Migalhas Notariais e Registrais

Aspectos relevantes da lei das XII tábuas

Aspectos relevantes da lei das XII tábuas.

17/2/2021

Introdução

No presente artigo, busca-se analisar alguns dos principais institutos da lei das XII tábuas, em especial aqueles de Direito Privado que possuem ligação direta com o Direito Notarial e Registral, como o Direito de Propriedade e o Direito de Família. Além disso, é efetuada uma análise do Direito Penal previsto naquela norma, que, como se verá, previa  punição a delitos "tipificados" pelo não cumprimento de obrigações.

Sendo essa a primeira norma positivada dentro do sistema de direito romano, seu estudo interessa a todas as áreas do direito. O leitor que lida diariamente com o direito notarial e registral com certeza encontrará a origem de diversos institutos que hoje são tratados cotidianamente nesta seara.

A lei das XII tábuas (Lex Duodecim Tabularum) é um grande marco na história do Direito. Ela nasceu da insatisfação popular que havia com as decisões dos magistrados1 romanos antes de sua edição.2 Como não havia um conjunto de leis estáveis, as partes ficavam sujeitas a arbitrariedade do julgador.

A importância da lei das XII tábuas era tão grande para o direito romano, que, séculos após sua edição, o grande jurista e orador Cícero chegou até mesmo a afirmar que ela valia mais do que a obra de todos os filósofos.3 Evidentemente, um exagero. Porém, é de se notar a importância da mesma na sociedade.

A necessidade de se fazer um resgate histórico do que se passava naquela época (por volta de 450 a.C) é condição sine qua para a contextualização dos fatos e principais acontecimentos que motivaram a sua edição. Por isso o começaremos tratando sobre como era composta a sociedade romana daquele período e a relação com os demais países.

Durante um longo e conturbado período coexistiram na Roma antiga pessoas de classes distintas, com direitos próprios e de forma não equânime, destacando-se os patrícios, plebeus e escravos, sendo a origem da Lei das XII Tábuas fruto também dessa disputa entre os variados estamentos da sociedade, uma vez que apenas poucos privilegiados tinham acesso às normas (ainda não positivadas) e isso fez com que houvesse uma pressão por parte daqueles pertencentes à classe dos plebeus com um pouco mais de condições financeiras mas ainda sem acesso a determinados direitos por não serem patrícios.

A Lei das XII Tábuas foi mais passo, senão o principal, nessa disputa que serviu de pano de fundo na análise dos pontos mais relevantes analisados no decorrer das linhas que seguem.

Sua origem, como se verá, sofreu forte influência do direito grego, haja vista que vários pontos foram textualmente copiados dos que era lá aplicado a partir do envio de uma comissão a Atenas de um grupo de Patrícios que compunham o chamado decenvirato.

Ao tratar dos principais dispositivos que foram positivados, agrupamos para fins didáticos em três subtópicos, a saber: Do Direito de Propriedade e Posse; Da Família e Sucessão; e Do Processo Civil, Penal e Execução.

A Sociedade Romana nos idos de 450 a.C

Para a real compreensão do que representou a edição da Lei das XII Tábuas, como dito na introdução, é necessário adentrar na dinâmica social de Roma no período anterior ao de sua elaboração, não esquecendo de suas instituições e adotando as cautelas necessárias com relação às fontes de pesquisa, uma vez que existem poucos documentos originais, a exemplo das próprias Tábuas, que foram destruídas anos depois em um incêndio.

Antes do surgimento da República, a forma embrionária da relação política interna romana de que se tem conhecimento é uma espécie de federação gentílica de aldeias, tendo a economia de subsistência a principal marca, com ênfase na agricultura e pecuária, passando-se para o surgimento das cidade-estado, as relações baseadas em vínculos familiares, a presença do rex, a Assembleia das Cúrias, dentre outros importantes instituições e momentos.

O destaque que damos para fins de contextualização, ainda nessa fase pré-republicana, inicia-se 100 anos antes da edição da Lei em exame, mais especificamente a partir do reinado de Sérvio Túlio (578 a 539 a.C), oportunidade em que fora realizada uma espécie de reforma social ao dividir o povo romano em tribos, tendo por base o domicílio, bem como separando por classes levando-se em conta o critério censitário, conferindo aos plebeus o direito de poderem se alistar para o serviço militar.

Pelo fato de Sérvio Túlio ter conquistado o trono romano de forma 'irregular', mas gozar de um grande apoio popular, e ser considerado não apenas um rei, mas sobretudo um 'magistrado proto-republicano', suas ações se destacaram por influenciar a dinâmica da vida social, como destaca Leão e Brandão:

reorganização do corpo de cidadãos, construção de templos, edifícios públicos e fortificações, bem como importantes iniciativas em assuntos internacionais assentam numa firme base histórica e, em alguns casos, podem ser confirmadas por informação independente: a divisão em quatro tribos, segundo a região da cidade; a divisão em centúrias (assente sobre a riqueza), que prevaleceu até ao final da República e até depois; a criação do census.4

Tanto os patrícios como os plebeus eram divididos na sociedade com arrimo na riqueza, sendo que a exteriorização dessa condição se dava inicialmente pela quantidade de armamento e apetrechos militares que usavam, pois "a distinção inicial far-se-ia provavelmente entre classis e infra classem, isto é entre os que levavam armamento completo (infantaria pesada) e os mais levemente armados (infantaria ligeira)", sendo o critério posteriormente substituído pelo caráter fiscal e político, onde a classe mais abastada detinha o controle da votação nas assembleias denominadas de comitia centuriata.5

Mesmo com essa diferenciação adotada por muitos anos, foi ainda no período pré-republicano que os plebeus começaram a galgar espaços pouco a pouco, levando-se em conta sua admissão na legião a caracterizar a substituição do poder gentílico6 pela força da propriedade privada.

