Introdução
Recebi de um colega de estudos um alentado texto com propostas de redação para a reforma da Lei de Registros Públicos com o pedido de estudo e opinião jurídica.
Em vez de debruçar-me sobre o articulado da proposta, julguei ser oportuno, preliminarmente, traçar uma diretriz crítica a fim de iluminar os intrincados problemas que a iniciativa representa e sugerir um rumo sistemático às discussões.
Penso que estas singelas advertências devam merecer prudente reflexão antes do encaminhamento da proposta aos canais competentes do Governo Federal.
Notários e registradores – especialização e natureza
O princípio essencial que deve nortear a concepção da reforma legal da lei 6.015/1973 (LRP) é o seguinte: cada especialidade representa um núcleo autônomo e singular que deve ser mantido organicamente no corpo da lei.
O § 1º do artigo 1º da LRP nos revela um conjunto harmônico, embora diversificado, que dá coerência a todo o sistema. A parte geral da lei, dedicada ao conjunto de especialidades dos registros públicos, representa menos de 10% do total de 299 artigos do diploma. Os demais dispositivos são dedicados a cada especialidade, com delimitação orgânica de atribuições e de funcções de modo muito bem definido e particularizado.
Registro Civil das Pessoas Naturais, de Pessoas Jurídicas, de Títulos e Documentos e de Imóveis são especialidades que vêm experimentando ao longo dos anos um processo de progressiva singularização em tudo consentânea com as exigências do mercado e do desenvolvimento orgânico das próprias atividades.
No âmbito da ordem constitucional anterior à Carta de 1988, os oficiais de registro e os tabeliães compunham uma categoria singular na ordem judiciária – a de serventuários de justiça – reputados como serviços auxiliares da Justiça (§ 5º do art. 144 da Emenda 1 da CF/1969). Logo em seguida, por via da lei Federal 5.621, de 4/11/1070, respeitada a legislação federal, previu-se que a organização judiciária, a cargo dos Estados, compreenderia "a organização, classificação, disciplina e atribuições dos serviços auxiliares da Justiça, inclusive tabelionatos e ofícios de registros públicos" (inc. IV do art. 6º).
Os tribunais dos estados organizaram tais serviços, regulando as atividades do chamado foro extrajudicial. No estado de São Paulo, houve uma sucessão de atos normativos oriundos do próprio Tribunal de Justiça e do legislativo1.
Porém, a partir da Carta de 1988, os serviços notariais e registrais experimentaram uma mutação substancial em seu estatuto orgânico e passaram a ter regramento próprio (art. 236 da CF/1988 e lei 8.935/1994), conjunto que radicaliza e aprofunda a especialização das atividades arroladas no art. 5º da lei 8.935/1994.
A chamada Lei Orgânica dos Notários e Registradores (lei 8.935/1994) remarca, em várias passagens, a especificidade de cada "natureza", apontando para o processo de progressiva singularização de tais atividades em atenção à natureza de cada qual. A orientação se patenteia no disposto no artigo 26 da dita lei que reza não serem “acumuláveis” os serviços enumerados no art. 5º. O seu artigo 49 remata:
"Art. 49. Quando da primeira vacância da titularidade de serviço notarial ou de registro, será procedida a desacumulação, nos termos do art. 26".
Desacumulação por natureza – eis a regra. Definição da especialidade por sua natureza, o norte da organização da atividade.
Todavia, nos deparamos na proposta com ideias que representam uma marcha-a-ré na configuração da infraestrutura institucional das atividades notariais e registrais brasileiras. A criação de um Serviço Eletrônico de Registros Públicos (SERP) funde, numa única plataforma centralizada, atribuições que são próprias e indelegáveis de cada profissional em cada especialidade, gerando uma mixórdia que certamente provocará controvérsias e grandes dificuldades para consumar o que se tem chamado de "governança" do sistema registral.
O anteprojeto simplesmente desconsidera o que se desenvolveu ao longo de mais de uma centúria não só no âmbito do CNJ (mais recentemente), mas nos Tribunais de Justiça dos estados e Distrito Federal, descartando normas de serviços, provimentos, avisos, recomendações e resoluções que nos revelam a tessitura e organicidade do sistema.
A lei 11.977/2009 – o marco inicial
O artigo 1º da proposta incorre num erro lógico2-3. Reza que o objetivo do sistema será a "universalização das atividades dos Registros Públicos".
O que prevê o conjunto normativo sobre o qual a proposta se assenta – lei 11.977/2009 – é a universalização do acesso, não a "universalização das atividades". A interconexão das unidades representa a teleologia das reformas que adjuntaram o qualificativo "eletrônico" aos Registros Públicos na lei de 2009.
Não é a modalidade do suporte material utilizado para a prática dos atos de registro que há de conformar e moldar a própria atividade. As ferramentas eletrônicas são meios, não são fins. Ou por outra: a prestação de serviços em meios eletrônicos não deve chegar ao ponto de subverter a própria natureza dessas atividades, confundindo-as e malbaratando o acervo que representa, verdadeiramente, uma cultura jurídica que é patrimônio da sociedade brasileira.
A inconstitucionalidade latente
A confusão pode nos levar a graves questionamentos nos tribunais e no próprio STF. Ao prever que o SERP poderá promover "o registro público dos atos jurídicos [sic]", ou que o dito ente poderá expedir certidões e prestar informações, "inclusive de forma centralizada", ou ainda facultar "a visualização eletrônica dos atos transcritos, registrados ou averbados nas serventias dos Registros Públicos", ou o armazenamento de documentos eletrônicos "para dar suporte aos atos registrais" e toda uma série de outras disposições congêneres, tudo isso aponta, inequivocamente, para uma espécie de subdelegação à SERP de competências e funções que são próprias e indelegáveis de registradores públicos, com a consequente subversão do quadro institucional que define os chamados órgãos dos serviços notariais e de registro (art. 103-B da EC 45/2004).
