O falecimento da ministra Ruth Bader Ginsburg deu início a uma das mais acirradas disputas de natureza política nos EUA: a nomeação de um novo "Justice", como são chamados os ministros da Suprema Corte dos EUA.
De certo modo, é triste que a existência esplendorosa da ministra RBG (como era carinhosamente conhecida) e toda sua fúlgida carreira jurídica estejam sendo parcialmente ofuscadas por esse lado menos nobre da política. Mas, às vésperas de uma das mais virulentas eleições presidenciais da história dos EUA, isto não poderia ser diferente.
Como no Brasil, a Suprema Corte dos EUA situa-se no ápice do Poder Judiciário Federal. Contudo, ao contrário de nós, os Estados também possuem, cada um, suas Supremas Cortes1. Daí o acrônimo, frequentemente utilizado, S.C.O.T.U.S. (Supreme Court of the United States)2, para diferenciá-la das Supremas Cortes estaduais.
O artigo III da Constituição norte-americana institui o Poder Judiciário como um dos Poderes da União Federal. E sua seção I estabelece que o Judiciário Federal é composto pela Suprema Corte e por cortes inferiores a serem definidas por lei. Os Ministros da Suprema Corte são nomeados pelo presidente e sua nomeação é sujeita ao "consentimento" do Senado Federal, o que ocorre em audiência senatorial (sabatina).
Os Justices da Suprema Corte têm cargo vitalício, não se submetendo a qualquer limite de idade. Tal tese constitucional foi patrocinada por Alexander Hamilton, um dos founding fathers3, expressando preocupação com possíveis pressões dos demais Poderes na atuação judicial dos magistrados. E o tema, longe de ser pacífico, é objeto de debate acadêmico e político desde então.
Seja como for, e por todos os benefícios que possa oferecer, a regra da vitaliciedade traz a consequência da formatação ideológica da Suprema Corte por décadas à frente da nomeação, ultrapassando os mandatos dos congressistas e presidentes, que são representantes eleitos.
Assim, a relevância política da Suprema Corte, somada à peculiar característica da vitaliciedade de seus ministros, torna o processo de nomeação e aprovação de seus ministros uma das questões políticas mais sensíveis e disputadas nos EUA, sobretudo se a oposição política ao chefe do Executivo detém a maioria no Senado. Historicamente, cerca de 20 porcento das indicações presidenciais foram rejeitadas pelo Senado.
Um bom exemplo do elevado grau de litigiosidade desta questão foi a nomeação do juiz Merrick Garland, pelo presidente Barack Obama, ao fim de seu segundo mandato, em 2016, para assumir a vaga anteriormente ocupada pelo ministro Antonin Scalia, um dos mais conservadores juízes da Corte, e que havia falecido em fevereiro daquele ano. Merrick Garland era o presidente do Tribunal Federal de Apelações do Circuito do Capital (U.S. Court of Appeals for the District of Columbia Circuit) e já há muito vinha sendo cotado para ocupar eventual vaga no Supremo.
Entretanto, embora fosse considerado um magistrado de posições moderadas e louvado até mesmo por vários senadores republicanos mais conservadores, sua nomeação sequer chegou a ser apreciada pelo Senado, pois o líder da maioria na Casa, senador Mitch McConnell já havia anunciado, desde a morte de Scalia em fevereiro daquele ano, que qualquer indicação para ocupar o cargo vago no último ano do mandato presidencial deveria ser tida por nula, pois o Senado deveria "dar voz ao povo no processo de preenchimento da vaga"4, o que restaria consignado pela eleição do novo presidente. Isto foi em fevereiro do último ano do mandato presidencial do presidente Obama.
Outro ícone conservador no Senado, e um dos principais aliados do atual presidente Trump, Sen. Lindsay Graham, alinhando-se a esta tese, afirmou na ocasião:
"Podem usar minhas palavras contra mim” (2016)... “Se uma vaga abrir no último ano do mandato do Presidente Trump, e as primárias já houverem se iniciado, esperaremos até a próximaeleição (2018)"5.
Em que pese a tremenda contradição, ambos senadores, juntamente com toda a ala republicana do Senado (maioria), à exceção de duas senadoras, posicionaram-se favoravelmente a conduzir a audiência de aprovação após qualquer indicação que venha a ser feita por Trump, ainda que há apenas poucas semanas das eleições presidenciais e, logo, de forma manifestamente contrária à tese que antes haviam esposado.
O constitucionalismo norte-americano assentou, em bases sólidas, uma das noções mais fundamentais do sistema democrático constitucional: a de que a constituição institui o poder máximo dentro de um Estado soberano; mas é também a constituição que o limita. O texto federalista n.51, de autoria de James Madison, outro expoente na Convenção de Filadélfia, sintetizou esta preocupação na famosa passagem:
"(...) Mas o que é o governo em si próprio senão a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos, nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários controles externos nem internos sobre o governo. Ao construir um governo que será administrado por homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, em seguida, obrigar o governo a controlar-se a si próprio".
A separação de poderes exsurge como um dos principais elementos de profilaxia constitucional para a eterna propensão patológica dos sistemas políticos à concentração e ao abuso de poder. Ao mesmo tempo, diversos elementos da engenharia constitucional moderna oferecem sistemas de pesos e contrapesos (checks and balances) a fim de limitar o exercício do poder por cada um dos Poderes do Estado, dois deles de particular interesse aqui: de um lado, a escolha de juízes para o órgão máximo do Poder Judiciário realizada com a participação do Executivo e do Legislativo; de outro, o inevitável ingresso em relevantíssimos assuntos que envolvem política pública pelo Poder Judiciário, sempre que instado a se manifestar sobre atos legislativos e executivos em face dos mandamentos constitucionais.
Isto torna a Suprema Corte um ente não somente jurídico propriamente dito, mas inexoravelmente político também. E, pelo mesmo motivo, assim como pela repercussão de seus julgamentos, a composição da Corte é assunto da maior relevância na ciranda política.
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1 Todavia, a nomenclatura dada às Cortes de última instância dos estados varia: Supreme Court, Supreme Court of Appeals, Supreme Judicial Court, Court of Appeals etc.. Texas e Oklahoma possuem duas supremas cortes, uma para a jurisdição cível, outra para a criminal.
2 De forma similar, desde a época dos telégrafos, utiliza-se o acrônimo POTUS para designar o Presidente dos Estados Unidos (President of the United States).
3 A Convenção Constitucional em Filadélfia contou com representantes de 12 dos 13 estados (Rhode Island não enviou delegados), reunindo os mais expressivos e renomados políticos norte-americanos da época, entre eles: George Washington, James Madison, Alexander Hamilton, Benjamin Franklin, George Mason, Roger Sherman, Robert Morris e outros. Thomas Jefferson e John Adams não participaram, pois estavam ocupando as embaixadas da França e da Inglaterra respectivamente. Os founding fathers, como ficaram conhecidos, eram estadistas natos, além de eruditos em matéria de história e filosofia; a maioria bem versada nos tratados de filosofia política, especialmente Montesquieu, Rousseau e Locke.
4 Disponível aqui. Acesso em 22 set 2020.
5 Disponível aqui. Acesso em: 23 set 2020. O vídeo com tal declaração também está disponível neste mesmo sítio.