Migalhas Notariais e Registrais

Os cartórios e a digitalização

Os cartórios e a digitalização.

18/4/2022

No dia 4/4/2022, Joel Pinheiro da Fonseca publicou um artigo em sua coluna na Folha de S. Paulo intitulado "Você gosta de ir ao cartório?", no qual, em síntese, aponta existir um "lobby de cartórios e tabelionatos (sic)" contrário à conversão da Medida Provisória 1.085/2021 em lei. Segundo o autor, o "lobby" se opõe à "digitalização dos cartórios", medida que afetaria privilégios burocráticos de cartórios prósperos em desfavor de maior agilidade e menor custo agregado às operações imobiliárias. Mas não mostra uma pesquisa sequer que confirme a sua afirmação.

É evidente que o debate público pode comportar as mais diversas posições sobre as atribuições conferidas aos cartórios – alcançando, inclusive, uma reflexão sobre sua própria existência – e o lugar que eles ocupam na ordem republicana. No entanto, é indispensável que esse mesmo debate ocorra segundo uma argumentação amparada em evidências e na racionalidade. 

Há algumas inconsistências na fala do articulista que precisam ser abordadas. A primeira é a forma como foi apresentada a pesquisa "Custo da Burocracia no Imóvel", da Câmara Brasileira da Indústria da Construção. O encarecimento de 12% do preço dos imóveis não é de responsabilidade exclusiva – e nem principal – dos registros imobiliários. Aliás, de acordo com a mesma pesquisa, seu peso é menor em comparação aos gargalos regulatórios, de licenciamento e até mesmo de financiamento e de mão de obra.

Além disso, o texto induz a erro o leitor quando afirma que a renda média de um titular de cartório ultrapassa R$ 100 mil mensais, sem esclarecer se o valor é bruto ou líquido – neste caso, é preciso contabilizar os descontos relacionados às receitas do Estado (17,14%), da Fazenda (11,73%), do MP (2,9%), do Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça (4,14%), da compensação dos atos gratuitos do Registro Civil das Pessoas Naturais e complementação de receita mínima das serventias deficitárias (3,18%) e do repasse às Santas Casas (1%). E, por evidente, todos os custos operacionais, de infraestrutura física e de TI e de recursos humanos.

Não é possível afiançar nem mesmo a resposta desejada à pergunta que serve de título ao texto de opinião. De acordo com pesquisa do Datafolha de 2015, 77% dos usuários de cartórios de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte consideraram o serviço prestado ótimo ou bom. Lembre-se, ainda, o papel essencial que o registro civil assumiu durante a pandemia da COVID-19. Instituição independente e insuscetível de pressões políticas, foi responsável por garantir à população brasileira a publicidade em relação ao número de mortos pela doença.

A digitalização nos cartórios já é uma realidade há muito tempo, muito antes do movimento de incorporação das TICs pelo Poder Judiciário. Inclusive, em diversos estados, a modernização e adoção da tecnologia na agilização de processos judiciais contaram com o apoio e o patrocínio dos cartórios. Tampouco há contrariedade à celeridade: não é nova, por exemplo, a luta dos cartórios para atuar no campo da autocomposição dos conflitos, por meio da mediação. 

O e-Notariado, regulamentado pelo provimento CNJ n. 100/2020, que estabelece normas gerais para a prática de atos notariais eletrônicos, já contempla, em longo rol contido no art. 10, atos como a matrícula notarial eletrônica, o fornecimento de certificados digitais e assinaturas eletrônicas notarizadas, a realização de videoconferências notariais, os sistemas de identificação e validação biométrica, o reconhecimento de firmas, entre outros, todos com validade nacional e fé pública nos termos da lei. Mais recentemente, o provimento CNJ n. 103/2020 estendeu o uso da tecnologia também para a autorização de viagem nacional e internacional de crianças e adolescentes, que pode ser feita eletronicamente. Mencione-se, por fim, o Operador Nacional do Registro, no âmbito do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR/SREI), já operacional, e que garante acesso remoto, a um clique, aos cidadãos, a qualquer oficial registro de imóveis do país.

Todo processo de aperfeiçoamento institucional, no regime democrático, é válido. Melhor ainda quando ele ocorre de forma a ouvir todos os interessados em melhorar o serviço público. Por isso, a proposta do Poder Executivo de encaminhar essa discussão por meio de medida provisória é um verdadeiro açodamento do debate público, que é mais amplo no processo legislativo regular. É preciso definir com clareza as premissas desse debate, e afirmar que os cartórios são contra a digitalização, seguramente, não representa fielmente a verdade.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.