Migalhas Notariais e Registrais

Sistemas de registros públicos na visão da professora Mónica Jardim: breves notas e reflexões sobre o modelo brasileiro

Sistemas de registros públicos na visão da professora Mónica Jardim: breves notas e reflexões sobre o modelo brasileiro.

25/8/2021

Introdução 

Nesta nótula, pretendemos apresentar ao leitor a classificação dos sistemas registrais sob a ótica de uma das maiores autoridades de Direito Registral no mundo, a professora da Universidade Coimbra Dra. Mónica Jardim.

A ideia é propiciar, em uma menor escala cartográfica, uma visão da sua vastíssima e aprofundada tese de doutoramento, publicada sob o título "Efeitos Substantivos do Registro Predial – Terceiros para Efeitos de Registro" pela Editora Almedina.

Aos interessados em maiores detalhamentos, recomendamos-lhes enriquecer-se com a agradável leitura das mais de 800 páginas dessa monumental tese doutoral.

Registros públicos e segurança jurídica no mundo

Importância e sistemas registrais na visão tradicional 

Na obra, Mónica Jardim situa a origem dos sistemas registrais na necessidade de reduzir a insegurança jurídica (estática e dinâmica) causada pela falta de publicidade dos direitos reais em sociedades mais populosas e com grande fluxo de negócios imobiliários.

Sem o registro público - de natureza constitutiva ou declarativa -, conferir ou consolidar a oponibilidade erga omnes aos direitos reais apenas em razão de um negócio jurídico solene (eventualmente com a traditio) seria expor os adquirentes de bens a riscos e a custos expressivos. Afinal de contas, sem o registro público, torna-se praticamente inviável averiguar a higidez do direito de propriedade do transferente.

Nos sistemas registrais com eficácia constitutiva, qualquer mutação do direito real depende de registro, embora se admitam exceções de casos em que o registro terá natureza meramente declaratória (a exemplo das hipóteses de sucessões causa mortis, de usucapião e de desapropriação).

Nos sistemas com registro de eficácia declarativa, o registro apenas consolida a oponibilidade erga omnes já preexistente, embora se reconheçam alguns casos em que o registro terá apenas uma eficácia enunciativa (ex.: sucessão causa mortis, usucapião e desapropriação).

Tudo decorre destes três sistemas de registros, nominados de acordo com a terminologia romana: (1) o sistema de título; (2) o sistema de título e modo; e (3) o sistema do modo.

Sistema de título 

No sistema de título, a mutação jurídico-real satisfaz-se com o título (= o ato jurídico subjacente, como o contrato, a sentença ou a lei), sem necessidade do modo ( = sem necessidade de qualquer procedimento posterior, como a traditio ou o registro).  O registro aí tem eficácia declarativa, pois apenas consolida a preexistente oponibilidade erga omnes. Seguem esse sistema Portugal, França, Bélgica, grande parte da Itália e Luxemburgo.

Sistema de título e modo 

No sistema de título e modo, a mutação jurídico-real depende não apenas do título, mas também do modo. Pode haver dois tipos de modos: o simples ou o complexo.

Diz-se “modo simples” aquele que envolve um procedimento (registro ou traditio) que não se abstrai do título, de modo que, na hipótese de invalidade ou ineficácia deste, o procedimento não será, em regra, apto a sustentar a nova situação jurídico-real. Quando se trata de móvel, a regra é que o modo simples seja a traditio. Quando se cuida de imóvel, há países em que o modo corresponde ao registro (Brasil e certas zonas da Itália), caso em que o registro terá eficácia constitutiva, ou à traditio (como na Espanha), hipótese em que a eficácia do registro é declarativa.

Já o “modo complexo” envolve a prática de dois procedimentos. O modo não se resume a uma traditio ou a um registro, mas há também um negócio real previamente. Como há dois procedimentos, diz-se que o modo é complexo. Em suma, nesse sistema, há, como título, o negócio fundamental, que tem natureza obrigacional, como o contrato de doação ou de compra e venda, ao passo que, como modo, há dois procedimentos: (1) o negócio de disposição, também chamado de negócio real, que consiste em autorizar a mutação jurídico-real; e (2) a tradição ou a inscrição registral, conforme se trate de bem sujeito a registro ou não.

Nesse ponto, há dois modelos de sistema título e modo complexo: o austríaco e o suíço. A diferença principal entre eles está no negócio de disposição: este é um contrato na Áustria e é um ato unilateral do transferente na Suíça.

Em ambos os modelos, porém, permanece em vigor o princípio da causalidade, em razão do qual a invalidade ou a ineficácia do negócio fundamental pode derrubar a mutação jurídico-real. Não há, pois, abstração.

Sistema de modo 

Por fim, há o sistema de modo (ou melhor, o sistema do modo complexo, para o qual a mutação jurídico-real satisfaz-se com o modo, independentemente do título).

A Alemanha adotou esse modelo, mas o modo é complexo, pois não se resume a um registro ou uma entabulação/extabulação, mas também depende previamente de um negócio de disposição. Esse negócio de disposição é abstrato, ou seja, independe do título, o que demonstra que o título não é parte integrante da mutação jurídico-real.

Em suma, na Alemanha, o negócio obrigacional só se presta a vincular as partes, obrigando-as a celebrar um negócio real.

