Texto de autoria de Franciny Beatriz Abreu
Não há dúvidas que o Sistema de Registros Públicos brasileiro é importante instrumento para a regularização fundiária e proteção ambiental. Entretanto, cabe aos seus operadores utilizá-lo adequadamente.
O Registrador tem um importante papel a desempenhar na condução da sua atividade, podendo, com base nos princípios da concentração1, publicidade e segurança jurídica (art. 1º da Lei 6015/73 e da Lei 8935/94) agir de modo a resguardar e proteger o meio ambiente (art. 225 CRFB/1988), no âmbito de sua circunscrição, utilizando de mecanismos previstos em textos normativos e leis.
Os três princípios relacionam-se e são interdependentes, podendo ser considerados - juntamente com o princípio da continuidade (arts. 195 e 237 da Lei 6015/73)- as vigas mestras do Sistema Registral Imobiliário.
Aplicado o princípio da concentração em sua essência de forma continua e geral no País, as relações jurídico-imobiliárias passarão a contar com muito mais segurança jurídica – fundamento e objetivo do Sistema Registral (art. 1º da Lei 6015/73).
Isto é, se toda e qualquer informação que diga respeito a um imóvel ou a seus titulares, começar a ser averbada junto à Matrícula (de forma continua e uniforme) para conferir publicidade (efeitos erga omnes), a confiança no Sistema Registral aumentará, gerando um efeito muito positivo para a sociedade, pois bastará a qualquer pessoa ter em mãos um único documento: A certidão da Matrícula do imóvel para realizar uma transação imobiliária com segurança.
Já o princípio da publicidade ambiental (decorrente dos princípios da publicidade e concentração) estabelece a possibilidade de o Registro de Imóveis averbar determinadas informações à margem da Matrícula de imóveis sujeitos a limitações administrativas ambientais.
Por meio da aplicação deste princípio, a Matrícula deve ostentar todas as informações ambientais que pesam sobre o imóvel: limite de ocupação, taxa de construção, faixas “non aedificandi”, existência de APP, Termos de Compensação Ambiental, etc.; e com isso, poderá um interessado optar seguramente pela compra de um imovel em tais condições, ou não.
Assim, pretendo tratar neste artigo do papel ambiental do Registrador de Imóveis, que pode ser alçado ao status de um verdadeiro agente de proteção ambiental no Brasil, se souber utilizar de todas as ferramentas legais à sua disposição, agindo sempre com fundamento nos princípios citados.
O primeiro exemplo de atuação do Registrador é no tocante às Áreas de Preservação Permanente, chamadas popularmente de “APP”.
A Lei nº 12.651/12 (atual Código Florestal Brasileiro) estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação das áreas de Preservação Permanente.
Já a Lei Federal nº 6.766/79, dita as normas complementares sobre o parcelamento do solo, contanto que não infrinja as normas presentes no Código Florestal.
A Lei 6.766/79 dispõe como requisito fundamental a obrigatoriedade de uma faixa não edificável de 15 (quinze) metros da cada lado, ao longo das águas correntes e dormentes, bem como das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias.
Quanto às faixas “non aedificandi” de domínio público das rodovias e ferrovias, cabe ao Registrador observar se houve tal menção quando da apresentação de qualquer planta do imóvel que confronte com Estradas estaduais e federais (ou ferrovias), e, em caso de não existir a previsão de tal faixa, exigir a correção da planta em nota de exigência.
Já as faixas de terra marginais de águas correntes - incluídos os olhos d'agua - e águas dormentes, são consideradas APP, conforme o Código Florestal e a Lei do Parcelamento do Solo, havendo, entretanto, suposta antinomia, gerando divergências quanto à metragem da sua extensão, tese que está sendo há tempos discutida nos Tribunais.
Conforme julgados mais recentes, o STJ vêm adotando o disciplinado no Código Florestal (mesmo em imóveis urbanos), deixando de aplicar os 15 (quinze) metros previstos na Lei 6766/79.
