Migalhas Notariais e Registrais

Depósito em juízo para afastar os encargos moratórios: Novos ventos para a consignação em pagamento

Havendo ação cobrando a dívida, o depósito, pelo devedor, em juízo para fins de garantia ou a penhora da coisa não afasta os encargos moratórios por falta de fundamento legal.

3/11/2022

1. Resumo

Antes de começamos o artigo, antecipamos um resumo das suas conclusões em forma de tópicos:

1. Havendo ação cobrando a dívida, o depósito, pelo devedor, em juízo para fins de garantia ou a penhora da coisa não afasta os encargos moratórios por falta de fundamento legal. Os rendimentos da conta judicial, porém, devem ser considerados como antecipação de parte desses encargos moratórios, resguardado o direito à cobrança do excedente.

2. Não é, pois, aplicável a essa hipótese o art. 335, V, do CC, que autoriza a consignação em pagamento quando o objeto da obrigação for litigioso. A bem da verdade, o entendimento do STJ, com sua inevitável amplificação nos termos deste artigo, esvaziou a aplicação prática do inciso V do art. 335 do CC.

2. Caso o devedor queira afastar os encargos moratórios, cabe-lhe extinguir a obrigação por meio do pagamento (pagamento direto).

3. Esse pagamento pode ocorrer: (a) entrega da coisa devida diretamente ao credor; (b) depósito, em juízo, para fins de pagamento; (c) autorizar o credor a levantar a quantia depositada em juízo.

3. Em relação às duas últimas maneiras – que envolvem pendência de ação judicial de cobrança da dívida –, entendemos que, a partir da data de protocolo da petição autorizando o levantamento da quantia pelo credor, já há o pagamento (pagamento direto) a extinguir a obrigação.

4. Caso o devedor pretenda discutir o cabimento da dívida (o an debeatur ou o quantum debeatur), é preciso tomar cuidado: em já havendo ação judicial em curso cobrando a dívida, o pagamento deve ser feito “com ressalvas” explícitas, sob pena de possível preclusão lógica.

5. Se o devedor pagar a dívida ou depositar a coisa em juízo (seja para fins de pagamento, seja para fins de garantia) e se, posteriormente, vencer demanda judicial impugnando o an debeatur ou o quantum debeatur, entendemos que caberá à outra parte pagar os encargos moratórios a título de indenização mínima (art. 302, CPC). A exceção dá-se se a coisa tiver sido depositada em juízo para fins de garantia sem qualquer pedido ou provocação do credor.

5. O STJ entendia que era viável o afastamento da mora no caso de propositura de ação revisional de contratos, desde que o devedor tenha depositado o valor incontroverso e haja plausibilidade jurídico do pleito. Doravante, deve-se firmar que o entendimento acima não afasta o direito do credor a cobrar os encargos moratórios no caso de malogro do devedor na ação revisional. Se o devedor perder o pleito revisional, terá de pagar os valores controvertidos atrasados, com acréscimos de todos os encargos moratórios, deduzidos os rendimentos da conta judicial. Na prática, o entendimento acima servirá apenas para inibir que, na pendência da ação, o credor possa valer-se de medidas de índole coercitiva ou executiva, como negativação do nome do devedor em cadastro de inadimplentes, busca e apreensão, reintegração de posse etc.

6. Recomendação informal e prática: se o leitor for questionar judicialmente a dívida, a recomendação é depositar o valor integral da dívida, externando que a finalidade é de pagamento “com ressalvas”, ou seja, ressalvando o direito à repetição de indébito no caso de vitória na impugnação judicial do crédito. No caso de penhora do valor, a recomendação é que o leitor peticione autorizando o levantamento da quantia pelo credor, ressalvando, porém, o direito à repetição de indébito no caso de vitória na insurreição. Com isso, o leitor não sofrerá a surpresa de, após anos de judicialização, ter de pagar encargos moratórios atrasados. Essa recomendação, porém, não deve ser seguida se: (1) o leitor verificar que há sério risco de a outra parte “dar um calote” na hora de devolver o valor ao final da ação; e (2) o valor estimado dos encargos moratórios for irrelevante dentro das circunstâncias do caso concreto. Nessas hipóteses, é melhor que o leitor sequer faça o depósito em juízo do valor, nem mesmo para fins de garantia. É economicamente mais vantajoso deixar esse valor em alguma aplicação financeira pessoal, que certamente renderá mais do que os tímidos rendimentos das contas judiciais.

