Migalhas Norte-Americanas

Eleições presidenciais nos EUA II - Votação antecipada (early voting)

Eleições presidenciais nos EUA II - Votação antecipada (early voting).

30/10/2020

Se, no Brasil, temos um único dia para "depositar" nossos votos nas urnas (hoje, eletrônicas), nos EUA, a votação se dá ao longo de várias semanas que antecedem o dia oficial das eleições, através do envio das cédulas via correio ou seu depósito em urnas oficiais distribuídas pelos distritos eleitorais, segundo as regras em vigor em cada Estado da federação norte-americana.

Como vimos no artigo anterior, a Constituição dos EUA (1787), por sua forma sintética, não detalhou o sistema eleitoral, o que ficou a cargo dos Estados.  O art. II, Seção 1, da Carta norte-americana estabeleceu o chamado "Colégio Eleitoral" e outorgou aos Estados competência legislativa ampla para definir o modo de escolha dos membros do Colégio (electors), assim como competência material plena para administrar e organizar os processos eleitorais. 

Entretanto, é importante notar que o art. I, Sec. 4, da Constituição de Filadéflia reservou ao Poder Legislativo Federal (Congresso dos EUA) a competência para editar normas que se sobreponham às leis estaduais no que diz respeito às eleições federais.  Como exemplos, citem-se o National Voter Registration Act (1993), que veio a regular o registro de eleitores para as eleições federais, e o Help America Vote Act (2002), que visou à melhoria na infraestrutura dos sistemas de votação na esfera federal e outras questões adjacentes.

Observe-se aqui a evidência do modelo dual de federalismo norte-americano, ao contrário do nosso, de natureza híbrida, que também incorporou o federalismo cooperativo, inspirado no modelo alemão. Logo, não se veem competências comuns ou concorrentes no sistema norte-americano de repartição de competências. 

Entretanto, de modo geral, como assinalado, a competência para fixar regras e administrar as eleições repousa com os Estados. Como resultado, os quadros normativos respeitantes às eleições variam sensivelmente de Estado para Estado, como ocorre com as normas respeitantes ao voto antecipado, em datas diversas e anteriores ao dia fixado para as eleições.

Na verdade, esta questão remonta às origens da formação da República norte-americana. As dificuldades envolvendo o acesso aos locais de votação, e o tempo muitas vezes inclemente do país nos fins de ano, quando se dá o início do inverno no hemisfério norte, tornava necessário que o pleito eleitoral se desse ao longo de vários dias, e não em uma única data, a fim de viabilizar o voto para os cidadãos que não residiam nas cidades.

Em 1845, preocupado com possíveis fraudes envolvendo cidadãos que pudessem votar em mais de um Estado ao longo do prazo eleitoral ampliado, o Congresso editou lei estabelecendo que as eleições quadrienais para presidente e vice ocorreriam na terça-feira seguinte à primeira segunda-feira do mês de novembro1.

Mais tarde, durante a longa Guerra de Secessão, a possibilidade de se votar em data anterior ao dia das eleições foi restabelecida para os militares, que votavam "ausentes" (entre nós, melhor seria o termo "não-presencial"), e suas cédulas eram encaminhadas por malotes e correios.  Eis aí a origem histórica do voto antecipado (early voting) e à distância (absentee ballot) nos EUA. 

Perceba-se, desde já, que o voto à distância, isto é, não-presencial (mail-in absentee voting) é uma espécie de voto antecipado (early voting), já que é necessário que se dê em data anterior à contagem para que possa ser eficaz. Este sutil detalhe tem sido muito disputado e, no particular, pela campanha do presidente Trump, que se tem manifestado contrário ao voto não-presencial, embora ele próprio já tenha lançado mão deste tipo de votação. 

No início do século XX, e já que antes admitida amplamente durante a guerra, essas práticas vieram a ser paulatinamente adotadas pelos Estados, embora cada um com seu conjunto de regras próprio. 

