de. Sistemas de registros públicos na visão da professora Mónica Jardim: breves notas e reflexões sobre o modelo brasileiro. 25/8/2021, Migalhas. Acesso: : https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/350651/sistemas-de-registros-publicos-na-visao-da-professora-monica-jardim.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.