7. Sugestão de mudanças do Poder Judiciário: é conveniente que o Poder Judiciário reveja os convênios mantidos com bancos que mantêm contas judiciais vinculadas. O ideal é que esses convênios prevejam o direito da parte que depositou o valor em juízo em direcionar o valor da conta judicial a alguma aplicação financeira segura (de “renda fixa”), como títulos da dívida pública, Letras de Crédito Imobiliária (LCI) ou Letras de Crédito Agrária (LCA). Em outras palavras, os valores custodiados judicialmente, a critério de quem o depositou, devem ser submetidos a aplicações que um investidor “comum e conservador” (homo medius) deixa. Não há motivos para o valor ficar sendo derretido em uma conta judicial de rendimentos absolutamente atrofiados. Isso também vale para valores penhorados ou bloqueados judicialmente.

2. Introdução

Um tema de interesse de todos os juristas é saber como estancar os encargos moratórios (juros moratórios, correção monetária e multa) no caso de controvérsia sobre a existência da dívida (an debeatur) e o seu valor (quantum debeatur). A questão parece-nos ter assumido novos ventos após a recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 1.820.963/SP no dia 19 de outubro de 2022. O acórdão ainda está pendente de publicação, mas a sessão de julgamento está disponível no YouTube1. Neste artigo, erguemos reflexões preliminares com base na sessão de julgamento que acompanhamos, sem prejuízo de novas reflexões após a publicação oficial do acórdão.

A questão interessa não apenas a advogados, magistrados e outros profissionais que atuam diretamente em litígios judiciais, mas também de tabeliães de notas e de tabeliães de protestos (por lidarem quotidianamente com as obrigações).

A resposta costumava ser a consignação em pagamento, que consiste no depósito da quantia em juízo ou em outro meio legal.

O corriqueiro é que essa consignação em pagamento seja feita de forma incidental a um processo judicial em que se controverte a dívida. O advogado deposita o valor em juízo, a quantia fica rendendo em uma conta judicial e, ao final da ação, o montante final (com os rendimentos) seja "sacado" ("levantado") por quem venceu a demanda judicial mediante um alvará de levantamento expedido pelo juiz.

O grande problema é definir se esse depósito em juízo faz cessar ou não a incidência dos encargos moratórios.

Há inegável interesse financeiro do credor nesse tema. Imagine que um devedor esteja em mora no pagamento do valor de 10 milhões de reais. Por esse atraso, incidem, a título de encargos moratórios, juros moratórios de 1% a.m. e correção monetária de 0,5% a.m. Veja que, a cada mês de atraso, a dívida "engorda" 1,5% a.m. No primeiro mês, a dívida aumentará em R$ 150 mil. No segundo mês, subirá mais R$ 152,25 mil. Perceba o quão expressivo é o valor acrescido a título de encargos moratórios nesse exemplo.

Imagine que o devedor entenda que a dívida é indevida por algum motivo (ex.: nulidade de um contrato). O credor, porém, está a cobrar a dívida. Há, pois, controvérsia sobre o cabimento da dívida. Indaga-se: o que o devedor poderá fazer para "estancar" a copiosa sangria de encargos moratórios enquanto se discute judicialmente se a dívida é ou não devida?

A praxe era, no caso acima, o devedor depositar o valor em juízo (os 10 milhões de reais) incidentalmente à demanda judicial em que se discute o cabimento da dívida (ação de cobrança, ação de nulidade do contrato, ação de inexigibilidade da dívida, embargos do devedor, impugnação ao cumprimento de sentença etc). Ao final da demanda, o dinheiro depositado em juízo, com os rendimentos da conta judicial, seria levantado pelo vencedor. Assim, se a dívida for judicialmente tida por indevida, o devedor poderia levantar o dinheiro de volta, com os rendimentos da conta judicial. Caso, porém, a dívida seja tida por devida, o credor poderá levantar a quantia depositada com os rendimentos da conta judicial.

Acontece que o rendimento da conta judicial costuma ser inferior ao dos encargos moratórios. Indaga-se: pode-se cobrar a diferença? No exemplo acima, os encargos moratórios estavam a render cerca de R$ 150 mil mensalmente. Suponha que o rendimento da conta judicial tenha sido apenas de R$ 100 mil mensais. Pergunta-se: pode-se cobrar os R$ 50 mil de diferença ao final da demanda?

Até o supracitado julgado do STJ, não havia essa cobrança da diferença, seja pelo relativo consenso dos profissionais do Direito, seja pela forte inclinação jurisprudencial em considerar que o depósito em juízo no exemplo acima afastava a mora.

Com o mencionado o julgado, entendemos que novos ventos passam a guiar a questão.

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1 Disponível aqui.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.