Neste sentido, há recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, através da 2ª Turma, que julgou que a aplicação do Código Florestal somente pode ser afastada se houver lei municipal mais rígida. O entendimento foi firmado no âmbito da AResp nº 1312435, de relatoria do Ministro Og Fernandes. De acordo com a decisão, o Código Florestal é a lei especial a ser observada na espécie, cabendo às demais leis ordinárias – municipais e/ou estaduais – apenas intensificar ou manter o patamar de proteção.
No mesmo sentido, julgado que trata de imóvel de Santa Catarina:
“RECURSO ESPECIAL N. 1.505.083-SC (2014/0338358-7) Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho Recorrente: Ministério Público do Estado de Santa Catarina Recorrido: Silvia Cristina Bernardo Vieira Advogados: Odirlei de Oliveira - SC028013 Fernanda Alberton Pizzolatti - SC034596 Recorrido: Fundação Ambiental Municipal de Orleans FAMOR Advogado: Aurivam Marcos Simionatto - SC010803.
“EMENTA Recurso especial. Ação civil pública. Administrativo e Ambiental. Área de Preservação Permanente-APP. Suposta antinomia do Código Florestal com a Lei de Parcelamento do Solo Urbano no que tange à defi nição da área não-edifi cável às margens de rio. Maior proteção do meio ambiente. Incidência do limite previsto no Código Ambiental vigente à época dos fatos. Recurso especial do Ministério Público do Estado de Santa Catarina provido, para reconhecer a impossibilidade de continuidade ou permanência de qualquer edificação na área de preservação das margens do Rio Tubarão.
1. Discute-se nos autos, no âmbito de análise desta Corte Superior de Justiça, o suposto confl ito da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 4º, III, da Lei 6.766/1979) sobre o Código Florestal (art. 2º da Lei 4.771/1965) no que tange à defi nição da dimensão non aedifi candi no leito do Rio Tubarão, considerada como Área de Preservação Permanente-APP, restando incontroverso nos autos que os recorridos edifi caram a uma distância de 22 metros do corpo d’água.
2. A aparente antinomia das normas foi enfrentada pela Corte de origem com enfoque na suposta especialidade da Lei 6.766/1979, compreendendo que a Lei 4.771/1965 cederia espaço à aplicação da Lei de Parcelamento do Solo no âmbito urbano.
3. O âmbito de proteção jurídica das normas em confronto seria, na realidade, distinto. Enquanto o art. 2º do Código Florestal visa à proteção da biodiversidade, a Lei de Parcelamento do Solo tem Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 211-267, janeiro/março 2019 237 por fi nalidade precípua a ordenação do espaço urbano destinado à habitação, de modo que a proteção pretendida estaria mais relacionada à segurança da população, prevenindo edificações em terrenos alagadiços ou sujeitos a inundações.
4. Por ser o que oferece a maior proteção ambiental, o limite que prevalece é o do art. 2º da Lei 4.771/1965, com a redação vigente à época dos fatos, que, na espécie, remontam ao ano de 2011. Incide, portanto, o teor dado ao dispositivo pela Lei 7.511/1986, que previu a distância mínima de 100 metros, em detrimento do limite de 15 metros estabelecido pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Precedente da Segunda Turma: REsp 1.518.490/SC, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 15.10.2018.
5. Frise-se, ademais, não se admitir, notadamente em temas de Direito Ambiental, a incidência da Teoria do Fato Consumado para a manutenção de situação que, apesar do decurso do tempo, é danosa ao ecossistema e violadora das normas de proteção ambiental.” (grifei).
Havendo APP, cabe ao Registrador promover a sua publicidade, averbando-a à margem das Matrículas de seu acervo, indicando sua localização e extensão, prevenindo com tal prática terceiros interessados nos citados imóveis e contribuindo para a sua fiscalização pelo poder público, pois sem tornar tal informação pública, por meio da averbação não há como efetuar-se o controle da norma ambiental.
A averbação da informação da existência de APP sobre o imóvel matriculado no Registro de Imoveis é realizada privilegiando os princípios da concentração e da publicidade ambiental.
