Migalhas Notariais e Registrais

O "caixa-dois" de imóveis no Brasil: Os contratos de gaveta e seus efeitos econômico-sociais

O "caixa-dois" de imóveis no Brasil: Os contratos de gaveta e seus efeitos econômico-sociais.

24/3/2021

Sabemos que o Brasil, dentre tantos males que o assolam, é atingido pelo "costume" dos próprios brasileiros de atuarem "sem compromisso", em desconformidade com as Leis, visando a algum benefício pessoal em detrimento do todo. O pensamento de muitos é no sentido de que: "a lei é boa, mas para os outros", ou ainda: "Se eu for esperto, pago menos tributos".

Enganam-se com tais atitudes quem assim pensa, porque o Brasil somos todos nós e o que eu faço para o Brasil o faço para mim mesmo. Mas assim é, e tem sido por muitos anos... Porém, podemos mudar paradigmas, comportamentos arraigados, se o Estado (QUE SOMOS NÓS) agir de forma conjunta por meio de seus agentes, nas diversas esferas de poder, no sentido de criar-se uma nova cultura, uma cultura da Unidade Nacional - Universal, de que cada um, cada agente público é o próprio Brasil e que todos temos deveres e direitos recíprocos e responsabilidades dentro da esfera de nossa atuação pública.

Cada um de nós, agentes públicos, ao assumirmos nossos cargos e funções, assumimos também compromissos para com o povo brasileiro (que é muitas vezes "inconsciente"  de seus atos por falta de oportunidades/educação), e em conjunto, podemos agir de forma propiciar a construção de um País forte e ético, deixando um legado positivo para as futuras gerações.

Nesse aspecto, tem-se que os Registros Públicos são órgãos que desempenham um Serviço Público Essencial (delegado) e podem ter um papel crucial nesta mudança de paradigma, necessário para construção de um Brasil melhor, atuando - por meio de seus agentes (Titulares) - a serviço da moralidade, dificultando com tal prática, que a fraude e a clandestinidade impere no País.

Dentre estes males e costumes arraigados a que me referi, há um que atinge de forma coletiva a todos, que é a clandestinidade imobiliária: Os chamados "contratos de gaveta", prática que retira do mercado formal e, por consequência, da esfera de tributação estatal, milhões de imóveis no País1.

Ainda, os "contratos de gaveta" dão causa a milhares de processos nos tribunais, uma vez que cerca de 30% (trinta por cento) dos mutuários brasileiros são usuários desse tipo de instrumento2,, causando, por consequência, a tão falada "lentidão do judiciário", que precisa  voltar seu trabalho a resolver lides que seriam desnecessárias, se todos simplesmente cumprissem a Lei dos Registros Públicos.

Essas lides são geradas porque o "comprador", na maioria das vezes, vem a ter prejuízos pela não utilização do Sistema dos Registros Públicos e ter optado por ficar à margem da lei. Dentre estes prejuízos, posso citar os que seguem : o imóvel vem a ser constritado judicialmente em razão de dívida do vendedor; o vendedor falece e o imóvel precisa integrar seu  inventário e o comprador acaba tendo lides com os herdeiros; ou ainda, o vendedor negocia o mesmo imóvel com terceiros e todos acabam na "justiça"3.

Estes contratos que não são levados aos Registros Públicos são assim mantidos por anos, décadas a fio, sendo utilizados de forma usual por quem pretende ocultar patrimônio do Fisco (que somos todos nós), atingindo o Brasil nas mais diversas áreas (saúde, educação, organização e estrutura das cidades, etc).

Atinge também os mais diversos credores de mal pagadores, que restam impossibilitados de constritar (penhorar, arrestar, sequestrar, etc.) bens ou direitos do devedor faltoso.

Esses contratos também advogam a favor da criminalidade, porque servem para a chamada "lavagem de dinheiro".

Prestam-se à sonegação tributária em várias esferas, Estadual, Municipal e Federal (Imposto de Renda, Lucro Imobiliário, ITBI, ITCMD). E, retiram da economia um produto propulsor de melhorias sociais, pois quem não tem imóvel registrado não tem patrimônio formal e, consequentemente, não tem crédito...

