Introdução
Objetivamos tratar dos limites da qualificação tabelioa, abrangendo algumas situações mais controvertidas.
O tabelião de protesto tem de qualificar o título para identificar eventual vício formal, pois a irregularidade formal impede o protesto. Qualificar um título é a análise feita pelo tabelião a fim de verificar a viabilidade jurídica do protesto. Trata-se do que se conhece como qualificação tabelioa.
De fato, o apresentante é o senhor do protesto. Logo, é de sua responsabilidade o conteúdo do protesto. Só sobra ao tabelião a verificação de questões meramente formais.
Por isso, não cabe ao tabelião, por exemplo, verificar eventual obstáculo material à cobrança do título, como a existência de eventual pagamento da dívida perante o credor.
Nesse sentido, em São Paulo, acertadamente a juíza Tânia Mara Ahualli rejeitou a pretensão de um devedor que queria obstar o protesto de uma CDA Vara de Registros Públicos, argumentando já ter pago a dívida na Fazenda Pública e que tal fato estava sendo apurado em sede de um procedimento administrativo (1VRPSP - Pedido de Providências nº 0011319-29.2018.8.26.0100/SP, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ: 10/4/2018).
Tendência de interpretação extensiva do conceito de irregularidade formal
Há uma tendência de interpretação extensiva do que seja irregularidade formal. Isso faz com que seja muito difícil definir, cartesianamente, os reais limites do dever de qualificação formal do tabelião.
Em São Paulo, há normas específicas de situações de indícios de abusos de direito por parte do apresentante que impedem o registro do protesto, como a existência de tempo considerável entre a data de emissão do título e a sua apresentação para protesto. Como se verá mais abaixo, o entendimento do STJ é no sentido de que o tabelião deve analisar se há ou não prescrição do título, pois isso seria uma irregularidade formal a impedir o protesto (itens 34 e 35 do Capítulo XV das NSCGJ-SP).
Providência no caso de qualificação negativa
Se o tabelião detectar alguma irregularidade formal no título, ele deve abster-se de lavrar o protesto e devolver o título ao apresentante. Não é cabível a cobrança de emolumentos nesse caso, apesar do trabalho de qualificação. De fato, nada pode ser cobrado pelo exame do título devolvido ao apresentante por irregularidade formal (art. 3º, Provimento nº 86/2019-CN/CNJ).
Exemplo de questões formais
Presença dos requisitos formais de um título de crédito
As leis que regulam os títulos de crédito costumam exigir a presença obrigatória de determinadas informações na cártula, sob pena de nulidade do título de crédito. Cabe ao tabelião de protesto, ao realizar a qualificação tabelioa, conferir se esses requisitos formais específicos de cada título de crédito foi ou não observado.
Inteligibilidade do título
O tabelião deve negar o protesto de um título quando as informações nele contidas (como o valor por extenso) for ininteligível ou incompreensível, pois se trata de questão meramente formal.
Nesse sentido, a Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo chancelou a recusa de um tabelião em protestar um cheque com valor por extenso incompreensível (CGJ-SP, Processo nº 211.185/2017, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, DJ 19/03/2018).
Análise do respeito ao princípio da especialidade subjetiva
Pelo princípio da especialidade subjetiva, o devedor precisa ser identificado. Dados como CPF, CNPJ ou número de documento de identidade são essenciais para evitar homonímias. Sem esses dados oferecidos pelo apresentante, o pedido de protesto deve ser recusado (§ 1º do art. 27 da LP). O próprio instrumento de protesto exige essa informação como obrigatória (art. 22, VII, LP).
No DF, é obrigatório indicação do CPF do número do documento de identidade, se pessoa natural, ou do CNPJ, se pessoa jurídica (art. 83, parágrafo único, PGC-DFT).