Acerca da importância da averbação da APP no Registro de Imóveis, colhe-se da obra do doutrinador Marcelo M. Melo, in: clique aqui (acesso em 07/08/2020):
“4.2.1 Importância registral da APP
(…) Não obstante, inegável a importância de sua especialização no Registro de Imóveis como caráter didático, já que o proprietário e futuros proprietários teriam ciência da restrição, reforçando a ideia contida na legislação ambiental aumentando-lhes a consciência ecológica. Outra utilidade em se proceder à averbação da APP seria a facilidade do Registrador imobiliário constatar uma exclusão no cômputo, em eventual especialização de RLF por vedação expressa do Código Florestal.
Existe facilidade de localização já que a própria lei já apresenta algumas referências, principalmente em margens de cursos d’água.
Mas a averbação poderá ser realizada a nosso ver com a apresentação de planta e memorial descritivo subscrito por profissional habilitado (engenheiros florestais ou agronômicos, por exemplo) com o respectivo recolhimento de anotação de responsabilidade técnica (ART) para se ter certeza da especialização.
Em virtude da expressa indicação da legislação ambiental das APP, fácil sua constatação pelos órgãos públicos; incluído o Registro de Imóveis.
(…)
A publicidade de referidas áreas pode ser vista como essencial para o Registro de Imóveis e população em geral, deveria ser tratado com prioridade e acessar o fólio real antes mesmo das reservas legais florestais, pela importância ambiente e até econômica que representam.” (grifei).
Assim, sendo apresentados ao Registrador documentos que apontam a existência de APP (Área de Preservação Permanente) sobre determinado terreno, cabe a este exigir que seja tal área localizada e averbada junto à Matrícula, para fins de publicidade registral, em respeito também ao princípio da concentração.
A respeito, dispunha o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça de Santa Catarina no ano de 2013:
“Art. 802. O Registrador informará aos intervenientes acerca das restrições ao uso do imóvel quando este se localizar em Unidade de Conservação (ex.: Parque Estadual Serra do Tabuleiro, Parque Estadual Serra Furada, Parque Estadual das Araucárias, Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, Reserva Biológica Estadual da Canela Preta, Reserva Biológica Estadual do Aguaí), bem como em área considerada de preservação permanente – APP.
§ 1º A providência determinada no caput será consignada no registro e será
dispensada quando já constar da escritura.
§ 2º Na ocorrência de dúvida quanto à existência de restrição ou aos seus limites,
o Registrador deverá consultar a Fundação de Amparo à Tecnologia e ao Meio
Ambiente – FATMA (endereço eletrônico: www. fatma.sc.gov.br), na qualidade de gestora das referidas unidades.”
Já o atual Código de Normas, no mesmo sentido, assim estatui:
“Art. 688. O oficial deve estar atento à completa identificação do titular de direito real e da propriedade imobiliária”.
“Art. 685. Além das previsões legais específicas, averbar-se-ão, na matrícula ou no registro de transcrição, para mera publicidade:
(…)
XI - os termos de responsabilidade de preservação de reserva legal e outros termos de compromisso relacionados à regularidade ambiental do imóvel e seus derivados;”
Para a averbação da APP, cabe ao interessado apresentar ao Registro de Imóveis:
- Planta e memorial descritivo subscritos por profissional habilitado (engenheiros florestais ou agronômicos, por exemplo) com o respectivo recolhimento de anotação de responsabilidade técnica (ART);
- A aprovação do órgão ambiental (estadual ou municipal) na planta;
- A planta deverá conter a indicação da área, medidas e localização da APP.
Ainda com relação à Áreas de Preservação Permanente, é dever do Registrador, no ato da qualificação (art. 198 da Lei 6015/73), exigir a respectiva licença Ambiental (LAI) para registro de parcelamentos, condomínios de lotes, incorporações imobiliárias, ou mesmo averbação de construção, quando o terreno se tratar de área abrangida por APP.
A esse respeito, dispõe a Resolução 237/97 do CONAMA:
“Art. 5º - Compete ao órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos empreendimentos e atividades:
(...)
II - localizados ou desenvolvidos nas florestas e demais formas de vegetação natural de preservação permanente relacionadas no artigo 2o da Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, e em todas as que assim forem consideradas por normas federais, estaduais ou municipais;”
“Art. 6º - Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio.”
No Estado de Santa Catarina, para o registro de Condomínio de Casas, há também necessidade de apresentação ao Registro de Imóveis da Licença Ambiental (LAI), sob pena de denegação do registro requerido.
