Texto de autoria de Izaías Gomes Ferro Júnior
Atualmente a hipoteca convencional encontra-se em verdadeiro ocaso jurídico. Não é mais constituída em praticamente nenhum contrato1. A hipoteca sobrevive, pois ainda é constituída por instrumentos cedulares rurais, pois o decreto-lei 167/67 não prevê outra forma de garantia para bens imóveis2. O funcionamento das hipotecas cedulares rurais para o agronegócio é satisfatória e o índice de excussão é baixíssimo3. O proprietário rural, via de regra, paga suas dívidas e ao segura-la junto ao credor, mitiga o inadimplemento, com eventual "quebra da safra"4.
Percebeu-se a fragilidade da hipoteca convencional, ou caução de bem imóvel (que é hipoteca, lato sensu) no ordenamento jurídico brasileiro, com algumas decisões de nossos tribunais e principalmente com a edição da súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça5 e, por isso, tal garantia real praticamente deixou de ser celebrada, dando lugar a Alienação Fiduciária em Garantia (AFG) de bens imóveis instituída pela lei 9.514/97.
O Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.419, versa sobre as modalidades dos direitos reais em garantia, quais sejam, o penhor6-7, a hipoteca8-9 e a anticrese10. Ao lado destas três clássicas garantias reais, tem-se a alienação fiduciária em garantia de bens móveis e imóveis11. A transmissão da propriedade fiduciária12 constitui instrumento da realização de uma série de negócios típicos da sociedade contemporânea, dividindo a posse, em direta e indireta, ao devedor fiduciante e ao credor fiduciário respectivamente, os quais tem vantagens e desvantagens nesta transformação da propriedade13-14.
Os direitos reais de garantia ganham importância na circulação de riqueza, pois contribuíram para a humanização na cobrança das dívidas, estabelecendo garantias que permitem ao credor buscar, diretamente no patrimônio do devedor dado em garantia por meio do penhor, da hipoteca, da anticrese, ou mesmo a alienação fiduciária, a satisfação do seu débito. Assim é feito em quase todo o mundo, particularmente com um instituto jurídico de direito real, historicamente recente entre nós, a Alienação Fiduciária em Garantia, seja para bens móveis ou imóveis15. Neste contexto que se procurará encontrar os motivos que levaram a não utilização da hipoteca como principal mecanismo jurídico para constituições de garantias reais imobiliárias e o avanço da alienação fiduciária em garantia dos bens imóveis.
Hodiernamente a hipoteca é utilizada somente onde a Alienação Fiduciária em Garantia não seria possível ou não seria conveniente, como na concessão do crédito rural, como dito, através dos instrumentos cedulares registrados junto aos Registros de Imóveis. Estudar a revitalização da hipoteca faz necessário.
A hipoteca, vetusta para muitos, é instrumento que permite múltiplas constituições e em graus subsequentes. Este mecanismo dinamiza a economia, pois um bem imóvel pode garantir operações diversas, bastando que o credor aceite a constituição em grau superior ao antecedente. O estudo da hipoteca precisa ser aperfeiçoado e para tal, sua execução, melhor estudada e alterar o instituto legislativamente e se analisar situações onde se propõe a celeridade da execução, por que não, extrajudicialmente.
A Alienação Fiduciária em Garantia para bens imóveis, igualmente precisa ser renovada, pois ainda não se permite a constituição de dois direitos sobre o mesmo imóvel, apesar de correntes doutrinárias pregarem a constituição da segunda AFG com eficácia suspensiva.
Estes direitos reais em garantia, hipoteca e alienação fiduciária, não podem ser constituído concomitantemente consoante doutrina majoritária, isto é, um imóvel hipotecado, não pode ser alienado fiduciariamente a um credor diferente do credor hipotecário, mas por que não? Os dois direitos reais de garantia têm soluções próprias, e em tese, a constituição de um não excluiria o outro a credor diferente, desde que publicizado junto ao registro imobiliário, apesar das peculiaridades próprias.
Garantias reais constituídas por meio de um título de crédito, em especial as Cédulas de Crédito Rural constantes no decreto-lei 167/1967 não é propriamente uma algo que surge em 1967, já que a lei 492, de 30 de agosto de 1937 também regulava o penhor agrícola, o penhor pecuário e a cédula rural pignoratícia. Entretanto, não se pode olvidar que apenas com o advento do decreto-lei 167/1967 os títulos de crédito destinados ao financiamento rural foram devidamente utilizados, tanto que mencionado ordenamento constituiu um marco para os produtores, investidores rurais e principalmente as instituições financeiras credoras que puderam conceder crédito com garantia hipotecária.