Vários Estados nos EUA condicionaram a prerrogativa de voto não-presencial à apresentação de "justificativa" (excuse) para a impossibilidade de se votar presencialmente. De certo modo, parece ser um instituto mais inclinado à maior participação (e, portanto, com maior teor democrático) do que nossa mera "justificativa" (sem voto) junto aos TREs.

Mas, como afirmado, as regras variam muito entre os Estados. Com o tempo, muitos deles dispensaram a exigência de justificação para o voto não-presencial e envio de cédulas por correios só se daria mediante requerimento do interessado.  Outros fixaram regras determinando que as cédulas sejam automaticamente enviadas para os domicílios dos cidadãos daquele Estado, onde quer que se encontrem, desde que tenham seus endereços atualizados, e os mesmos poderiam devolver as cédulas preenchidas por correios ou, de acordo com sua preferência, comparecer aos locais próprios de votação no dia das eleições.  Há, ainda, um grande número de Estados que admite o depósito das cédulas em urnas oficiais (em vez das caixas de correios) distribuídas por repartições e escolas públicas.

Atualmente, a votação antecipada e não-presencial é uma realidade em todos os EUA.  De acordo com a Conferência Nacional das Assembleias Estaduais (National Conference of State Legislatures), atualmente, todos os Estados admitem a votação não-presencial de algum modo. Cerca de dois terços abandonaram a exigência de justificação para o early voting ou absentee voting. E a pandemia da Covid-19 fez com que um número elevado de Estados ampliasse as formas de votação à distância2.  Estima-se, na data de redação deste artigo, que cerca de 60 milhões de americanos já enviaram seus votos não-presenciais pelos correios e urnas coletoras distribuídas pelo país.

Paralelamente, a acidez cada vez maior das disputas eleitorais nos EUA tem causado expressiva judicialização das questões relativas ao voto não-presencial e antecipado, em temas os mais diversos, sobretudo neste ano3.  Em geral, os posicionamentos fixaram-se em dois polos argumentativos opostos: de um lado, a necessidade de ampliação da votação à distância em razão da pandemia, e, de outro, a preocupação com eventuais fraudes.

Seja como for, a pandemia da Covid-19 tem trazido inúmeros inéditos desafios para os legisladores e para as Cortes norte-americanas.  Diversas questões aguardam julgamento definitivo e a nomeação da ultra-conservadora juíza Amy Coney Barrett para a Suprema Corte dos EUA, na última segunda-feira, certamente trará inclinação mais favorável às pretensões do Partido Republicano nas questões trazidas, em última análise, à apreciação daquela Corte. Por certo, os EUA caminham para mais uma eleição presidencial a ser decidida nos Tribunais.

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1 Neste ano, no dia 3 de Novembro.  Vale observar que, em acordo com as competências materiais e legislativas locais, os estados, cidades e condados, buscando maior eficiência e redução de custos, comumente lançam mão da mesma data para a realização de eleições locais, além de plebiscitos e referendos. 

2 Disponível aqui. Acesso em: 26.out.2020.

3 Entre outras: Republican National Committee v. Democratic National Committee (Suprema Corte dos EUA); Paher. v. Cegavske (U.S. District Court of Nevada); Texas Democratic Party v. DeBeauvoir (201st Judicial District Court of Texas). Tully v. Okeson (U.S. District Court for the Southern District of Indiana).

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Colunista

Paulo M. Calazans, advogado especialista em Direito Público. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM/RJ. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Membro da Comissão de Direito Aeronáutico e Aeroespacial da OAB/RJ e da European Air Law Association. Ex-professor da PUC-Rio. Organizador e palestrante em diversos congressos e seminários nas áreas de Direitos Humanos, Direito Constitucional e Direito Aeronáutico. Coautor do livro "Temas de Constitucionalismo e Democracia"; coautor em diversas coletâneas e autor de inúmeros artigos em periódicos jurídicos. Sócio do escritório Vinhas e Redenschi no Rio de Janeiro.