Migalhas Marítimas

90 anos do Tribunal Marítimo: O que falta dizer?

Celebrando 90 anos, o Tribunal Marítimo se destaca por sua tradição, respeito à advocacia e compromisso com a Justiça e segurança na navegação.

9/1/2025

Este texto é parte integrante do livro “Tribunal Marítimo: 90 Anos”, lançado em dezembro de 2024, em comemoração ao aniversário da Corte do Mar.

É um momento de festa e de alegria. Pelo menos é como vejo todo aniversário, pela singela razão de que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E quando se trata do aniversário de uma “pessoa” abstrata, uma instituição ou empresa? Que “vida” há a celebrar nessa data?

Foi com essa reflexão quase existencial que me deparei quando recebi o honroso convite para participar, por meio de um texto para este livro comemorativo, da celebração dos 90 anos do Tribunal Marítimo.

De início, pensei no caminho, aparentemente fácil, de falar sobre o art. 18 da lei 2.180/54 e a repercussão das decisões do Tribunal Marítimo no Poder Judiciário, uma discussão inesgotável. Mas acabei escolhendo um caminho mais difícil.

O leitor vai encontrar neste livro, além desse tema, certamente, a história do incidente com o navio alemão “Baden” em 1930, bem como artigos jurídicos e históricos sobre o Tribunal Marítimo. É bom que assim seja, para que se possa sempre renovar a divulgação da Corte do Mar para as novas gerações, pois, com todos os esforços, ainda é pouco conhecida pelos brasileiros e, de certo modo, até mesmo pelos profissionais do Direito. Achei prudente não fazer o mesmo, pois iria apenas repetir aquilo que outros articulistas tão bem fizeram em seus textos deste livro, ao tratar da história, da natureza jurídica ou do funcionamento do Tribunal Marítimo ou, ainda, dos efeitos de suas decisões. Resolvi, por isso, trazer uma breve reflexão, um depoimento em primeira pessoa, com a visão de um advogado sobre o Tribunal. 

Linhas acima, eu dizia que celebrar um aniversário é celebrar a vida. E do que é feita a vida senão de emoções, afetos e rumos cruzados com outras vidas? Por isso, pedirei licença para, antes de falar sobre a advocacia no Tribunal Marítimo, dividir com o leitor um pouco de minha história pessoal e como ela se encontrou com a Corte do Mar.

Aos 15 anos, ingressei no Colégio Naval, onde criei laços eternos com o mar e a navegação. Concluído o curso, embora tivesse a opção de seguir para a Escola Naval, acabei atendendo ao chamado da vocação para o Direito. E, acredite o leitor, concluí os cinco anos de curso, numa das melhores faculdades do país, sem jamais ter ouvido sequer uma menção ao Tribunal Marítimo. Mas nem por isso deixei de me encantar com a fachada daquele prédio centenário (naquela época, ainda escondido pelo enorme viaduto da Perimetral) e de buscar aprender mais sobre o Tribunal nas poucas fontes então disponíveis.

Embora pareça natural que o mar e o Direito acabariam se cruzando em minha vida, não foi assim tão simples. Com a vida acadêmica se inclinando para o Direito Constitucional e a advocacia para o contencioso cível, somente depois de algum tempo redescobri o Tribunal Marítimo e a ele direcionei meus estudos acadêmicos e a advocacia.  Se o leitor tem mais de 40 anos, provavelmente já sabe que as paixões da maturidade podem ser, e frequentemente são, melhores que as da juventude, justamente em razão da experiência que se tem da navegação em outros mares. O Direito Constitucional e a experiência na advocacia contenciosa acabaram sendo decisivos para um olhar diferente, mais maduro e mais completo, para a Corte Marítima. 

No âmbito acadêmico, em 2017, lancei um despretensioso estudo chamado Tribunal Marítimo: natureza e funções (Editora Lumen Juris), que, para minha surpresa, foi acolhido com entusiasmo pela comunidade marítima e calhou ser a primeira obra específica no Direito brasileiro sobre o Tribunal. Como sou grato aos ventos que me guiaram até aqui, permitindo que esse reencontro tardio com o Tribunal Marítimo fosse muito além dos meus melhores sonhos da juventude…

Mas foi na advocacia que percebi o quanto o Tribunal Marítimo é único e especial. Sendo um apaixonado pela profissão, tive a sorte de ocupar a tribuna de 21 dos 27 Tribunais Estaduais e do Distrito Federal e de quatro dos cinco Tribunais Regionais Federais, além do STJ e do STF. Posso dizer com tranquilidade que, em nenhum desses, o advogado é tão respeitado e tão prestigiado quanto no Tribunal Marítimo.