Celebrar o negócio real é cumprir o negócio obrigacional, razão por que se pode dizer que aquele é um negócio de cumprimento ou de execução. Todavia, esse dever só tem oponibilidade inter partes.

 Para nascer um situação jurídico-real, é necessário praticar um negócio de disposição (o "acordo real" ou o "negócio real") e, posteriormente, realizar a tradição (para móveis) ou a inscrição registral (para imóveis), procedimentos esses cuja validade e eficácia independem do negócio obrigacional. O registro, pois, tem eficácia constitutiva.

Portanto, o sistema de modo complexo é abstrato e constitutivo. 

Classificação dos sistemas registrais na visão de Mónica Jardim 

O brilho da jurista lusitana acena para uma nova forma de enxergar os sistemas registrais, focando a força do registro na tutela de terceiros.

Sob esse prisma, Mónica identifica dois tipos de sistemas registrais.

O primeiro é o sistema de tutela mínima ou de tutela fraca, nos quais estão os sistemas da família do modelo francês, os quais são denominados, "habitualmente, como sistemas de inoponibilidade, de transcrição, ou sistemas de Registro de documentos".

Nele, o registro destina-se apenas a garantir a "força negativa ou preclusiva da publicidade", assim entendida a proteção em favor de quem registrou sua aquisição diante de terceiros.

Foca-se a proteção de quem tem o registro, e não de terceiros adquirentes, que não podem confiar inteiramente na inscrição. A tutela desse terceiro é fraca. Assim, nesses casos, o terceiro adquirente não está protegido dos riscos de evicção decorrentes de fragibilidade dos registros anteriores.

O segundo sistema registral na classificação de Mónica Jardim é o sistema de tutela forte, nos quais se incluem os modelos alemão, suíço, austríaco e espanhol.

Nele, o registro protege não apenas o titular tabular, mas também o terceiro adquirente. O terceiro adquirente não precisa de outras investigações além da consulta ao registro para proteger-se.

Não há risco de evicção contra o terceiro adquirente, observados os requisitos do respectivo ordenamento (como a boa-fé do terceiro adquirente).

Eventual irregularidade do negócio jurídico anterior só redundará no desfazimento do registro se não prejudicar terceiros adquirentes de boa-fé.

Nesse sistema, é princípio lógico que o acesso de um título ao registro depende de um controle prévio (qualificação registral) a ser feito por um profissional especializado (o conservador ou o registrador), pois é preciso garantir a credibilidade do registro.

Para tal classificação, é irrelevante se o registro tem efeito constitutivo ou declarativo, pois o que importa é o grau da tutela do terceiro.

Mónica Jardim defende implantar um sistema registral de tutela forte.

Para tanto, lembra que é para essa diretriz que acenam alguns documentos internacionais, como a Diretriz sobre a Administração do Território, da Comissão para a Europa das Nações Unidas (Land Administration Guidelines, II, The legal framework. C. Deeds registration and title registration), que recomenda um registro que reflita fielmente a realidade (princípio do espelho ou the mirror principle), que torne desnecessário averiguações extrarregistrais (princípio da cortina ou the curtain principle) e que garanta a exatidão do publicado (princípio da garantia ou the insurance principle). 

Conclusão e modelo brasileiro 

A classificação da professora Mónica Jardim permite enxergar, com mais pragmatismo, os sistemas registrais e, por consequência, o nível de insegurança jurídica dos negócios imobiliários de cada País.

No nosso caso, ainda temos muito a avançar para alcançarmos um sistema de tutela forte, o qual, ao nosso sentir, mais adequado para a economia, a sociedade e o mercado.

Apesar de alguns esforços do legislador – como o empreendido por meio dos arts. 54 e seguintes da lei 13.097/2015 e novo Código de Processo Civil -, o nosso sistema ainda é muito vulnerável a evicções. Não nos compete aprofundar aqui, mas – para não dizer que não falamos das flores – ilustramos que registros ainda podem ruir diante de invalidades (como por fraude contra credores) e até mesmo por ineficácias (como por fraude à execução diante da prova de má-fé no caso concreto). Soma-se a isso que, na prática forense, é comum juízes negarem a averbação-notícia preconizada pela lei 13.097/2015 por uma interpretação que – s.m.j. – frustra os objetivos desse diploma1.

Inúmeros outros focos de fragilidades existem a enfraquecer o modelo registral brasileiro, mas esse debate ficará para outro momento. O que nos importa aqui é sublinhar que o vanguardismo da classificação da jurista lusitana traz a lume riquíssimos debates sobre o grau de segurança jurídica dos modelos registrais em cada país.

__________

1 Veja este julgado a título exemplificativo:

Ação de cobrança. Tutela cautelar. Averbação na matrícula de imóvel do réu. Ausência dos requisitos legais. Lei 13.097/15. A averbação da existência de demanda que não tem natureza real ou pessoal reipersecutória depende de ordem judicial - art. 56, da Lei 13.097/15 - e se traduz em medida cautelar que deve atender aos requisitos do fumus boni juris e periculum in mora, ausentes no caso.

(TJDFT, Acórdão 1322138, 07516369420208070000, 4ª Turma Cível, Rel. Des. Fernando Habibe, DJe 23/3/2021)

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.