Migalhas Notariais e Registrais

Cessão de direitos hereditários de bens singulares – uma visão contemporânea

As registradoras Janaina Zarpelon e Mayra Maia defendem o cabimento da cessão de direitos hereditários relativamente a bens singulares em algumas hipóteses.

11/5/2022

Conforme definição doutrinária, cessão de direitos hereditários, é o negócio translativo, geralmente oneroso, que um herdeiro legítimo ou testamentário, realiza com uma pessoa, tendo por objeto a totalidade ou uma quota da herança para a qual foi vocacionado. O procedimento é simples. Aberta a sucessão, o coerdeiro pode ceder o seu direito à mesma, bem como o quinhão de que disponha, por escritura pública. Conforme expressa disposição legal, a escritura pública é necessária e indispensável, pois é da substância do ato, portando, a cessão de direitos hereditários celebrada por instrumento particular seria, portanto, nula de pleno direito1. Em obediência a normativa de transmissão imobiliária (o que em regra a cessão de direitos não é), faz-se necessário a anuência conjugal2.

O Código de Beviláqua (Código Civil de 1916) não regrou o instituto. Entretanto, foi previsto expressamente no Código Civil de 2002 (art. 1.7933 a 1.7954), o qual foi integrado por meio de uma construção jurídica doutrinária e jurisprudencial.

A cessão de direitos hereditários, portanto, é um negócio jurídico intervivos, translativo, bilateral, formal, gratuito ou oneroso, consensual e aleatório. Assim, deve observar os pressupostos e requisitos para todo negócio jurídico, o que nos remete a tricotomia de planos que formam um negócio jurídico, conforme Pontes de Miranda e sua clássica “Escada Ponteana”.

Frisa-se, que não é admitido em nossa legislação, o pacta corvina, expressão em latim que significa “acordo do corvo”5, também denominado pacto sucessório, ou seja, acordo que tem por objeto a herança de pessoa viva (art. 426 CC6). Desta forma a cessão de direitos hereditários é a transmissão de direitos provenientes de sucessão.

Portanto, como visto, de acordo com o Código Civil (art.1.793), o quinhão que disponha o co-herdeiro pode ser objeto de cessão por escritura. Tal forma é da substância do referido negócio jurídico. Prescreve, ainda, o parágrafo segundo, do citado artigo, que é ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, do bem que compõem a herança, considerado singularmente. Tal dispositivo, tem como norte a individualização da herança, até que se ultime a partilha. Decorre a teleologia da norma que o coerdeiro só pode ceder a sua quota-parte, ou a sua parte ideal na universalidade da herança, mas não a respeito de um bem específico, de um bem determinado ou considerado singularmente. Questiona-se se este dispositivo não estaria desatualizado. Deduz-se que pela norma expressa, que a cessão de um bem individuado, dentre os que compõem o espólio, em tese, seria negócio jurídico inválido. A censura da lei está no plano da eficácia7. Oras, se um herdeiro, com a anuência dos demais, em instrumento público ou particular com a anuência dos demais, alienar bem singular, a alienação/cessão8, não haveria motivos para ser nula, nesta atual análise. A cessão, neste caso, é ineficaz (pela atual normativa), e não produziria efeito. Porém mais uma vez, questiona-se, se ante a concordância de todos a questão prévia ao inventário, já não estaria resolvida, e não teria motivo de a legislação prescrever a “inoponibilidade aos demais herdeiros”, baseado no fato da prescrição legal e amplamente repetido pela doutrina que a herança é uma universalidade, e até a partilha, indivisível.

Veja-se, que o legislador já previu que a herança de bem singular pode ser objeto de cessão, no caso de haver somente um herdeiro ou apenas um bem no acervo hereditário não será ineficaz, conforme lecionado por Zeno Veloso:

“No caso de haver somente um herdeiro, como não há outros interessados (coerdeiros), não é ineficaz a cessão que ele fizer de um bem singular, de um determinado bem da herança. Do mesmo modo, se todos os herdeiros fazem a cessão, é plenamente eficaz acessão de bens singularmente considerados, afirmando Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery (Código Civil Comentado, 4. Ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 971) que tal cessão significa uma espécie de pré-partilha amigável, devendo ser levada a escritura pública ao juízo da sucessão para ser homologada essa pré-partilha e, “encerrando-se o arrolamento ou o inventário, o juiz possa determinar a expedição de formal de partilha de conformidade com a escritura de cessão”. Alerte-se que, se todos os interessados forem capazes, poderão promover a cessão de direitos seguida de partilha por escritura pública, em instrumento único, portanto, que não precisa de homologação judicial e constitui título hábil para o registro imobiliário, tudo conforme o art. 982 do CPC, com a redação determinada pela Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que analisarei, adiante, em comentários ao art. 2.015.” (Código Civil Comentado, coord. Regina Beatriz Tavares da Silva, São Paulo: Saraiva, 10ª ed., 2016, p. 1895; grifos não constam do original)

No mesmo sentido decidiu o E. Conselho Superior da Magistratura: “Direitos hereditários não são suscetíveis de registro, consoante a jurisprudência pacífica do Conselho” (Ap. 6.861-0). Sobre o tema, Ademar Fioranelli observa que há: “possibilidade do registro de escritura de cessão de direitos hereditários quando, no momento de sua apresentação a registro, já tiver sido registrado o formal de partilha do falecido, no qual tenha sido tocado ao herdeiro cedente o mesmo imóvel objeto do título. Este, então, será recepcionado como compra e venda, já que a simples denominação dada ao negócio jurídico não altera a sua essência, como, aliás, dispõe o art. 85 do CC.” (FIORANELLI, Ademar “Direito Registral Imobiliário”, Ed SAFE, pág. 517)”.

