Migalhas Notariais e Registrais

A desjudicialização da execução civil: papel dos serviços notariais e registrais

O jurista Carlos E. Elias de Oliveira defende a criação de um procedimento extrajudicial para as execuções civis.

15/6/2022

Introdução

Os processos de execução devem mesmo continuar concentrados no Poder Judiciário? A pergunta é ousada. Este artigo pretende levantar reflexões sobre o tema, sem, porém, esgotá-lo.

Realidade: impotência do Poder Judiciário

É preciso ser realista: a quantidade de processos judiciais é colossalmente maior do que a capacidade de vazão do Poder Judiciário.

Ao lado disso, parece haver um grande desperdício operacional ao colocar a estrutura dispendiosa e extremamente qualificada do Poder Judiciário para lidar com questões que, por um cálculo de custo-benefício, poderiam ser resolvidas de modo menos oneroso e sem prejuízo à qualidade da solução.

Os números assustam. Em 2018, havia apenas cerca de 18 mil magistrados no Brasil, incluídos desembargadores e ministros de todas as esferas do Judiciário1. No final de 2018, havia cerca de 78 milhões de processos judiciais em trâmite nos 90 tribunais brasileiros2. Logo, em uma simplificada média, temos uma média de 4 mil processos por juiz, o que já representa um valor desumano e absurdo. Se levarmos em conta que essa média foi feita de modo simplificado, pois levou em conta magistrados de várias instâncias e de diferentes esferas do Poder Judiciário, podemos ter certeza de que o número efetivo pode ser bem pior.

Como um juiz consegue julgar 4 mil processos com celeridade?

É óbvio que isso não é viável, o que justifica a morosidade do Poder Judiciário.

Todos sabem que, na maior parte das vezes, ao ajuizar uma ação, a parte terá de aguardar alguns anos para obter um desfecho final.

O modelo judicial brasileiro não funciona adequadamente. Isso é fato!

Acresça-se a esse desolador fato a existência de verdadeiro desperdício operacional. Explica-se.

O Poder Judiciário é uma estrutura que demanda elevadíssimos gastos públicos. Cada juiz custa, em média, R$ 47 mil reais3. Há elevados gastos com manutenção dos demais servidores públicos do Judiciário, com pessoal, com infraestrutura etc. Realmente, o Poder Judiciário depende de pessoal com alta capacidade técnica, o que obviamente exige gastos maiores.

O problema não é a alta dimensão desses gastos: o Poder Judiciário precisa mesmo de um alto investimento.

O problema é o uso dessa estrutura para lidar com problemas que poderiam ser tratados de forma mais racional em outra estrutura, como no âmbito dos serviços notariais e de registro.

Não acreditamos que a solução seja aumentar o número de juízes (ao menos, por ora), catapultando os gastos públicos com o consequente o aumento de impostos.

Temos que, antes de tudo, pensar em formas de “lipoaspiração” para retirar demandas que, sob a ótica do custo-benefício, poderiam ser resolvidas fora do Poder Judiciário com ganho de velocidade e, até mesmo, de qualidade. É possível obter soluções mais eficientes, sem sacrificar os valores inegociáveis do Estado de Direito. É viável concretizar a Justiça com eficiência.

Necessidade de desjudicialização

Há uma imperiosa necessidade de cogitarmos em formas de desjudicialização. O legislador já havia enxergado isso, do que dão exemplos estes casos:

a) Divórcio e inventário extrajudiciais (lei11.441, de 4 de janeiro de 2007);

b) Execução extrajudicial de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis (arts. 26 e seguintes da lei 9.514, de 20 de novembro de 1997);

c) Execução extrajudicial de hipotecária (art. 31 do decreto-lei70, de 21 de novembro de 1966);

d) Retificação extrajudicial no Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 110 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973);

e) Retificação extrajudicial no Registro de Imóveis (art. 213 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973)

f) Reconhecimento de filiação socioafetiva (Provimento 63, de 14 de novembro de 2017, com a alteração pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – CN/CNJ).

g) Mudança de nome e de sexo para transgênero (provimento 73, de 28 de junho de 2018).

h) Extrajudicialização da homologação de penhor legal (art. 703 do Código de Processo Civil – CPC).

i) Extrajudicialização da consignação em pagamento (art. 539 do Código de Processo Civil – CPC).

j) Dispensa judicial para a habilitação de casamento, salvo se houver impugnação (art. 1.526 do Código Civil).

Aliás, o próprio setor privado, diante da ineficiência dos mecanismos estatais de cobrança de dívida, criou formas próprias e alternativas de cobrança de dívida, como a criação de cadastros de inadimplentes (como o Serasa).

Precisamos avançar mais.

Desjudicialização dos processos de execução

Para efeito deste estudo, processo de execução diz respeito aos procedimentos disponíveis para obter a satisfação forçada de um crédito, com base em um título executivo. Abrange, assim, o cumprimento de sentença e as diferentes formas de execução previstas no Código de Processo Civil.

Embora desconheçamos estudos estatísticos oficiais, a experiência forense demonstra que a grande parte dos processos de execução resulta infrutífero: a parte exequente não consegue penhorar nada por falta de bens do devedor.

E, em vários desses feitos, a parte executada sequer apresenta qualquer tipo de impugnação.