Em São Paulo, vigora igual entendimento, do que dá prova decisão da 1ª Vara de Registros Públicos no sentido de vedar o protesto de sentença judicial contra pessoa jurídica cujo CNPJ não foi informado ao cartório de protesto (1VRPSP - Pedido De Providências nº 1100010-36.2017.8.26.0100/SP, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ 13/3/2018).
Questões especiais
Cautelas no protesto para fins falimentares
Tabelião deve, na qualificação de um título no caso de protesto para fins falimentares, verificar se o devedor é pessoa sujeita à legislação falimentar, sob pena de recusar o protesto. Por exemplo, não se aplica falência para sociedades simples nem para instituições financeiras, de modo que deve ser recusado pedido de protestos para fins falimentares contra essas pessoas jurídicas (art. 23, parágrafo único, LP).
Igualmente o tabelião também tem de avaliar se o título ou documento de dívida objeto do protesto para fins falimentares é ou não sujeita à legislação falimentar. Se não for, o tabelião tem de recusar o protesto (art. 23, parágrafo único, LP1).
Ademais, o art. 94, § 3º, da lei 11.101/2005 exige protesto para fins falimentares para pedido de falência decorrente do não pagamento de títulos executivos que ultrapassem o valor de 40 salários mínimos. Não há, porém, necessidade de o tabelião averiguar o valor do título protestado; isso incumbe ao juiz que for analisar o pedido de falências. É que o credor pode protestar vários títulos de pequeno valor que, somados, alcancem 40 salários mínimos. Se o pedido de falência for feito sem o respeito a esse piso, o pleito deve ser julgado improcedente (STJ, AgRg no REsp 1124763/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/2/2014).
Prescrição e caducidade
Conforme já anunciado anteriormente, há discussão acerca do dever de o tabelião ter de analisar a presença ou não de prescrição ou caducidade do título.
Em princípio, conforme texto expresso do art. 9º da LP, não cabe ao tabelião de protesto analisar a prescrição ou a caducidade do documento de dívida.
Todavia, o STJ entende que, como a lei 11.280/2006 alçou a prescrição ao patamar de matéria de ordem pública, cognoscível de ofício pelo juiz, cabe ao tabelião de protesto também averiguar a sua ocorrência de ofício. Para o STJ, a prescrição passa a integrar a regularidade formal do título e, portanto, deve ser objeto de qualificação pelo tabelião (STJ, AgRg no AgRg no REsp 1100768/SE, 4ª Turma, Rel. Ministro Marco Buzzi, DJe 17/11/2014). Não se pode falar, no entanto, que se trata de uma jurisprudência consolidada do STJ contra o tabelião, pois, na verdade, o assunto relativo à eventual responsabilização do tabelião de protesto não era o centro da discussão nesse julgado2.
De qualquer sorte, ousamos discordar desse entendimento, pois, além de não enxergamos nenhuma revogação tácita (há compatibilidade entre o Código Civil e a LP: tabelião não é juiz), a análise da prescrição depende do exame de fatos externos ao título para identificar hipóteses de suspensão e de interrupção do prazo prescricional, o que não é da alçada do tabelião, e sim de um juiz. Temos que o apresentante é o responsável por eventual prescrição do título protestado.
Análise de prazos para a apresentação de títulos de crédito a protestos
A legislação costuma estabelecer diferentes prazos para a realização de protestos de títulos de crédito a fim de que o portador garanta direitos contra todos os coobrigados cambiais. Entendemos que não cabe, porém, ao tabelião fiscalizar esses prazos por não se tratar de irregularidade formal interna ao título3. Reconhecemos, porém, que esse assunto é complexo pelo fato de o STJ já ter sinalizado para o dever de o tabelião averiguar se há ou não prescrição.
Aferição de valores e de encargos acessórios
Dentro da competência do tabelião em identificar vícios formais, indaga-se: o tabelião tem o dever de averiguar o acerto do valor cobrado pelo apresentante, com inclusão dos encargos acessórios (correção monetária e juros moratórios)?