Nos IAFN - Inquéritos sobre Acidentes e Fatos da Navegação, nas Capitanias dos Portos e em suas delegacias e agências, encontramos militares imbuídos de sua missão que conduzem os atos de investigação com toda a seriedade, mas também com toda a gentileza no trato com testemunhas e advogados. Mesmo quando situadas em locais de difícil acesso, o contato com essas unidades, seja por telefone, seja por e-mail, é fácil e sempre se consegue a informação desejada.

Na sede do Tribunal, uma sala de audiências confortável e muito bem equipada mostra o investimento que prestigia a atuação dos advogados. Na secretaria, de onde jamais se sai sem a informação ou a cópia necessária de um processo, nunca se veem filas para atendimento.  A implantação do processo eletrônico deu um passo importante para um tribunal de jurisdição nacional, ao permitir que colegas de outros Estados tenham acesso imediato aos autos. Na biblioteca especializada, muito bem organizada, nota-se a preocupação em manter o acervo sempre atualizado, mesmo com a amplitude de temas que envolvem o processo marítimo. 

Ao acessar o plenário, a percepção estética de estar adentrando num belíssimo prédio histórico, com conservação impecável, sempre me faz lembrar – mesmo depois de subir centenas de vezes aquelas escadas – que um sonho distante da juventude está se realizando.

Mas é no aspecto humano que a advocacia no Tribunal Marítimo se mostra uma experiência profissional plena. Os juízes, sem nenhuma vaidade ou afetação, recebem diretamente os advogados e ouvem (note-se bem: “Ouvem” de verdade, prestando atenção, tomando notas e fazendo perguntas) seus argumentos. Os assessores estão ali para colaborar e somar conhecimento, não para funcionar como uma “barreira de contenção” entre o advogado e o magistrado, tampouco para substituí-los na elaboração das decisões. Quem já gastou muita sola de sapato nos corredores do Poder Judiciário sabe bem do que se está falando aqui.

Nos julgamentos em plenário, a realização profissional é ainda maior. A sessão é plenamente acessível: Quando ocorre presencialmente, é facultado aos advogados que não estão no Rio de Janeiro que façam a sustentação oral por vídeo, em tempo real. E a imagem do advogado não é, como em alguns tribunais do Judiciário, um simples “quadradinho” num aplicativo de videoconferência, na tela de um computador portátil para o qual os julgadores mal olham. Ao contrário, são duas telas grandes, que permitem a visualização de todo o plenário e que dão a sensação de que o advogado está presente no mesmo recinto. Para os que comparecem presencialmente, têm sua presença registrada em ata – mesmo que não realizem sustentação oral – e são chamados gentilmente pelo nome, antes e durante sua presença na tribuna. Nos intervalos e no final da sessão, os juízes têm o hábito de cumprimentar cada advogado presente e, frequentemente, lembram a importância de sua atuação para a formação da convicção dos julgadores.

Não posso deixar de fazer referência à atuação dos procuradores da PEM -  Procuradoria Especial da Marinha, igualmente gentis e sempre respeitosos no trato com os advogados. Embora integrem o órgão acusatório, com funções análogas às do MP, não se veem nem se portam como “superiores” aos advogados.

A sustentação oral é feita sem pressa e sem pressão. Até 2022, o tempo era de 30 minutos, mas, depois da alteração no Regimento Interno, passou a ser de 15 minutos, em harmonia com a previsão do CPC. Mas isso não foi um problema, ao menos na única ocasião em que esse tempo era insuficiente num caso em que eu atuava: As partes combinaram, na hora, pela extensão em igual medida, e o plenário, acompanhando a proposta do relator, deferiu 30 minutos de sustentação para cada polo processual (acusação e defesa).

Outras questões de ordem, como inversões de pauta, adiamentos ou a ordem em que cada advogado vai falar (quando são vários réus), são facilmente resolvidas na mesma hora, por meio do diálogo direto e respeitoso entre advogados e juízes. O advogado tem, ainda, a faculdade de utilizar recursos audiovisuais, como exibir um vídeo ou uma apresentação de slide.