A esse respeito, dispõe o CNCGJSC:
“Art. 778. Quando for o caso, será exigida licença do órgão ambiental competente na aprovação de condomínio de edificações de que trata o art. 8º da Lei n. 4.591, de 16 dezembro de 1964. (redação alterada por meio do Provimento n. 12, de 5 de agosto de 2016)”.
Com tais práticas, o Registrador, atuando como braço do Estado, verifica se está ou não sendo preservada a faixa de APP, podendo agir em caso de desrespeito ou invasão da área protegida por Lei, informando ao Ministério Público Estadual para que atue e tome providências (art. 6º da Lei 7347/85).
Outra atuação do Registrador como agente de proteção Ambiental é no tocante aos imóveis rurais.
Neste caso, a atuação do Registrador está adstrita à necessidade de formular nota de exigência para que seja apresentado recibo do CAR (Cadastro Ambiental Rural) - quando se tratar de transmissão da propriedade, desmembramento ou retificação de área do imóvel - a fim de que seja fiscalizada a implantação das áreas de Reserva Florestal Legal.
Em caso de ser apresentado CAR “zerado”, no qual não conste área destinada à Reserva Legal, cabe ao Registrador informar ao Ministério Público da Comarca, para investigação.
Sobre a matéria, o Código de Normas disciplina:
“Art. 685.
(…)
§ 3° A prévia averbação do cadastro ambiental rural (CAR) é condição para a transmissão da propriedade, desmembramento ou retificação de área do imóvel. (redação acrescentada por meio do Provimento n. 8, de 29 de janeiro de 2020) Circular n. 15, de 29 de janeiro de 2020
§ 4º Fica dispensada a averbação do número de inscrição no cadastro ambiental rural (CAR) nos casos de existência prévia de averbação da reserva legal. (redação acrescentada por meio do Provimento n. 8, de 29 de janeiro de 2020) Circular n. 15, de 29 de janeiro de 2020”.
“Art. 688. O oficial deve estar atento à completa identificação do titular de direito real e da propriedade imobiliária. (redação alterada por meio do Provimento n. 21, de 13 de dezembro de 2016)
(…)
XII - o número de inscrição no cadastro ambiental rural (CAR). (redação acrescentada por meio do Provimento n. 8, de 29 de janeiro de 2020) Circular n. 15, de 29 de janeiro de 2020”.
Cabe salientar, que a apresentação do CAR no Registro de Imóveis e sua averbação é ato obrigatório, também para imóveis que tenham passado ao perímetro urbano após a edição da Lei n. 7.803/89, como forma de proteger o meio ambiente e não privilegiar aqueles proprietários que deixaram de proceder à averbação da reserva legal em tempo oportuno.
Neste caso, não havendo apresentação do CAR com a especialização da Reserva Legal, deve o Registrador oficiar ao Ministério Público da Comarca, comunicando tal fato e averbar a ausência da da especialização da Reserva Legal à margem da Matrícula do imóvel.
Neste sentido, dispõe o CN:
“Art. 691. A averbação da transformação de imóvel rural em urbano sem a prévia especialização da reserva legal deverá ser comunicada ao Ministério Público.”
No Estado de Santa Catarina está em vigor a Lei 14.675/2009, que assim estabelece acerca da Reserva Legal:
"Art. 122. Na propriedade ou posse de imóvel rural que não atenda ao percentual de reserva legal exigido, deverão ser adotadas as seguintes medidas, isolada ou conjuntamente:
I - recompor a reserva legal mediante o plantio na área necessária a sua complementação;
II - conduzir a regeneração natural da reserva legal;
III - compensar a reserva legal por outra área equivalente em importância ecológica e extensão, que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma bacia hidrográfica;
IV - mediante o arrendamento de área sob o regime de servidão ambiental, ou de reserva legal, ou da aquisição de Cotas de Reserva Florestal - CRF;
V - através da aquisição e doação ao Estado de áreas no interior de Unidades de Conservação de proteção integral de domínio publico pendentes de regularização fundiária.
§ 1º Quando as medidas deste artigo forem necessárias em pequenas propriedades ou posses rurais, assim entendidas para os fins desta Lei, o Poder Público Estadual prestará apoio técnico.
