Migalhas Notariais e Registrais

RIP Doing Business

RIP Doing Business.

6/10/2021

No dia 16 de setembro, o Banco Mundial anunciou o encerramento definitivo do que foi, havia anos, seu projeto mais importante: os indicadores Doing Business, concebidos para "medir objetivamente as regulamentações econômicas e sua aplicação em 190 países" (World Bank, 2021). Seu design errôneo, aliado à corrupção sistemática, e a sobrevivência do modelo ao longo de tantos anos, apesar das críticas que lhe endereçávamos, diz muito sobre o fracasso das organizações internacionais: à época criadas para apoiar o desenvolvimento, hoje servem tão-somente aos interesses de seus atuais burocratas e futuros consultores.

Com o Doing Business, o Banco Mundial dilapidou uma excelente oportunidade para avançar na medição das instituições. No entanto, seu cancelamento é uma boa notícia porque, como venho argumentando em uma série de artigos e publicações desde 2007, em muitos países sua influência no desenvolvimento institucional acabou sendo ruinosa (Arruñada, 2007, 2009).

Os erros eram visíveis desde o princípio – tanto no plano metodológico quanto no organizativo.

Desde o seu lançamento, para evitar a oposição dos Estados Unidos (principal financiador do Banco), os responsáveis pelo projeto, dirigido pelo economista e político búlgaro Simeon Djankov, escolheram uma metodologia parcial, que não valorizava o benefício efetivo decorrente das regulamentações, mas apenas alguns de seus custos explícitos. Nunca se deu a devida atenção ao valor; por exemplo, à maior ou menor segurança jurídica de um ou de outro sistema, ou para a redução de custos contratuais futuros. Além disso, computavam somente procedimentos e trâmites formalmente obrigatórios, mas não os que são obrigatórios de fato, como aqueles associados a monopólios profissionais. Isso acabava por favorecer os países anglo-saxões, já que nos sistemas jurídicos da common law pesam relativamente mais as obrigações de fato do que as de direito.

Por exemplo, em Nova York, que era a cidade de referência para os Estados Unidos, cada parte de um típico contrato imobiliário – o comprador, o vendedor ou o banco – paga pelos serviços de um advogado, de modo que ao menos três advogados atuam em cada transação – ou quatro, se estiverem envolvidos dois bancos. Entretanto, esse procedimento e seus enormes custos jamais eram incluídos no índice sobre as instituições relativas à propriedade imobiliária. A equipe do Doing Business alegava que a intervenção dos advogados não era obrigatória, pois os contratantes poderiam optar por se apoiarem juridicamente a si mesmos (do-it-yourself-conveyancing). Como se sabe, esse modelo é incompatível em muitos estados, com a contratação de especialistas que não sejam advogados ou – em todos eles – por determinar a um só advogado imparcial que represente todas as partes envolvidas). Diferentemente, em países como Alemanha ou Espanha, para que se registre uma compra e venda, ou uma hipoteca, é obrigatória a notarização e esse procedimento sempre foi computado pelo Doing Business. Consequentemente, a exclusão dos advogados novaiorquinos distorcia gravemente os resultados, já que os advogados das partes representam um custo que se situa entre nove e doze vezes mais caro do que os notários em países europeus com bons registros imobiliários, como a Alemanha e a Espanha (ao contrário da França ou da Itália, que ainda mantêm registros de documentos).

Em virtude da presença, já de partida, de tais falhas metodológicas, é lógico que os melhoramentos do Doing Business, ao largo de toda sua existência, foram escassos, quando não prejudiciais. Para os indicadores iniciais, o método, que muitos de nós víamos como um primeiro passo, foi paralisado e, em alguns casos, foi ainda pior, como sucedeu ao se introduzir indicadores de qualidade em matéria de propriedade (Arruñada, 2017, 770; 2018).

O erro organizativo teve consequências ainda mais perniciosas. Para figurar na imprensa e gozar de influência política, convertendo o projeto numa alavanca de reforma e promoção pessoal, foram apresentados dados muito parciais como se fossem representativos da verdadeira eficiência institucional. Além disso, de forma consciente – e em que pese o fato de que sua metodologia fosse preliminar, incompleta e tendenciosa –, optou-se por divulgar os resultados em formato das ligas desportivas, publicando rankings de países, medindo a distância em que se situava cada qual em relação à “fronteira” da regulação supostamente ótima. Essa estratégia servia bem ao interesse dos burocratas responsáveis do Banco, ávidos por protagonismo mediático em um momento em que muitos políticos dos EUA questionavam a própria existência do Banco, já que seus projetos de apoio ao desenvolvimento sempre produziam resultados deficientes.

Durante anos, a cada outono, a nós, que havíamos analisado as entranhas da besta, se nos afigurava doloroso observar como a imprensa financeira internacional (desde o Wall Street Journal ao Financial Times e The Economist) e, claro, a imprensa nacional, mordiam a isca dos rankings do Doing Business. Por sinal, até hoje muitos economistas são fisgados, talvez predispostos a crer em qualquer indicador que lhes permita dar um brilho empírico aos seus "abridores de latas teóricos"1. Em cada reavaliação sucessiva do projeto nunca houve falta de grandes economistas, como Andrei Shleifer, que afirmassem o quanto valioso eram seus números para investigações empíricas.

