Migalhas Notariais e Registrais

Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações

O objetivo deste opúsculo é oferecer uma base teórica para a construção de taxonomia dos elementos que compõem o conjunto informativo do Sistema Registral brasileiro, estruturando-os em classes e atributos para a configuração e especificação do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis.

10/11/2021

Introdução

O objetivo deste opúsculo é oferecer uma base teórica para a construção de taxonomia dos elementos que compõem o conjunto informativo do Sistema Registral brasileiro, estruturando-os em classes e atributos para a configuração e especificação do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis.

Algumas expressões frequentam a praxe cartorária no dia a dia da execução do mister registral – especialmente quando está em causa limitar, restringir ou modular este que é o direito real por antonomásia – a propriedade. O que significam, no âmbito do microssistema registral, expressões como gravames, ônus, limitações, restrições, encargos? Como estruturar o SREI partindo-se de expressões notoriamente plurívocas? Como qualificar os atos praticados no repositório eletrônico a ser criado? Como estabelecer um dicionário semântico que possa servir de base para a estruturação ontológica do sistema?

Há vários recortes possíveis para a estruturação do código. Alguns foram visitados pela POC-SREI na série de colóquios qualificados como ontologias registrais1. No âmbito do NEAR-lab (Laboratório do Núcleo de Estudos Avançados do Registro Eletrônico), vimos trabalhando a ideia de constituir uma malha semântica que possa estruturar e qualificar os elementos que integram e são consubstanciais às inscrições prediais.

É possível pensar na estrutura de dados que compõem o SREI como uma espécie de “grafo semântico” que interconecta os núcleos significativos do sistema – coisa, pessoas, instrumentos formais, direitos materiais, atos de inscrições etc. Falamos, então, no contexto do SREI, de ontologia objetiva, subjetiva, titular, legal-material (títulos em sentido material) e tabular.

Para que se viabilize a “ressemantização” das várias expressões que povoam a inscrições, buscando criar um vocabulário controlado dos atos, suas classes e atributos, é preciso uma rápida visita aos sentidos aninhados nas várias expressões acima aludidas, investigando o que têm de singular, e, ao final, sugerir uma “expressão-curinga” que possa servir de base para acolher as várias espécies sob um gênero bem estabelecido, determinado e controlado.

Gravames

A ocorrência da expressão gravame se encontra de modo esparso na legislação brasileira. Mais recentemente, todavia, constatamos uma extensão de seu significado, como veremos logo abaixo. Essa extrapolação dos sentidos tradicionais se dá na exata medida em que espocam os simulacros registrais, com seus “gravames” e “entidades registradoras” que ainda não ostentam um nome próprio.

Antes, porém, vamos conferir, num breve excurso, a origem da expressão e como ela se foi insinuando e acomodando nos textos legais.

Primeiramente, vamos verificar que a expressão provém do latim gravamen, que terá se originado da gwere, raiz protoindo-europeia significando “pesado” (heavy). No sítio Etymology online encontramos a seguinte definição:

“Trouble, physical inconvenience” (in Medieval Latin, “a grievance”), literally “a burden”, from Latin gravare “to burden, make heavy, weigh down; oppress”, from gravis “heavy”. […] Specifically, in law, “part of the accusation which weighs most heavily against the accused”.

A ideia que a expressão originalmente trazia consigo é a de fardo, problema, inconveniência física, algo que inflige peso. Muitas expressões se formaram a partir deste étimo – por exemplo, agravar, pesar, afligir, gravidade...

O gravame era considerado, desde a legislação do Império, como uma infringência – nos casos de usurpação de jurisdição e de poder temporal, violência no exercício da jurisdição etc.2. Será interessante saber que a expressão possivelmente terá sido usada na legislação da primeira república no seu sentido lato de ofensa, afronta, agravo, injúria. Assim a encontramos nas consideranda do Decreto 212, de 22/2/1890. Neste interessante regulamento republicano, baixado por DEODORO DA FONSECA, visava-se desembaraçar a entrada e saída de pessoas no território nacional sem que fosse necessário portar um passaporte – uma “inutilidade vexatória”. Dizia o dito decreto que a exigência legal do passaporte, além de estar em manifesta oposição a um regime de completa liberdade individual, é, também um “gravame imposto ao emigrante”. O dito decreto seria revogado somente em 1991.

De um ponto de vista mais estrito, porém, gravame é todo ônus que recai sobre direitos, restringindo o seu pleno exercício, gozo ou fruição. Diz-se, amiúde, que o gravame é um encargo, um ônus. No âmbito do processo civil, indica atos jurisdicionais constritivos, decorrentes de decisões judiciais (p. ex. § 1º dos artigos 791, inc. IV do 848, inc. V do 889, do § 2º do 901 etc. todos do CPC).

Mais recentemente, contudo, o jurista se depara com uma extensão de significados, com o sentido aberto, espécie de “curinga”, à falta de nome próprio. A expressão evoca formas atípicas de restrição – como, por exemplo, nos exemplos encontradiços na redação dada aos arts. 26 e 26-A da Lei 12.810/2013 (Lei 13.476/17). Os ditos “gravames”, neste contexto, são restrições que incidem sobre ativos financeiros e valores mobiliários (art. 63-A da Lei nº 10.931/2004 e Decreto 7.897/13).

Para acolher as novas modalidades de restrições aos direitos, criou-se um registro especial de ônus e gravames de ativos financeiros e valores mobiliários, regulamentado pelo Banco Central do Brasil, concebido especialmente para fins de “publicidade e eficácia” em face de terceiros (art. 26 da Lei 12.810/13). São as chamadas “entidades registradoras” que vicejam a latere do sistema registral3.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.