Em poucas palavras, o Poder Judiciário “trabalha à toa” nesses processos, o que, no contexto de carência de juízes e de alto volume de processos, representa um detestável desperdício de tempo e trabalho.

 Outras formas, mais céleres e, quiçá, de maior qualidade, poderiam ser utilizadas, como a implantação de um modelo de desjudicialização dos processos executivos.

O tema já vem sendo cuidado academicamente. Chamamos a atenção para a dissertação de mestrado de Luiz Fernando Cilurzo defendida na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo)4 sob o título "A desjudicialização na execução por quantia certa".

Na tese, o acadêmico demonstra que vários outros países já possuem um modelo desjudicialização da execução de dívidas, como Suécia, Dinamarca, Rússia, Estados Unidos, França e Portugal. Para aprofundamento, reportamos o leitor para as páginas 121 a 158 da dissertação.

O mestre pela Largo São Francisco enfoca o modelo português, que envolve dois ritos: um rito ordinário (que é um misto que envolve participação do juiz em conjunto com um agente de execução) e um rito sumário (em que a participação do juiz é mais restrita).

Outros aprofundados trabalhos poderiam ser citados, as obras destes respeitados juristas: Taynara Tiemi Ono5, Rachel Nunes de Carvalho Farias6, Alexandre Chini7, Joel Dias Figueira Júnior8 e Flávia Pereira Ribeiro9.

Entendemos que é plenamente viável criar um procedimento extrajudicial de execução, valendo-se dos serviços notariais e registrais.

Os titulares dos serviços notariais e registrais são profissionais do Direito, selecionados em dificílimo concurso público, fiscalizados pelo Poder Judiciário. Nos seus quadros, há uma constelação de talentosos juristas, com renomados professores acadêmicos, com ex-juízes, com ex-promotores, com ex-membros da Advocacia Pública etc. Os tabeliães e os registradores integram a elite técnica dos juristas. Sua aptidão técnica para assumir a tarefa é inegável.

Sua sujeição a um regime privado de funcionamento abre espaço para a absorção de novas funções, como a ora cogitada.

Entre as especialidades extrajudiciais, o tabelionato de protesto é aquela com maior pertinência temática para protagonizar um procedimento de execução extrajudicial. Sua atuação em protesto afeiçoa-se com cobrança de dívida.

A regulamentação do procedimento executivo deve atentar para o fato de que qualquer parte prejudicada poderá socorrer-se do Poder Judiciário para atacar irregularidades no curso desse procedimento, à semelhança do que acontece com os outros ritos executivos extrajudiciais que já conhecemos10.

Consideramos que as impugnações do devedor, como alegações de impenhorabilidade de bens, devem, em primeiro lugar, ser endereçadas ao próprio tabelião de protesto. Este deve decidir a favor ou contra, à semelhança do que se faz em procedimentos administrativos no âmbito da Administração Pública. A parte vencida, porém, terá o direito de veicular sua irresignação perante o Poder Judiciário: trata-se de um controle judicial de ato administrativo.

A realização de atos de constrição patrimonial, como bloqueio de ativos financeiros do devedor, poderá ser conduzida pelo próprio tabelião em sede do procedimento executivo extrajudicial, desde que este obviamente observe o contraditório e a ampla defesa. Há, porém, de assegurar ao devedor as vias adequadas de insurreição, inclusive pela via judicial, em nome do princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Entendemos que essa assertiva vale até mesmo para os casos em que o ato de constrição judicial exija o uso da força policial, como na hipótese de desapossamento de veículos e de outros bens. A exceção corre à conta de constrições judiciais de bens situados dentro do domicílio do devedor, em respeito à cláusula de reserva de jurisdição que recai sobre o domicílio (art. 5º, XI, da Constituição Federal). O devedor poderá socorrer-se do Poder Judiciário no caso de ilegalidade.

É possível adotar soluções criativas alinhadas ao Estado de Direito. É possível fazer justiça sem justiçamento.

O fato é que o quadro atual, de manifesta incapacidade operacional do Poder Judiciário em dar vazão à assustadora carga de demandas, não pode permanecer.

Conclusão

O objetivo desse artigo não é descer às minúcias do procedimento executivo extrajudicial. É, sim, erguer reflexões sobre iniciativas de desjudicialização que urgem, com destaque para o papel protagonistas que os tabeliães e os registradores poderão exercer.

Além da desjudicialização da execução civil, há outras reflexões a serem feitas, como a conveniência de autorizar a arbitragem nos serviços notariais e registrais.

É preciso enfrentar, de vez, a realidade de incapacidade operacional do Poder Judiciário em dar vazão ao volume brutal de demandas. E esse enfrentamento deve ser feito em sintonia com o Estado Democrático de Direito, aliando eficiência com criatividade e justiça.

__________

Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 "Execução por quantia certa – Acesso à justiça pela desjudicialização da execução civil".

6 Desjudicialização do processo de execução – O modelo português como uma alternativa estratégica para a execução civil brasileira".

7 "Desjudicialização do Processo de Execução de Título Extrajudicial".

8 "Execução Simplificada e a Desjudicialização do Processo Civil: Mito ou Realidade".

9 "Desjudicialização da Execução Civil"

10 Ex.: a execução extrajudicial de dívida garantida por propriedade fiduciária imobiliária (lei 9.514/97).

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.