Ainda, ofendem a Ordem Pública e a Ordem Jurídica em geral, porque o Sistema dos Registros Públicos foi criado para a Segurança, Autenticidade e Eficácia dos negócios jurídicos e os registros devem espelhar, quanto mais possível, a realidade (Verdade Real).

Como registradora, venho desde que assumi a função pública de que sou Titular, buscando criar esta "cultura nova" da ética comercial imobiliária, na comarca em que atuo, conscientizando e promovendo divulgação dos benefícios do "imóvel legal", dentro da lei, registrado e matriculado, mas a tarefa é árdua!

Tenho trabalhado  diariamente na comarca onde atuo de forma a exigir o registro de contratos de gavetas, das cadeias dominiais, visando a conscientização social, mostrando a responsabilidade de todos para com o bem comum, exigindo o recolhimento de tributos por quem visa a sua elisão.

Porém, penso que a prática negocial dos "contratos de gaveta" somente será expurgada do nosso país, quando houver sanção prevista por Lei para a ausência de  seu registro imobiliário e os poderes públicos - dentre eles o Judiciário - passarem a aplicar a Lei dos Registros Públicos de forma geral, respeitando o seu espírito, e com isso, desestimulando-se a manutenção da informalidade e clandestinidade nas relações jurídico-imobiliárias no Brasil.

Feita esta explanação inicial, passo a tratar dos aspectos jurídicos que envolvem o tema, trazendo a opinião da doutrina e o entendimento da jurisprudência atual, bem como decisões em Suscitações de Dúvida, que efetuei no decorrer destes quase 17 anos de atuação como registradora.

Inicialmente, é importante destacar que o objeto deste estudo é o contrato que pode ser registrado validamente, mas que por “vontade das partes” é retirado do mundo jurídico, ou seja, do Sistema dos Registros Públicos, visando a alguma vantagem com isso (evasão tributária, iludir credores, ou até mesmo familiares).

Não tratamos aqui, portanto, de outra questão tão ou mais séria que os "contratos de gaveta" que são os imóveis ilegais, aqueles que por não terem matrícula, não podem ingressar no Sistema Registral. Nestes casos, estão incluídos os parcelamentos irregulares, as favelas, etc., que tanto atentam contra o meio ambiente e o ordenamento das cidades. 

*Franciny Beatriz Abreu é registradora pública  na Comarca de Porto Belo/SC.

__________

1 "Metade dos imóveis urbanos no país não tem escritura. São nada menos que 30 milhões de propriedades nessa situação. Em Minas, 3 milhões não têm registro", acesso realizado  em 28/01/2020.

2  Notícia veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça - Coordenadoria de Editoria e Imprensa, em 26/05/2013.

3 Com relação aos contratos de gaveta, o STJ firmou entendimento no sentido de que a ausência de registro não retira a validade do contrato de promessa de compra e venda, porém cabe ao credor comprovar a má-fé dos terceiros adquirentes a fim de anular o registro efetuado em cartóriO: “AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO E DE REGISTRO IMOBILIÁRIO.

IMPROCEDÊNCIA. CONTRATO PARTICULAR DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO REGISTRADO. POSTERIOR COMPRA E VENDA. ESCRITURA LEVADA A REGISTRO. AUSÊNCIA DE PROVA DE SIMULAÇÃO OU DE MÁ-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. PROVIMENTO NEGADO. 1. A jurisprudência deste eg. Tribunal já se consolidou no sentido de considerar que, nos casos de ausência do registro do contrato particular de compra e venda, cabe ao credor provar a existência de simulação ou má-fé dos terceiros adquirentes. Precedentes. 2.No caso, não houve registro imobiliário do contrato particular de promessa de compra e venda dos recorrentes. Tampouco foi provada a existência de simulação ou má-fé dos terceiros adquirentes. 3.Diante do contexto fático-probatório delineado pelas instâncias ordinárias, incide o óbice da Súmula 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 320.470/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017)".

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.