As consequências dessa repercussão mediática não tardaram: os esforços de reforma de muitos países se concentraram em melhorar sua pontuação nos rankings, sem atentar às consequências reais ou compreender as limitações da metodologia. A Millennium Challenge Corporation, uma criatura gerada para lidar com parte da ajuda ao desenvolvimento dos EUA, chegou a condicioná-la ao logro de objetivos definidos em termos dos indicadores do Doing Business. Os responsáveis tiveram a audácia de publicar suas Diretrizes de Boas Práticas (Best Practice Guidelines), que, na melhor das hipóteses, chegaram a consagrar seus próprios vieses iniciais (ver Arruñada, 2018, para uma crítica de um deles). Além disso, desenvolveram trabalhos de consultoria, gerando um evidente conflito de interesses, uma vez que aqueles que assessoravam, indicando como e o que reformar, achavam-se muito próximos daqueles que avaliariam as reformas.

Não foram apenas os países em desenvolvimento que foram afetados. Em todo o mundo, e de forma proeminente na União Europeia, ingentes recursos foram dedicados à realização de reformas que só mudaram os resultados do Doing Business sem melhorar necessariamente a qualidade das instituições, muitas vezes piorando-as. Entre nós, vale lembrar os imensos esforços governamentais para universalizar o acesso à administração – como se a integração dos processos e trâmites administrativos servisse, por si só, para algo além de ocultar os seus custos do contribuinte… Ou as sucessivas reformas empreendidas para que se pudesse constituir sociedades cada vez mais rapidamente, como se os escritórios de advocacia do setor não tivessem disponíveis "empresas pré-constituídas" para realizar operações urgentes e sem demora; ou como se a constituição de empresas impusesse uma barreira à entrada na atividade empresarial. E tudo isso esquecendo-se dos alvarás e de licenças de abertura de empresas – fato crucial e que permanece ainda sem solução. (A propósito, a situação dos Estados Unidos, e especialmente do Estado de Nova York, no que diz respeito às licenças de abertura de empresas, também havia levado o Doing Business a tratá-las em sua pomposa metodologia de forma tão ambígua que, quando aplicada, puderam computá-las de maneira "politicamente correta".)

Não só a metodologia era tendenciosa, como nem mesmo a aplicaram uniformemente, permanecendo sua aplicação à mercê da capacidade de influência de distintos países. Desde o início, sua aplicação foi manipulada para que alguns países saíssem bem retratados. Dentro do próprio Banco, especialistas regionais faziam chacotas sobre os bons números obtidos por países "amigos", como Afeganistão ou Egito, apesar desses países manterem instituições deploráveis. De fato, já em 2008 uma avaliação interna do Banco (IEG 2008) observou inúmeras deficiências na aplicação da metodologia. Essa suspeita foi reiteradamente confirmada em relação a uma cifra tão destacada como a estimação dada pelo Doing Business para o tempo necessário para se abrir uma empresa nos Estados Unidos. O Doing Business apartou-se desde o princípio de sua própria metodologia, reduzindo-a artificialmente de 26 para seis dias (Arruñada, 2009, p. 559). Se o método tivesse sido aplicado corretamente, os Estados Unidos teriam caído no ranking de 2007 das posições 3-5 para 57-60, em companhia de El Salvador, Lituânia e Serra Leoa. Dois anos mais tarde, em 2009, teriam caído entre 94 e 98. Aos funcionários do Banco que questionaram o assunto, foi-lhes dito, já então, que aplicar o método corretamente era, nesse caso, politicamente inviável. Nos informes de avaliação mais recentes abundam indícios de que esse não era um caso isolado. Por isso, não me surpreende ler sobre as grosseiras manipulações descritas no informe que serviu de escusas para dar cabo ao projeto (Wilmer Hale, 2021).

No entanto, tudo indica que o projeto Doing Business se encerra não por causa das irregularidades, aliás bem conhecidas desde o início, mas em razão de seu descrédito mediático progressivo. Simplesmente porque a imprensa internacional deixou de crer no projeto, uma conversão que cobrou a bagatela de 17 anos. Não é porque finalmente se preocuparam em compreender suas graves falhas estruturais, mas porque as classificações (rankings) começaram a ser chatas e aborrecidas, e porque, acima de tudo, a manipulação das cifras de alguns países, em que pese ser este um pecadilho quando se fala de 190 países, é um pecado muito mais noticioso.