O mais importante, porém, é o aspecto humano, ou seja, a atitude dos juízes durante o julgamento. Nunca se viu um deles, durante uma sustentação oral, falando ao celular, dormindo ou lendo mensagens de aplicativos (incluindo vídeos sem fone de ouvido), só para ficar em alguns dos exemplos mais comuns que os advogados presenciam em outros tribunais. Não é incomum que, ainda durante a sustentação, um juiz dirija a palavra ao advogado para solicitar esclarecimento sobre algum ponto.  Depois, durante a votação, esse diálogo é ainda mais comum, principalmente quando um juiz, que não é o relator, pretende obter mais esclarecimentos sobre determinado fato ou mesmo entender melhor algum dos argumentos levantados pelo advogado.

Um ponto relevante é que o Tribunal Marítimo leva muito a sério o princípio da colegialidade. Para que o leitor entenda mais claramente: A colegialidade pressupõe que, do debate entre diferentes julgadores, às vezes com pontos de vista diferentes, emergirá a melhor decisão, pois essa multiplicidade ajuda a eliminar vieses e diminui a possibilidade de que algum ponto passe despercebido ou seja desconsiderado. Hoje, em boa parte do Poder Judiciário, a essência desse princípio está prejudicada por duas patologias em sua aplicação prática: i) situações em que só o relator conhece o processo (e os demais não têm tempo ou interesse em conhecer) e, por isso, não há divergências, de modo que o julgamento colegiado acaba sendo, na prática, monocrático, com a decisão do relator prevalecendo sempre ou ii) o debate prévio, ou mesmo o envio de votos completos aos demais magistrados, antes da sessão de julgamento, de modo que, ao se iniciar o julgamento, tudo já está decidido. É possível mesmo dizer que são patologias simétricas: Numa, se perde a essência da colegialidade por falta de conhecimento do processo e, na outra, por excesso. Mas o efeito, de todo modo, é o mesmo.

No Tribunal Marítimo, nenhuma dessas situações ocorre. Os juízes conhecem todos os processos, mesmo quando não são os relatores ou revisores. Em casos mais difíceis ou quando os advogados levam seus memoriais previamente, costumam fazer até um estudo mais profundo do processo para chegar à sessão devidamente preparados e – este é um ponto importante – sem nenhuma discussão prévia com o relator, de modo que eventuais diferenças de visão ou opinião ficam para ser expostas e debatidas ao vivo no plenário, durante o julgamento. E, em último caso, sempre é possível o pedido de vista, outro instituto com função específica e que, infelizmente, volta e meia vem sendo desvirtuado no Judiciário para outras finalidades que dizem respeito à manipulação do tempo de julgamento.

Por fim, o ponto mais importante: Toda essa dialética seria inútil se os juízes não tivessem a disposição de mudar de opinião diante de argumentos apresentados pelos advogados ou por seus pares. Se um julgador chega para uma sessão sem essa disposição, realmente vai achar tudo enfadonho, e talvez aí esteja a razão para alguns (no Judiciário) preferirem olhar para o celular em vez de prestar atenção aos colegas ou aos advogados.

No Tribunal Marítimo, como dito no início, não há vaidades ou afetações entre os juízes, o que permite que, do debate amplo e franco, emerjam decisões que consideram diferentes aspectos e enfoques das questões como resultado do debate, no qual, com frequência, a opinião dos juízes muda, fundamentadamente, durante o julgamento.

Para o advogado, tudo que foi aqui relatado traz um ônus e um bônus. O ônus está na obrigação de se estar sempre bem preparado, conhecer a fundo o caso em julgamento e ser leal e franco na exposição dos fatos. Na verdade, é tudo aquilo que se espera do bom profissional. O bônus, infinitamente superior, está na satisfação do exercício pleno da profissão, no prazer de debater em alto nível e de saber que, ao final, a decisão, ainda que contrária aos interesses do cliente, será a mais justa possível, diante das informações disponíveis e dos limites da falibilidade humana.

Em suma, embora não tenha recebido procuração de meus colegas, ouso falar em nome da advocacia para dizer: É no Tribunal Marítimo que se encontram as melhores condições para um pleno e recompensador exercício de nossa profissão.

Disse, no início, que celebrar aniversários é celebrar a vida. O Tribunal Marítimo, como um prédio ou mesmo uma instituição estatal abstrata, não teria o que celebrar sob esse aspecto. Mas a essência do Tribunal não está em sua sede nem em sua existência legal. Está nas pessoas, que fazem com que ele exista de fato na vida de todos os jurisdicionados, está nas relações humanas, que conduzem os processos em direção ao norte que realmente importa: Justiça e segurança da navegação. Sob esse aspecto, há, sim, muito o que celebrar. 

Feliz aniversário, Tribunal Marítimo, parabéns pelos 90 anos de singradura!

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.