§ 2º O regulamento da presente Lei indicará os critérios técnicos para a aprovação das medidas prevista neste artigo pelo órgão ambiental".
Ou seja, de acordo com a lei estadual citada, se o imóvel rural não conter Área de Reserva Legal, ou esta encontrar-se diminuída, deverão ser adotadas medidas visando a recomposição, regeneração ou compensação da área degradada.
Por fim, ainda quanto à Reserva Legal, destaco que nos termos do Parecer (pesquisa nº 133/2015 de 19/11/2015, do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do MP/SC), de autoria do coordenador do CME, Promotor de Justiça Paulo Antônio Locatelli, cabe ao MPSC investigar quando apresentado ao Registro de Imóveis recibo do CAR com área de Reserva Legal inferior a 20% (vinte por cento).
Neste caso, ao receber Ofício do Registrador informando o fato, o Ministério Público irá investigar se realmente tal propriedade (com menos de 4 módulos fiscais), possuía ou não, em 22 de julho de 2008, vegetação nativa (art. 67, da Lei nº 12.651/12), como forma de assegurar a área rural consolidada e impedir novos desmatamentos.
Por fim, como último papel ambiental do Registro de Imóveis, não se pode deixar de mencionar, a importante missão do Registrador consistente em fiscalizar a ocorrência de parcelamentos do solo irregulares na sua circunscrição, deixando de registrar títulos que, por vias transversas, impliquem em loteamentos clandestinos. Havendo indícios de tal prática, cumpre ao Registrador denegar o registro do título e oficiar ao Ministério Público.
Os loteamentos clandestinos são uma doença das cidades que precisa ser combatida com rigor, uma vez que toda a sociedade perde - em especial as gerações futuras - com a proliferação de empreendimentos criados à margem das leis.
Isso porque, deixam-se de ser criadas Áreas Verdes, praças, arruamentos e redes de esgoto. Sem falar nas questões tributárias, pois lotes clandestinos são transmitidos, muitas vezes por gerações, mediante o uso de “contratos de gaveta”, prática que implica na costumeira sonegação fiscal.
Enfim, um loteamento irregular é um mal que atinge múltiplas esferas:
- Ambiental – não são criadas áreas verdes, não são criadas redes de esgoto, não são observadas as regras ambientais, entre outras questões;
- Fiscal – o Estado deixa de arrecadar;
- Social – a sociedade deixa de receber (na saúde, educação, etc) os benefícios oriundos dos tributos que deveriam ter sido recolhidos aos cofres públicos;
- Ordenação Urbana – as cidades ficam desordenadas, sem vias públicas adequadas, sem praças, sem iluminação pública, sem redes de água e esgoto (…).
Portanto, estando evidente que um loteador que parcela irregularmente uma gleba cria uma dívida incalculável para a sociedade, não há dúvidas que cabe ao Registrador combater com rigor os loteamentos clandestinos.
A Corregedoria-Geral de Justiça do Paraná, por meio de orientação - Protocolo SEI/TJPR n. 1171304, assim disciplinou:
“(…) Os Registradores de Imóveis ao efetuarem a qualificação registral devem conciliar a necessidade de fiscalização dos parcelamentos irregulares com o direito de propriedade garantindo pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXII, de forma a evitar fraudes à lei nº 6.766/1979 e assim assegurar o cumprimento dos deveres urbanísticos. Neste sentido o Registrado deverá tomar as seguintes cautelas:
a) verificar se há alienações sucessivas de pequenas frações ideais do imóvel, formando condomínio com a pessoa sem nenhuma afetividade familiar (parentesco) ou outros vínculos especiais, o que presume que o imóvel está sendo alienado em lotes(...) f) se há a indicação de área específica para a fração ideal comprada pelo adquirente, pois pode revelar que os condomínios estão sendo atribuídos em quinhões do imóvel, mediante parcelamento do solo disfarçado sob a forma de condomínio. Assim, verificando os Registradores no caso concreto de qualquer uma das possíveis manifestações e indícios de burla à lei de parcelamento do solo supramencionadas deverão submeter a remessa das informações relativas ao juiz Corregedor do Foro Extrajudicial, ao Ministério Público e ao Procurador do Município”
Sobre o papel do Registrador no combate aos loteamentos clandestidos, em Santa Catarina, dispõe o Código de Normas:
“Art. 713. É vedado ao oficial proceder ao registro de:
I – venda de parcela de loteamento ou desmembramento não registrado;
II – fração ideal de condomínio não aprovado pelo município;
III – fração ideal com localização, numeração e metragem certa;
IV – qualquer forma de instituição de condomínio ordinário que desatenda aos princípios da legislação civil ou que, de modo oblíquo e irregular, caracterize parcelamento do solo urbano; e
V – escritura pública ou contrato particular que verse sobre promessa de compra e venda de propriedade imobiliária e implique parcelamento irregular do solo urbano ou fracionamento incabível de área rural.”
