Migalhas Marítimas

A unidade do Direito Marítimo

O texto explora a autonomia e particularidades do Direito Marítimo, destacando sua evolução histórica, relevância prática e caráter misto entre normas públicas e privadas.

19/12/2024

O ano de 2024 que em breve se encerra trouxe muitos desafios para todos, alguns inesperados, mas também nos proporcionou muito aprendizado e crescimento, tanto pessoal quanto profissional. Diante disso, como forma de homenagear todo o esforço e superação que marcaram mais um ano dessa trajetória, trazemos de volta esse ensaio sobre o Direito Marítimo e as suas raízes, deixando de lado momentaneamente os temas que pontuam nossas lides cotidianas, um convite para um breve retorno às origens para beber da fonte desse ramo do Direito que nos apaixona e que escolhemos defender.

Mostra a história que o Direito Marítimo se formou autônomo.

Houve, durante algum tempo, uma certa inclinação de estabelecer uma ligação entre o comércio marítimo e o terrestre. D'Ovidio e Pescatore1 pregaram o enquadramento do Direito Marítimo no sistema comum. Wahl defendeu que ele não constitui uma ciência separada e que é, antes, uma fração do comercial.

Bonnecase2 e Prinzivalli3 combateram o particularismo do Direito Marítimo e se opuseram à tese da sua autonomia, dizendo que, como o direito terrestre, o Direito Comercial Marítimo se identifica com o civil, quanto à sua natureza específica. Mas, mesmo sustentando que não subsiste a pretendida fusão das normas de Direito Público com as de Direito Privado, e que a conseqüência lógica e rigorosa da tese do particularismo em face da natureza específica do Direito Marítimo o colocaria independente ou acima do Direito Público e do Privado, reconheceram que as fontes do Direito Marítimo apresentaram e apresentam, ainda, características especiais, como as normas convencionais típicas sobre os contratos, os conhecimentos e demais documentos marítimos, o predomínio das coisas e costumes sobre a lei escrita, etc., e que cabe dedicar uma atividade de estudo das normas relativas às relações jurídicas marítimas distinta da do Direito Comercial.

D'Ovidio e Pescatore4, uma vez considerando o conceito de autonomia distinto do de particularismo, admitiram ser, o Direito Marítimo, um direito especial, com autonomia científica e legislativa.

Na verdade, os qualificativos “particularismo” e “autonomia”, aplicados ao direito da navegação pelos doutrinadores, nada mais significam do que duas posições com referência a um mesmo problema. A doutrina francesa, desde a aparição da obra de Pardessus5, afirma o particularismo do Direito Marítimo com uma fisionomia típica, distinta da do direito terrestre.

Pardessus6 estudou o problema desde o ponto de vista histórico e sob o prisma naturalista, considerando o Direito Marítimo original, como algo imutável e uniforme a todos os países.

Na doutrina moderna, a autonomia do Direito Marítimo foi magistralmente posta em relevo por Ripert, tendo sustentado que ele possui caráter original e se manifesta com uniformidade, tradicionalismo, que o exclui da clássica divisão de direito público e privado. Afirmou também que, como conseqüência destas características típicas, é um direito independente, e julgou errôneo considerá-lo como uma aplicação do direito terrestre às coisas e gente do mar.

É de se destacar nesta época, também, a importância da Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, que foi liderada por Scialoja7, o qual assinalou razões técnicas e práticas para considerar a autonomia do Direito Marítimo. Ele não só manifestou que o Direito Marítimo já surgiu como um direito autônomo, mas que temos assistido, na atualidade, um florescimento de direitos autônomos.

A distinção entre a esfera pública e a privada, confusa e sem nitidez, observou Ferraz Júnior8, faz da separação entre Direito Público e Privado uma tarefa difícil de se realizar. E, não obstante entender que a dicotomia entre Direito Público e Privado ainda persevera - pelo menos por sua operacionalidade pragmática -, reconheceu o surgimento de campos jurídicos intermediários, nem públicos nem privados, como o Direito do Trabalho, de modo que os tradicionais conceitos dogmáticos sentem dificuldade de se impor.