A Lei de Registros Públicos não estabelece o registro da cessão de direitos hereditários no Registro de Imóveis. E não é isto que se propõe aqui. No entanto, há possibilidade do registro de escritura de cessão de direitos hereditários quando, no momento de sua apresentação a registro, já tiver sido registrado o formal de partilha do falecido, no qual tenha sido tocado ao herdeiro cedente o mesmo imóvel objeto do título. Portanto, os direitos a determinado bem singular, neste caso, podem ser cedidos pelo herdeiro único (herdeiro universal) ou, como já dissemos, por todos os herdeiros, em ato único ou mesmo em atos separados, como é comum fazerem quando não vivem na mesma cidade, estão em viagem, mesmo com a facilidade do e-notariado. Não se falaria em ineficácia do negócio jurídico, pois esta não há. Não há oposição a interesse de terceiros, e qualquer pessoa não poderia alegar direito frustrado ou eventual prejuízo. A releitura do tema proposto com a introdução da certidão da situação jurídica do imóvel, obrigatoriamente será observada daqui por diante. 

Pois bem, o que se repete a exaustão é que a herança é uma universalidade de bens, um todo unitário e indivisível até a partilha. Desta forma, sendo uma universalidade de bens, requer-se a prévia autorização do juiz do inventário para que se proceda a venda de qualquer bem que componha o acervo hereditário. Caso isso não ocorra, o negócio jurídico estará incompleto pois não atingirá o plano da eficácia. Este seria um ponto a ser mais bem discutido e analisado em decisões judiciais ou mesmo em inventários extrajudiciais.

Assim, a cessão de direitos hereditários é um instrumento jurídico que permite a circulação de riqueza antes de finalizar a partilha, garantindo a função social da propriedade e propomos que bens singulares possam ser cedidos por instrumento particular ou público, anteriormente a partilha, desde que todos os demais herdeiros concordem. Portanto, não haveria razão econômica, jurídica ou de cunho pessoal para impedir que a cessão, nas hipóteses citadas, seja realizada. Este tema é de grande repercussão na atividade extrajudicial. Merece ser mais bem estudado e talvez objeto de Projeto de Lei para o aprimoramento do que descrevemos.

_____________

1 Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.

2 Excepciona-se, entretanto, os casos de casamento pelo regime da separação absoluta. O regime de separação convencional de bens está previsto no artigo 1.687 do Código Civil, in verbis: Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.

3 Art. 1.793. ibid.

4 Art. 1.794. O co-herdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro co-herdeiro a quiser, tanto por tanto.

Art. 1.795. O co-herdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a transmissão.

Parágrafo único. Sendo vários os co-herdeiros a exercer a preferência, entre eles se distribuirá o quinhão cedido, na proporção das respectivas quotas hereditárias.

5 Ao contrário da maioria dos outros sistemas jurídicos, entre os quais o Brasileiro, o direito sucessório alemão permite um acordo sobre futuras heranças, o chamado contrato de herança, além do testamento. Uma vez que os testamentos conjuntos são reservados apenas aos cônjuges, os parceiros não conjugais ou outros terceiros só podem dispor conjuntamente num contrato de herança! O contrato de herança fornece uma base segura e contratualmente vinculativa para o planejamento da herança conjunta e para qualquer contraprestação que possa ser prometida e fornecida durante a vida do testador em relação à sua disposição (por exemplo, uma obrigação de cuidado contra a nomeação de um herdeiro). In: https://www.erbrecht-lahn.de/erbrecht/erbvertrag/ Acesso em 09 mai 2022

6 Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

7 "REsp 1.809.548/SP. J. em: 19/05/2020. EMBARGOS DE TERCEIRO. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. BEM DETERMINADO. NULIDADE. AUSÊNCIA. NEGÓCIO JURÍDICO VÁLIDO. EFICÁCIA CONDICIONADA QUE NÃO IMPEDE A TRANSMISSÃO DA POSSE. (...) 5. A cessão de direitos hereditários sobre bem singular, desde que celebrada por escritura pública e não envolva o direito de incapazes, NÃO É NEGÓCIO JURÍDICO NULO, tampouco inválido, ficando apenas a sua eficácia condicionada a evento futuro e incerto, consubstanciado na efetiva atribuição do bem ao herdeiro cedente por ocasião da partilha. 6. Se o negócio não é nulo, mas tem apenas a sua eficácia suspensa, a cessão de direitos hereditários sobre bem singular viabiliza a transmissão da posse, que pode ser objeto de tutela específica na via dos embargos de terceiro (...)"

8 Desde que pagos os tributos referentes à transmissão, impostos reais etc., bem como a expedição da certidão da situação jurídica do imóvel, conforme MP 1085/2021, atualizando o artigo 54 e 55 da Lei 13.095/2015, deveria ser plenamente aceito. 

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.