“Art. 714. As frações ideais poderão estar expressas, sem distinção, em percentuais, frações decimais ou ordinárias ou área.”
“Art. 715. Para a configuração de loteamento clandestino, deve-se considerar, dentre outros dados objetivos a serem isolada ou conjuntamente valorados:
I – a disparidade entre a área fracionada e a do todo maior;
II – a forma de pagamento em prestações; e
III – os critérios de rescisão contratual.”
“Art. 717. Diante de indícios da existência de loteamento clandestino, o oficial noticiará tal fato ao representante do Ministério Público, com remessa de cópia da documentação disponível.”
A jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo recusa o registro de título de aquisição de lote de terreno, sem a prévia regularização do loteamento:
“REGISTRO DE IMÓVEIS - Escritura de venda e compra - Loteamento não registrado - Abertura de Matrícula - Impossibilidade - Imóvel com descrição precária e, sua área maior, vendido em parte segregada - Necessidade de apuração do remanescente - Ausência de controle da disponibilidade e da especialidade - Identificação do proprietário e de sua mulher - Necessidade de adequação dos dados qualificativos do título com os do registro - Averbação que se faz necessária -Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 118-6/0, Rei. Des. Luiz TâmbaraJ. 25.11.2003).
“REGISTRO DE IMÓVEIS. Recusa de registro de escritura pública de compra e venda de lotes que integram loteamento não inscrito, mantida na sentença de procedência da dúvida suscitada pelo Oficial. Lotes destacados de área maior, que apresentam descrição precária. Necessidade de apuração da área e devida delimitação e caracterização dos lotes, de modo a permitir o ingresso seguro, no registro imobiliário, evitar sobreposição de área e possibilitar o controle da disponibilidade. Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 651-6/2, Rei. Des. Gilberto Passos de Freitas, j . 22.2.2007).
“REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida julgada procedente - Negado registro de escritura de venda e compra de lote destacado de área maior -Loteamento clandestino - Indispensável a prévia regularização do parcelamento - Ocorrência de destaques anteriores - Inviabilizado o controle de disponibilidade e especialidade - Necessidade de apuração do remanescente e da correta localização do lote na área de que foi destacado - Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 810-6/9, Rei. Des. Ruy Camilo, j . 27.5.2008)
REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida - Fração ideal de imóvel a que atribuída área certa - Elementos registrados que demonstram a implantação de parcelamento irregular do solo urbano - Registro inviável - Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 857-6/2, Rei. Des. Ruy Camilo, j . 3.6.2008).
O combate aos loteamentos cladestinos deve ser efetuado inclusive nos procedimentos extrajudiciais de usucapião, denegando o Registrador o processamento e o consequente registro, por ofensa à Lei 6766/79 e à Constituição Federal (art. 225). Em suma: Sem parcelamento regular, não é possível abrir a Matrícula. Sem a Matrícula, o usucapião não pode ser registrado.
A Doutrina pátria comunga desse entendimento: “Sem possibilidade de registro, por falta de Matrícula, que não poderia ser aberta, sem a regularização do loteamento, a sentença concessiva do usucapião seria um título inútil. Não se concebe que possa extrair algum resultado útil” (Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 7 ed., p. 230, RT, S. Paulo, 1990).
Os Tribunais, por sua vez, têm reiteradamente decidido que o usucapião não é via adequada à regularização de loteamento clandestino, consoante os seguintes precedentes:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEL RURAL. FRACIONAMENTO IRREGULAR.