Não existe um critério de rigor lógico e satisfatório capaz de designar claramente a distinção, pretendida pela dogmática jurídica, entre Direito Público e Direito Privado, notou Rizzatto Nunes9, e, qualquer critério que se busque para a divisão não consegue apresentar de forma definitiva uma eventual linha divisória que existiria entre os dois ramos disputados. A pretensa divisão é claramente didática, feita com base nas várias possíveis e existentes. Consignou, porém, que ela, como as demais, padecerá de seu artificialismo e que a linha divisória proposta jamais será muito nítida.

Para classificar, dentro do Direito Público e Privado, os diferentes ramos dogmáticos, é preciso identificar as situações dos próprios sujeitos, se são, por exemplo, entes públicos ou privados, e a qualidade destes quando estão na relação jurídica; e o conteúdo normativo e o interesse jurídico a ele relacionado.

A dogmática vale-se, para esta tarefa, de dois topoi, ou lugares comuns consagrados pela tradição: natureza jurídica e natureza das coisas. Via de regra, a natureza jurídica de uma situação é dada pelas normas que a disciplinam. Mas isso, nem sempre é fácil. É preciso, então, reconhecer se o objeto normado tem uma natureza que lhe seja peculiar: é a natureza das coisas. A busca desta natureza intrínseca das coisas é que é responsável pela permanente presença do chamado direito natural, aquele sujeito que não é posto, mas que emerge da própria essência das coisas. Dogmaticamente, o princípio da inegabilidade dos pontos de partida é posto fora de dúvida, e a natureza das coisas é aceita como um lugar comum, preenchido pelos usos consagrados pela tradição.

Numa divisão inicial, o Direito Público é aquele que reúne as normas jurídicas que têm por matéria o Estado, suas funções e organização, a ordem e segurança internas, com a tutela do interesse público, tendo em vista a paz social, e, no âmbito internacional, cuida das relações entre os Estados. O Direito Privado, por sua vez, reúne as normas jurídicas que têm por matéria os particulares e as relações entre eles estabelecidas, cujos interesses são privados, tendo por fim a perspectiva individual.

Se é certo que no atual estágio do desenvolvimento do direito positivo, cada vez mais o Estado se imiscui na órbita privada, não só para garantir os direitos ali estabelecidos, mas para impor normas de conduta, anular pactos e contratos, rever cláusulas contratuais etc., resulta, daí, aventou Rizzatto Nunes10, uma nova concepção social do Direito. O autor refere, como exemplo de tal movimento, o Direito do Trabalho, e que tem seu ápice, modernamente, no Direito do Consumidor. Pelo seu caráter peculiar e sua formação histórica, nós podemos dizer que o Direito Marítimo é exemplo clássico dessa concepção.

Sob este prisma, o ilustre mestre concluiu que alguns ramos do direito positivo são caracterizados basicamente por serem híbridos ou mistos (Direito Misto), ao contrário das outras duas espécies que se distinguem, basicamente, por estarem relacionadas ao interesse público ou privado. Como ramos do Direito Misto considerou o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário, o Direito Econômico, o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental, em cujo rol nós incluímos o Direito Marítimo.

O Direito Marítimo tem o seu domínio próprio, possuindo um caráter de imutabilidade e uniformidade desde a origem e entre os diversos povos, que nunca se preocuparam de saber onde classificar essas normas. É certo que sofreu, e ainda sofre, intervenção do Estado, que lhe impõe normas de natureza pública, como, por exemplo, para garantir a segurança da navegação, e que se postam ao lado das normas individuais criadas pelos contratos, através das quais as partes contratantes são juridicamente vinculadas a uma conduta recíproca (negócio jurídico). Mas, sejam de que natureza forem, digam respeito a entidades particulares ou ao Estado, ou àquelas e a este, simultaneamente, desde que tratem da exploração de navios, da navegação e do comércio por mar e das pessoas que a isso se dedicam ou nisso cooperam, pertencem ao Direito Marítimo, que não está situado nem no Direito Público nem no Privado. Também não é ramo do Direito Comercial, posto que este é parte exclusiva do Direito Privado. O Direito Marítimo, peculiar que é, tem um lugar especial no campo da ciência do direito.