Se o apresentante limitar-se a indicar o valor nominal do título, sem qualquer acréscimo ou conversão, cabe ao tabelião verificar apenas se o valor indicado no título condiz com o cobrado.
Se, porém, o apresentante adicionar outros encargos – como juros moratórios e correção monetária –, entendemos que a competência do tabelião limitar-se-ia a identificar se esse acréscimo é admissível pela lei (an debeatur), mas não abrangeria a obrigação de conferir a exatidão do valor calculado (quantum debeatur). Tabelião não é contador! Isso, porque o art. 11 da lei 9.492/974 estabelece que é o apresentante – e não o tabelião! – quem indica o valor do título que foi sujeito a algum tipo de correção, levando em conta a data da apresentação do título. Ademais, o art. 40 da LP prevê o termo inicial dos juros e da correção monetária a partir da data do registro do protesto, salvo se houver marco diverso pactuado, o que deixa implícito que o tabelião de protesto tem dever de viabilizar a cobrança dos encargos acessórios.
Ilustremos o quanto exposto:
a) Ex.1: se alguém apresenta, para protesto, uma nota promissória com valor nominal de R$ 3.000,00 e pede o protesto no valor de R$ 5.000,00, o tabelião deve recusar o pedido de protesto, pois o valor indicado é incompatível com o nominal da cártula e não há justificativa para isso.
b) Ex.2: se, no exemplo acima, o apresentante apresenta a nota promissória com uma planilha indicativa da incidência de correção monetária e de juros moratórios desde a data da emissão da cártula, o tabelião teria de avaliar, em primeiro lugar, se esses acréscimos são devidos para a nota promissória. E, nesse ponto, o título deveria ser recusado pelo tabelião, pois entendemos que: (1) a correção monetária só pode incidir a partir da data de vencimento do título, e não da sua emissão, em razão do princípio do nominalismo previsto no art. 305 do CC, extensível aos títulos de crédito por falta de lei especial contrária, conforme art. 903 do CC; (2) os juros moratórios só podem incidir a partir da data do protesto, pois só aí terá havido a constituição do devedor em mora à luz do art. 397, parágrafo único, do CC.
c) Ex.3: se, no exemplo acima, a nota promissória for apresentada com planilha fazendo a correção monetária e os juros moratórios incidirem de acordo com os termos iniciais corretos, entendemos que é risco do apresentante eventual falha de cálculo; não cabe ao tabelião de protesto refazer os cálculos.
A prática quotidiana, porém, é um pouco diferente. É que, quando o título a ser protestado for um título de crédito, os cartórios de protesto em alguns entes federativos só costumam aceitar o protesto do valor nominal do título, sem acréscimos de juros moratórios ou de correção monetária, e orientam o credor a cobrar esses acréscimos em ação judicial destinada apenas a tanto, mesmo na hipótese de o valor nominal já ter sido pago pelo devedor. Trata-se de medida de cautela adotada pelos tabeliães de protesto, mas entendemos que, caso o apresentante insista, é seu direito fazer acrescer os encargos moratórios à dívida principal na forma acima.
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1 Art. 23, parágrafo único, LP: "Somente poderão ser protestados, para fins falimentares, os títulos ou documentos de dívida de responsabilidade das pessoas sujeitas às consequências da legislação falimentar".
2 No caso concreto, porém, o tabelião de protesto não era réu. Desconhecemos caso concreto do STJ em que o tabelião tenha sido pessoalmente responsabilizado. Todavia, como obiter dictum, o precedente retrocitado permite a responsabilização do tabelião.
3 BUENO, Sérgio Luiz José. Tabelionato de Protesto. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp. 113.
4 Lei 9.492/97: "Art. 11. Tratando-se de títulos ou documentos de dívida sujeitos a qualquer tipo de correção, o pagamento será feito pela conversão vigorante no dia da apresentação, no valor indicado pelo apresentante."