Acerca dessa gradativa abertura de espaços por parte dos plebeus, adquirida a duras penas, Montagner traz uma série de conquistas que foram com o passar do tempo sendo implementadas:

Insatisfeitos, os plebeus travaram uma longa guerra política para obterem paridade de direitos políticos e civis com os patrícios. Através de uma reforma política, os plebeus obtêm gradativas vitórias: participação nas assembleias com a criação do cargo de tribuno da plebe em 495 a. C; em 450, a legalização escrita (Lei das doze tábuas); em 449, a inviolabilidade dos tribunos; em 445, a concessão dos casamentos entre patrícios e plebeus; em 367, a abertura da magistratura para os plebeus, obrigando que um dos cônsules eleitos devesse ser plebeu.7

No mesmo sentido, Cicco menciona que estas medidas foram fundamentais para que se aproximasse de uma igualdade civil que há muito era buscada, enfatizando a permissibilidade do casamento entre patrícios e plebeus por meio da lei de Canuleiro em 444 a.C., a proposição de Licínio Stolon em 367 a.C, para que um dos cargos de cônsul fosse destinado a um plebleu e a abertura do Senado para estes em 337 a.C.8

Muito se discute sobre a origem das principais classes existentes (patrícios e plebeus). Para alguns, o mais correto seria tratar os plebeus como:

um movimento político-social mais específico, que envolveu determinados grupos sociais enfrentando a crescente pretensão do patriciado de monopolizar o controle sobre elementos fundamentais da comunidade política romana, mas não envolveu todos aqueles que não eram patrícios.9 

Ou seja, o enfrentamento ao patriciado era capitaneado por aqueles que não faziam parte dessa estrutura, mas tinham melhores condições econômicas e durou muitos anos, não foi da noite para o dia que houve a abertura e tratamento igualitário entre essas classes, razão pela qual ao longo do tempo se verifica características sociais e políticas bastante distintas.10

A resistência dos patrícios em não permitir à ascensão daqueles que não faziam parte da dinâmica e do controle do poder é natural e compreensível, pois a história nos mostra que a tendência dos que estão na classe dominante é tentar a manutenção e a conquista de mais direitos e privilégios, o que seria mais difícil com a abertura e tratamento igualitário com as classes sociais que começavam a demonstrar um potencial de crescimento econômico e certas conquistas políticas.

Em que pese serem minoria, com relatos apontando para a organização de cerca de 300 famílias11, no início do período republicano se percebe de forma mais clara a separação entre essas duas classes, seja por motivos políticos, econômicos ou étnicos, podendo-se constatar que a intenção dos patrícios em controlarem de forma isolada as áreas político-religiosas acirrou ainda mais a disputa existente.

A dicotomia referenciada entre as duas principais classes é claramente constatada com a leitura do primeiro item da Tábua XI, onde se lê que "são proibidos os casamentos entre patrícios e plebeus".

Somente um século depois da edição da Lei das XII Tábuas começam a surgir a figura do magistrado de origem plebeia, destacando-se os das famílias mais abastadas e que conseguiam fazer aliança política com grupos e famílias de patrícios, somando-se ao fato de poderem eleger, após o ano 367 a.C seu próprios cônsules12, mas a relação entre essas duas classes só se tornaria mais equilibrada por volta do ano 300 a. C.13

__________

1 O nome "magistrado" em Roma era deferido a todos os mandatários eletivos, não apenas aqueles que tinham atribuições jurisdicionais.

2 A respeito do estado de arbítrio existente antes dela, vide: LIVY, Titus. The history of Rome from its Foundations, books I-V. London: Penguin Classics, 2002, 2.2.

3 MEIRA, Silvio A. B. A lei das XII tábuas. (3ª ed). Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 62.

4 LEÃO, Delfim; BRANDÃO, José Luís. As Origens da Urbe e o Período da Monarquia. In BRANDÃO, José Luís (coord.); DE OLIVEIRA, Francisco (coord.) - História de Roma Antiga volume I: das origens à morte de César. Coimbra: [s.n.], 2015, p. 39. DOI: Acesso em: 02 jan 2021.

5 Leão e Brandão, cit., 2015, p. 49.

6 Idem ibidem.

7 MONTAGNER, Airto Ceolin. A Formação de Roma e os Primórdios da Literatura Latina. Principia, n. 24, 2012, p. 3. Disponível aqui. Acesso em: 02 jan 2021.

8 CICCO, Cláudio de. História do pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p, 27.

9  KNUSTA, José Ernesto Moura. Os Pláucios, a Emancipação da Plebe e a Expansão Romana: conectando as histórias interna e externa da república romana. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 234-254, maio/ago. 2019, p. 239. Disponível aqui. Acesso em: 10 jan 2021.

10 Idem ibidem.

11 Leão e Brandão, cit., 2015, p. 47.

12 Knusta, cit., 2019, p. 240.

13 SANTOS, Maria do Rosário Laureano. Aspectos Culturais da Concepção de Justiça na Roma Antiga. Cultura Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 30, pp. 141-147. 2012, p. 148.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.