Tem-se claro que a constituição da hipoteca cedular é de grande valia para a correta aplicação dos instrumentos colocados à disposição dos produtores rurais, vez que são esses títulos de crédito que fomentam a atividade agrícola, auxiliando no custeio da produção e possibilitando a comercialização dos produtos, e até mesmo a garantia da venda antecipada deles como na Cédula de Produto Rural, objeto da lei 8.929/94.
Salienta-se, novamente, que a vantagem da constituição da hipoteca, não impede a constituição de outra em grau superior no mesmo imóvel, ao passo que na alienação fiduciária de bens imóveis, a garantia registrada junto a serventia registral competente, não permite, via de regra, outro gravame idêntico, apesar existirem de projetos de lei que tramitam junto à Câmara Federal, neste sentido.
O fato da hipoteca ser múltipla, isto é, poder ser constituída por diversos graus no mesmo imóvel, dinamiza a circulação do dinheiro, e a realidade fática do imóvel agrário demonstra isto, pois praticamente hoje, as únicas hipotecas constituídas são as oriundas das cédulas de crédito rural, e eventualmente as cédulas de crédito industrial, à exportação e a comercial. Os agentes financiadores utilizam diuturnamente a constituição de hipotecas cedulares, principalmente as rurais, e isto pode ser comprovado junto aos Registros Imobiliários Brasileiros das comarcas do interior.
Entretanto, os credores não utilizam mais a hipoteca convencional. Há um motivo para tal. A Alienação Fiduciária em Garantia (AFG) de bens imóveis16 mitiga a utilização, e alguns dizem que quase efetivamente substituiu a hipoteca convencional porque tem mais liquidez e maior celeridade na recuperação do crédito. O crédito circulante traz mais atratividade ao mercado de ativos e quanto mais líquido o crédito, à medida que podem ser mais facilmente executadas para a satisfação da dívida, mais é utilizado. A Lei da Alienação Fiduciária em Garantia trouxe, ao menos inicialmente, oxigenação ao mercado imobiliário e seu financiamento, porque é mais simples e rápida para ser executada.
Como dito, a AFG substitui, ou ao menos comprometeu o uso da hipoteca convencional, porque sendo mais líquida do que a hipoteca é mais eficiente, de maneira que a hipoteca, de fato, tende a ser um modelo, não obsoleto, mas subsidiário. Quanto mais líquida ou liquidável for o instituto da garantia, melhor ela será, assim como mais líquido ou liquidável for o objeto da garantia, melhor ele será. Por isso que, pela sistemática processual, a AFG é mais eficiente que a hipoteca.
Entretanto, a Alienação Fiduciária em Garantia também parece enfraquecer, pois em decisão do ano de 2019 o Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.576.164 - DF (2015/0324836-0), tratou de nivelar por baixo a garantia real imobiliária constituída por Alienação Fiduciária de bens imóveis, bem como outros julgados da mesma corte.
Aponta a Exma. Ministra Nancy Andrighi, relatora, que em relação à Súmula 308, os julgamentos17 que motivaram o enunciado estão firmados no sentido do controle do abuso nas garantias constituídas na incorporação imobiliária, de forma a proteger o consumidor de pactuação que acaba por transferir a ele os riscos do negócio. A Ministra relatora manifestou-se:
"Partindo-se da conclusão acerca do real propósito da orientação firmada por esta corte – e que deu origem ao enunciado sumular em questão –, tem-se que as diferenças estabelecidas entre a figura da hipoteca e a da alienação fiduciária não são suficientes a afastar a sua aplicação nessa última hipótese, admitindo-se, via de consequência, a sua aplicação por analogia"18.
Percebe-se que mais uma garantia real está enfraquecendo-se e daqui por diante, o caminho que a hipoteca “trilhou” poderá ser feito pela Alienação Fiduciária em Garantia de bem imóvel perdendo-se, novamente, credibilidade e encarecendo o crédito imobiliário, embora o caso analisado seja pontual e haja razões para tal decisão.
A Alienação Fiduciária em Garantia ainda é a garantia real imobiliária preferida pelo mercado, apesar das recentes decisões. Entretanto, se se tratar a AFG eivada de vícios, quer de validade ou de eficácia em seu nascedouro, como na hipótese de fraude contra credores, fraude à execução ou na incorporação imobiliária, como foi o caso trazido no REsp 1.576.164 - DF citado, não deveria ser vista como enfraquecimento da garantia, pois, esse vício prévio, poderá ser invocado, apenas e excepcionalmente para derrubar a garantia fiduciária. Pode ser corrigido com uma simples alteração legislativa, quer se proibindo dar em garantia fiduciária imóvel à venda na planta ou com o cancelamento pelo credor da garantia real (quer hipotecário ou em alienação fiduciária) concomitante à venda ao adquirente.