Creio que as consequências do encerramento para as reformas institucionais serão positivas. Sobretudo porque a disponibilidade desses índices quantitativos havia servido como desculpa para não se pensar ou atacar os problemas reais, nem para atender à prioridade de seus componentes. Muitas das instituições que o Doing Business media, como tribunais ou Registros Públicos, prestam serviços que atuam como catalisadores da atividade econômica. Por essa razão, a qualidade jurídica do serviço é, certamente, seu atributo essencial, muito mais relevante do que o tempo consumido ou mesmo os custos explícitos. Ao prestar atenção apenas a este último elemento, o Doing Business estimulava reformas cosméticas que muitas vezes só conseguiram aumentar e acelerar a produção de serviços inúteis. (A atenção desproporcional que prestamos na Espanha aos tempos dos tribunais quanto à má qualidade e imprevisibilidade das sentenças é um bom exemplo disso).

Trata-se de uma versão do velho problema que surgiu no mundo da gestão (management) na década de 1960, após a proliferação dos primeiros computadores: a disponibilidade de dados quantitativos levou grandes empresas a praticar uma "gestão baseada em números" da qual levariam décadas para se livrar. O governante, como o gerente dos anos 1960, baseia suas decisões nas informações disponíveis e quando há muita informação quantitativa – fácil de processar – e pouca informação qualitativa – muitas vezes difícil até mesmo de entender – ficam tentados a decidir sobre as bases quantitativas. Sem medições, torna-se difícil decidir bem, mas, com medições é tentador basear-se nelas, o que garante decisões errôneas. Ainda mais se, ao fazê-lo, o administrador recebe os aplausos de jornalistas e de cientistas sem tempo ou impulso para deter-se a entender a complexidade daquilo com que lidam.

Esperemos que a descontinuação do Doing Business tenha similares efeitos terapêuticos no âmbito institucional e que gere uma reflexão crítica em todos os participantes, não só no Banco Mundial, mas também na imprensa financeira e nos fóruns liberalóides que o apoiaram apenas por compartilhar uma visão igualmente simplista do Estado. Também entre os investigadores que hoje choram copiosamente por dados agregados e que durante quase duas décadas os tomaram demasiadamente a sério. Muitos tendiam a acreditar que, processados em um shaker econométrico, os dados resultantes lhes proporcionavam resultados científicos sólidos. Esqueceram aquele velho princípio da programação de computadores segundo o qual, se o lixo entra em um processo, o que dele sai também o é geralmente (GIGO, Garbage in, Garbage out) – ou, na melhor das hipóteses, uma massa informe cuja natureza não conhecemos. Lamenta-se, a esse respeito, o fato de que descontinuaram o Doing Business quando sua influência já se havia declinado tanto que o dano que causava era cada vez menor e, quiçá, poderia um dia compensar-se com o exíguo valor de seus dados desagregados que poderiam proporcionar alguma utilidade para comparar a organização institucional de distintos países.

Enfim, cuidado com o otimismo: lembremo-nos de que uma das reações ao fracasso do "quantitivismo gerencial" foi uma moda passageira e daninha (managing by wandering around). A partir da gestão baseada em números incompletos e tendenciosos, alguns se fiaram em fofocas. Esta anedota serve para ilustrar a grande lição deste caso: as receitas fáceis geralmente encontram compradores, em boa medida porque ocultam a complexidade dos problemas. 

Referências

Arruñada, Benito (2007), "Pitfalls to Avoid when Measuring the Institutional Environment: Is 'Doing Business' Damaging Business?", Journal of Comparative Economics, 35(4), 729-47.

Arruñada, Benito (2009), "How Doing Business Jeopardizes Institutional Reform", European Business Organization Law Review, 10(4), 555-74.

Arruñada, Benito (2017), "Property as Sequential Exchange: The Forgotten Limits of Private Contract", Journal of Institutional Economics, 13(4), 753–83.

Arruñada, Benito (2018), "Evolving Practice in Land Demarcation", Land Use Policy. 77(September), 661–75.

IEG (Independent Evaluation Group; The World Bank). 2008. Doing Business: Independent Evaluation (Taking the Measure of the World Bank/ IFC Doing Business Indicators). Washington, DC: World Bank, June 15.

Wilmer Hale (2021), "Investigation of Data Irregularities in Doing Business 2018 and Doing Business 2020 – Investigation Findings and Report to the Board of Executive Directors", September, 15.

World Bank (2021), World Bank Group to Discontinue Doing Business Report, September 16.

Links adicionais

Arruñada (varios años), Otras publicaciones relacionadas.

Arruñada (2007-2021), Discusión sobre Doing Business, con comentarios a lo largo de su evolución (en inglés).

*Benito Arruñada é catedrático de Organização de Empresas na Universidad Pompeu Fabra, Barcelona, Espanha. 

 

**Esta tradução, revista e aprovada pelo autor, é dirigida especialmente aos registradores brasileiros que buscam modernizar os processos de registro e o aperfeiçoamento das instituições jurídicas e econômicas (Sérgio Jacomino).

__________ 

1 NT: É uma anedota contada entre economistas. "Suponhamos que haja um abridor de latas", diz o chiste sobre o economista que se viu isolado em uma ilha deserta e que, para comer, tinha somente alimentos enlatados.

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Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

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Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.