Essa manobra brusca e dissonante afronta a tradição do direito brasileiro e subverte as regras bem assentadas no corpo legal e normativo. Tal iniciativa revela um elemento potencial que pode se chocar com a Constituição Federal que previu a delegação de tais atividades jurídicas (que são próprias do Estado) ao particular, pessoa natural habilitada em concurso público. O Estado não o fez a entidades, sejam elas criadas por lei ou instituídas pelos próprios registradores ou pelo mercado.
Calha lembrar aqui a linha que cinge as funções públicas de atividades jurídicas delegadas ao particular (art. 236 da CF/1988) e outras funções que podem ser exercidas por outros agentes pela via do conduto da concessão ou da permissão, nos termos do art. 175 da Carta de 1988. A ementa do aresto prolatado na ADI 2.4154 ilumina o contexto destas considerações. A respeito das atividades notariais e registrais, destaca o ministro:
I – Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos.
II – A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais.
III – A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público.
IV – Para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público.
V – Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações interpartes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito.
VI – Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal.
Não é diverso o entendimento que se pode extrair de outro importante precedente do STF. A transfiguração das funções notariais e registrais, se consumadas as tentativas de concentração de atividades próprias em entes personalizados – como o é, em certa medida, o SERP –, pode-se dar ensanchas ao surgimento de um fenômeno de subdelegação de atividades próprias de notários e registradores, como tenho apontado em várias oportunidades5. Desloca-se sutilmente o eixo que permitiu ao STF definir a responsabilidade dos oficiais e tabeliães pelos atos próprios por eles praticados em caráter pessoal. Ou seja: até aqui, respeitadas as diretrizes constitucionais, os serviços notariais e de registro não se submeteriam à disciplina que rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Vejamos a ementa do acórdão do STF:
"Os serviços notariais e de registro, mercê de exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236, CF/88), não se submetem à disciplina que rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. É que esta alternativa interpretativa, além de inobservar a sistemática da aplicabilidade das normas constitucionais, contraria a literalidade do texto da Carta da República, conforme a dicção do art. 37, § 6º, que se refere a ‘pessoas jurídicas’ prestadoras de serviços públicos, ao passo que notários e tabeliães respondem civilmente enquanto pessoas naturais delegatárias de serviço público, consoante disposto no art. 22 da lei 8.935/94".
“A própria constituição determina que “lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário” (art. 236, CRFB/88), não competindo a esta Corte realizar uma interpretação analógica e extensiva, a fim de equiparar o regime jurídico da responsabilidade civil de notários e registradores oficiais ao das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art. 37, § 6º, CRFB/88)”[6].
Ou seja, não se pode modificar o espartilho no qual calham as atividades registrais e notariais sem o risco de, subvertendo-o, incorrer em inconstitucionalidade ou em pura subversão de seus alicerces.
Addendum
Como indicado anteriormente (nota 3) o projeto, tal e como o recebemos originalmente, modificou-se nos labirintos da administração pública. A nova redação, consubstanciada em minuta de medida provisória que esteve na iminência de ser baixada, em boa hora, e de forma prudente, foi adida. Estima-se que o Governo Federal terá recebido inúmeros pedidos de sobrestamento em virtude do fato de que a minuta não terá sido objeto de discussões aprofundadas envolvendo os principais atores – notários e registradores brasileiros.
Seja como for, os defeitos ali apontados em grande parte se mantiveram no corpo da nova minuta de medida provisória, razão pela qual mantemos, em linhas gerais, as críticas que à época dirigimos à iniciativa evidentemente precipitada.
O fato é que estamos diante de um impulso que se dirige a uma reengenharia de todo o sistema registral pátrio e que revela o potencial de subverter a natureza das atividades registrais em afronta não só à Constituição, mas a leis e normas que regem tais atividades há mais de um século.
Vamos reinventar a roda e mergulhar o sistema de segurança jurídica numa aventura insegura e imprevisível?
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1 Não é o caso de aprofundarmo-nos na legislação dos estados, bastando indicar brevemente os atos normativos do Estado de São Paulo: dec.-lei Complementar 3, de 27/8/1969 (Código Judiciário de SP); dec.-lei 159, de 28/10/1969; resolução 1/1971, do E. Tribunal de Justiça de SP; lei 2.177, de 23/7/1953; decreto 4.786, de 3/12/1930 (Regimento das Correições); decreto 5.129, de 27/3/1931 etc. Em todos esses diplomas a vinculação dos tabeliães e registradores aos Tribunais de Justiça se dará sob a qualificação de Serventuários de Justiça.
2 Art. 1º O Sistema Eletrônico dos Registro Públicos (SERP), de que trata o art. 37 da lei 11.977, de 7 de julho de 2009, tem como objetivo a universalização das atividades dos Registros Públicos e a adoção de governança corporativa das serventias.
3 Posteriormente, a 16/11/2021, uma nova versão da minuta circulou entre os registradores e o art. 1º já havia sido modificado. Mantenho as considerações por uma questão de registro histórico das várias mudanças experimentadas pelos projetos desenvolvidos no âmbito do governo federal.
4 ADI 2.415. Rel. min. Ayres Britto, j. 10/11/2011, p., DJE de 9/2/2012. Acesso aqui.
5 Brevitatis causa: JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a floração de atividades para-registrais. São Paulo: Observatório do Registro, 2/11/2018. Acesso aqui.
6 RE 842.846 – Santa Catarina, j. 27/2/2019, Rel. Ministro LUIZ FUX.