Há que se repensar o mercado imobiliário de garantias reais imobiliárias e sua excussão, baseado no Registro de Direitos, seu fortalecimento e publicização junto ao fólio real ao invés de trâmite fora da matrícula do imóvel, como imagina as recentes alterações trazidas pela lei 13.986/2020.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre os títulos de crédito rural e dá outras providências. Disponível em: <_https3a_www.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jul. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994. Institui a Cédula de Produto Rural, e dá outras providências. Disponível em: <_https3a_www.planalto.gov.br>. Acesso em: 27 jul. 2020.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015: Código de Processo Civil. Disponível aqui. Acesso em: 27 jul. 2020.
BRASIL. Lei nº 13.986, de 07 de abril de 2020: Institui o Fundo Garantidor Solidário (FGS); dispõe sobre o patrimônio rural em afetação, a Cédula Imobiliária Rural (CIR), a escrituração de títulos de crédito e a concessão de subvenção econômica para empresas cerealistas entre outras disposições. Disponível aqui. Acesso em: 27 jul. 2020.
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BEVILÁQUA, Clóvis. "Direito Civil. Direito das Coisas. Vol. II". Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
CHALHUB, Melhim Namem. "Propriedade Fiduciária. Função Social e outros aspectos". Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
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MIRANDA, Pontes de. "Tratado de Direito Privado – Parte Especial" Tomo XXI. Direito das Coisas. Penhor e Anticrese. Atualizado por Nelson Nery Jr e Luciano de Camargo Penteado. São Paulo: Ed. RT. 2012.
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1 Pesquisa feita entre 100 Registradores Imobiliários do Brasil. A hipoteca convencional é registrada em menos de 1% do total dos contratos com garantia real levados ao registro imobiliário brasileiro.
2 Artigo 20 do decreto-lei 167 de 14 de fevereiro de 1967, alterado em 07 de abril pela lei 13.986/2020
3 Pesquisa feita na Região de Presidente Prudente-São Paulo por este aluno com 15 Registradores Imobiliários.
4 Plano Safra 2020/2021 destinará mais de R$236 bilhões aos produtores rurais. Acesso em 20 de julho de 2020.
5 Súmula 308 do STJ. Esta súmula estabelece que a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.
6 ASCENÇÃO, José de Oliveira. "Direito Civil. Reais". 5ª Ed. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 546
7 JUSTO, Santos. "Direitos Reais". 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 463.
8 Ibid, p. 470
9 BEVILÁQUA, Clóvis. “Direito Civil. Direito das Coisas. Vol. II”. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 129.
10 MIRANDA, Pontes de. "Tratado de Direito Privado – Parte Especial" Tomo XXI. Direito das Coisas. Penhor e Anticrese. Atualizado por Nelson Nery Jr e Luciano de Camargo Penteado. São Paulo: Ed. RT. 2012, p 205.
11 Decreto 911/1969 e lei 9.514/97 respectivamente.
12 CHALHUB, Melhim Namem. "Trust. Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia". Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 101.
13 CHALHUB, Melhim Namem. "Propriedade Fiduciária. Função Social e outros aspectos". Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 28.
14 CHALHUB, Melhim Namem. "Curso de Direito Civil. Direitos Reais". Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 233.
15 CHALHUB, Melhim Namem. "Negócio fiduciário". 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 138
16 A Alienação Fiduciária de Bens Imóveis é aplicável para garantia de quaisquer obrigações em geral, e pode ser prestada pelo devedor ou por terceiros (em conformidade à lei 9.514/97 e a lei 10.931/04, art. 51) e tem sido constantemente aplicada em financiamentos junto ao Sistema Financeiro Imobiliário – SFI e como garantia do pagamento do preço de aquisição de imóveis nas incorporações imobiliárias.
17 Vide REsp 2395557/SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 02.05.2000, DH 07.08.2000, p. 113; REsp 187.940/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 18.02.1999, DP 21.06.1999, p. 164; Resp 329968/DF, 4ª T., rel. Min. Salvio Figueiredo Teixeira, DJ 09.10.2001, DP 04.02.2002, p. 394; REsp 401.252/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 28.05.2002, DP 05.08.2002, p. 394; REsp 287774/DF, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 15.02.2001, DP 02.04.2001, p. 302.
18 Alienação fiduciária entre construtora e agente financeiro não tem eficácia contra comprador do imóvel. Acesso em 29 de julho de 2020.