Um dos mais curiosos fatos da democracia norte-americana é que não há eleições diretas para presidente. E nem sempre o candidato com maior número de votos populares consagra-se eleito, sendo possível que seja derrotado pelo adversário que logrou obter maior número de votos "indiretos" do "Colégio Eleitoral" (Electoral College).
Isso aconteceu diversas vezes na história dos EUA, como em 2000, quando o candidato Al Gore recebeu cerca de 500 mil votos a mais do que George W. Bush; e, mais recentemente, com a candidata Hilary Clinton, que venceu a escolha popular com cerca de 3 milhões de votos a mais do que Donald Trump, mas perdeu na contagem dos votos do Colégio Eleitoral.
Embora um tanto estranho e aparentemente complexo, o processo de eleições indiretas para presidente nos EUA encontra suas origens em razões históricas.
Quando a Constituição dos EUA foi promulgada pelos Founding Fathers em setembro de 1787, a belíssima cidade de Washington D.C. ainda não havia sido idealizada pelo célebre engenheiro Pierre L'Enfant. Inicialmente, restou definido que a capital provisória da recém-nascida República seria Filadélfia, mesmo local onde se deu o processo revolucionário e constituinte.
Naquela época, não somente pelas dificuldades derivadas do pós-guerra, como também pelas próprias limitações estruturais de então, o transporte era precário, a comunicação era lenta e irregular, e as diferenças sociopolíticas regionais eram evidentes. Isso trazia inúmeras preocupações com relação à lisura e correção das eleições, além daquelas relativas à legitimação dos agentes políticos do governo Federal pela escolha livre e democrática, através de efetiva participação popular.
Diferentes métodos foram considerados para a escolha do presidente durante os trabalhos constituintes; entre eles, a escolha indireta por membros do Congresso, a escolha pelas Assembleias estaduais, ou, ainda, a votação pela maioria dos governadores. Ao fim, esse complicado tema foi atribuído ao "Comitê dos Onze para Assuntos Postergados", cuja proposta veio a ser adotada com amplo apoio dos constituintes.
Tal proposta deu origem ao chamado "Colégio Eleitoral". O artigo II, Seção I, da Constituição Americana estabelece que cada Estado da Federação, na forma definida por suas próprias Assembleias Estaduais, irá indicar "eleitores" (electors), cujo número será correspondente ao seu número de deputados e senadores no Congresso.
A Constituição não estabelece qualquer requisito para o cargo de "eleitor", mas proíbe-o a qualquer ocupante de cargo público. Atualmente, o Colégio Eleitoral é formado 538 "eleitores", 100 correspondentes ao número total de senadores (2 por cada Estado) e 438 correspondentes ao número total de deputados na Câmara Federal (House of Representatives), conforme o gráfico abaixo:
Mais tarde, a 12ª Emenda à Constituição estabeleceu que os "eleitores" de cada Estado se reunirão em sua respectiva unidade da Federação para lançarem seus respectivos votos para presidente e vice-presidente. A lista com o número de votos dos "eleitores" de cada particular Estado, tanto para presidente quanto para vice, é, então, encaminhada ao presidente do Senado, que procede à leitura e contagem dos votos totais do Colégio Eleitoral.
Assim, a população comparece às urnas a cada 4 anos para a escolha do presidente, de onde se extrai a contagem total dos votos populares. E os membros do Colégio Eleitoral tradicionalmente votam naquele candidato que obteve a preferência popular nas urnas de seu respectivo Estado. Entretanto, isto não é uma exigência constitucional. E, em algumas ocasiões ao longo da história, os "eleitores" votaram de forma distinta do resultado obtidos nas urnas.
Muitos Estados, todavia, vieram a proscrever tal conduta por parte de seus "eleitores", atribuindo-lhes multas pecuniárias ou eventual anulação de seu voto. Essa questão foi tema central no recente julgamento do caso Chiafalo v. Washington, em julho deste ano, no qual a Suprema Corte Norte-Americana reconheceu que os Estados têm o poder legislativo para coibir os "votos rebeldes".
Entretanto, estes eventos, para além de raros, não têm o condão de alterar o resultado das eleições em razão de outra peculiaridade do processo eleitoral norte-americano: em 48 das 50 Unidades da Federação1, o candidato que obtém a maioria dos votos populares em determinado Estado "leva" a totalidade dos votos eleitorais daquele Estado. Assim, p.e., se o candidato Joe Biden ganhar apenas 51% dos votos dos cidadãos-residentes na Flórida, levará 100% dos 29 votos do Colégio Eleitoral atribuídos àquele Estado. Este sistema é conhecido como "winner takes all".
Há, hoje, forte movimento por parte da sociedade norte-americana em favor da abolição do Colégio Eleitoral. Algo semelhante ao nosso movimento "Diretas-Já", da década de 80. Entretanto, dada a natureza rígida da Constituição de Filadélfia no que diz respeito à possibilidade de reforma, isto parece ser pouco provável em futuro próximo.
Seja como for, adequado ou não, nobre foi a intenção dos "founding fathers", ao registrarem durante as discussões em sua Constituinte:
"…[T]he members of the General Convention...did indulge the hope [that] by apportioning, limiting, and confining the Electors within their respective States, and by the guarded manner of giving and transmitting the ballots of the Electors to the Seat of Government, that intrigue, combination, and corruption, would be effectually shut out, and a free and pure election of the president of the United States made perpetual"2.
A data da eleição presidencial é fixada em lei de 1845, e ocorrerá no dia 3 de novembro próximo, correspondente à terça-feira seguinte à primeira segunda-feira do mês de novembro. Entretanto, o chamado "early-voting" (votação antecipada) por correio e por urnas espalhadas pelos inúmeros distritos eleitorais, e que é objeto de fervorosa crítica por parte dos republicanos, já foi iniciado, estimando-se que, por esses dias, cerca de 20 milhões de votos já foram depositados. Deste tema trataremos na próxima edição.
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1 À exceção de Maine e Nebraska.
2 Trad. Livre: "Os membros da Convenção Geral… alimentaram a esperança de que distribuindo, limitando e restringindo os Eleitores dentro de seus respectivos Estados, e pela maneira protegida de fornecer e transmitir as cédulas dos Eleitores à sede do Governo, que a intriga, conluio ou corrupção seriam efetivamente eliminados, e uma eleição pura e livre tornar-se-ia perpétua". Library of Congress. A Century of Lawmaking for a New Nation: U.S. Congressional Documents and Debates, 1774-1875. Vol. 3, p.461. Disponível aqui. Acesso em: 17/10/2020.