LOTEAMENTO CLANDESTINO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO.
SENTENÇA MANTIDA. I - A ação de usucapião não se constitui em instrumento processual adequado a regularizar o fracionamento de área rural em urbana, notadamente quando se sabe que se trata de área integrante de loteamento clandestino, não aprovado pelo município, que sequer Matrícula existe no registro imobiliário. II - Verificado que eventual sentença declaratória de aquisição do domínio de bem imóvel não poderá ser transcrita no registro de imóveis, é de se manter a sentença que julgou extinto o processo, sem a resolução de mérito” (TJMG - Data de Julgamento: 16/12/2014; Data de Publicação: 28/01/2015; Cidade: Esmeraldas; Estado: Minas Gerais; Relator: Vicente de Oliveira Silva)
“USUCAPIÃO - O usucapião não é o meio apropriado para regularização de loteamento clandestino e sim modo de aquisição de propriedade pela posse animus domini. Recurso provido para julgar improcedente a ação”. (TJSP - Apelação Cível nº 84.792-4 - Rei. Ênio Zulianni - 27.07.99 - V.U.).
“USUCAPIÃO DE LOTE DE TERRENO DE DESMEMBRAMENTO CLANDESTINO, EM DESACORDO COM OS REQUISITOS DO ARTIGO 18 DA LEI 6.766/79 - Impossibilidade de registro, a inviabilizar o pedido de reconhecimento da prescrição aquisitiva - Apelo do Ministério Público provido, para julgar improcedente a ação -Comunicada a Corregedoria Geral da Justiça das irregularidades apuradas no Registro Imobiliário local.” (TJSP - Apelação nº 157.508-4/4-00 - Rei. Luiz Ambra - 8 Câmara de Direito Privado - j . 27.03.09).
“USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - Imóvel urbano - O lote usucapiendo faz parte de loteamento irregular e foi dado em aforamento ao apelado pela Mitra Diocesana de Taubaté - O direito real de enfiteuse não se constituiu, à falta de registro do loteamento e abertura de Matrículas dos lotes - Conquanto tenha permanecido no plano do direito pessoal o aforamento, conclui-se que a posse direta do apelado não é exercida animo domini- Por derivar de contrato, a posse do apelado não é apta à aquisição de domínio pela longevidade -Ademais, não se presta o usucapião à regularização de loteamento clandestino - Sem parcelamento, não é possível a abertura de Matrículas - À falta de Matrícula, não é possível o registro de sentença que concedesse o usucapião - Precedentes do Conselho Superior da Magistratura - Configurada a inutilidade do provimento jurisdicional pleiteado - Processo extinto, sem julgamento do mérito (art. 267 , VI, do CPC )- Recurso provido” (TJ-SP - Apelação APL 994050556150 SP - Data de publicação: 17/03/2010).
Portanto, diante de todo o exposto, conclui-se que é de grande amplitude o papel do Registrador de Imóveis como agente de proteção ambiental, podendo contribuir de forma decisiva, por meio de sua atuação diária, para a preservação ambiental em sua circunscrição.
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1- “ No seu aspecto formal, o princípio da concentração é um dos princípios registrais que decorre da interpretação da Lei dos Registros Públicos e se consagrou na prática registral brasileira, tendo sido amplamente reconhecido, não apenas pelos Registradores, mas também pela jurisprudência dos Tribunais. Esse princípio foi doutrinariamente desenvolvido pelos estudos de Décio Erpen, desembargador aposentado do TJRS, e João Pedro Lamana Paiva, Registrador imobiliário em Porto Alegre-RS, com a adesão de Mário Pazutti Mezzari, Registrador imobiliário em Pelotas-RS. (...) tem seu fundamento mais remoto no fato de que o Direito só protege aquilo que é dado a conhecer às pessoas e, quando isso não se realize publicamente, pelo menos que chegue ao conhecimento daquelas pessoas que tenham real interesse em relação a determinada situação jurídica” (in: LAMANA PAIVA, João Pedro, Princípio da Concentração, extraído do site: https://registrodeimoveis1zona.com.br/?p=695, acesso em 07/08/2020).