Recentemente, Haroldo dos Anjos e Caminha Gomes11 levaram em consideração a natureza das regras jurídicas e consideraram “Direito da Navegação” e “Direito Marítimo”, como ramos do direito, distintos e independentes. No “Direito da Navegação”, escreveram, prevalece a generalidade das normas de ordem pública, regulamentando o tráfego e a segurança da navegação, como por exemplo as normas de sinalização náutica e os regulamentos internos e internacionais para o tráfego da navegação, nos portos, vias navegáveis e no alto mar, enquanto que o “Direito Marítimo” é mais abrangente, contemplando normas de natureza pública e de natureza privada, como as que regem o comércio marítimo em geral, constituindo, assim, um direito misto.

Em abono da tese, citaram o pensamento jurídico da Scuola del Diritto della Navigazione e, como exemplo da consagração da independência e autonomia do “Direito da Navegação”, o Codice della Navigazione italiano atual. Sampaio Lacerda também foi citado como tendo preconizado a elaboração de um Código de Navegação, separado do Direito Comercial Marítimo.

Sem embargo, faz-se necessário, aqui, um importante reparo, pois, nem a escola napolitana defendeu um “Direito da Navegação”, distinto e independente do Direito Marítimo, e nem o código italiano exclui as relações de comércio marítimo. Sampaio Lacerda, por sua vez, nada mais fez do que abraçar sugestão daquela importante escola italiana, no sentido de que o estudo da navegação reunisse, numa só disciplina, o Direito Marítimo e o Direito Aeronáutico.

A Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione declarou-se pela autonomia do Direito Marítimo, mas sem a pretendida divisão. Scialoja, expoente máximo dessa escola, defendeu o caráter peculiar do Direito Marítimo como elemento determinante da sua autonomia: a existência de institutos típicos, além de ser a natureza das coisas, isto é, o fato técnico, o elemento experimental, a determinante de sua especialidade, constituindo o vínculo interno que une em um complexo orgânico todos os institutos especiais e todos os desvios das normas do direito comum. E o fato técnico de navegação, em sua expressão mais sintética, é o transporte autárquico. As situações particulares e as exigências especiais do tráfico marítimo derivam todas deste elemento fundamental de fato. O risco da navegação, que congrega em uma formidável solidariedade de interesses todos aqueles que confiam aos navios seus bens ou sua vida: o afastamento do navio e a autoridade e perícia de um só (o capitão) perante todo evento dão ao Direito Marítimo característicos precisos. Além disso, exclamou o mestre, no Direito Marítimo há uma fusão entre os elementos privados e públicos, tão íntima que difícil se torna a separação deles.

A autonomia do Direito Aeronáutico não foi reconhecida pela escola napolitana, entendendo que o fator técnico da navegação é igual nos dois ramos do direito – o marítimo e o aéreo – além de que as normas de Direito Aeronáutico derivam dos velhos institutos do Direito Marítimo, que a ele se aplicaram com meras adaptações. A afinidade entre as duas disciplinas cresce dia a dia. Assim, o comandante de uma aeronave já sente atualmente os primeiros sintomas do papel que desempenha o capitão de um navio, ao ter de exercer não mais somente uma função puramente técnica, preocupado unicamente com a direção e a rota da aeronave, mas também inúmeras outras funções, quais sejam a de ser o chefe de toda aquela sociedade mista de tripulantes, passageiros, etc., e ainda a de ter de representar, muita vez, o explorador da aeronave e, principalmente, a do encargo oficial público, podendo efetuar todos os atos que são atribuídos, em certas ocasiões de emergência, ao capitão do navio.

Por tais razões, a Scuola Napolitana del Diritto della Navigazione, sob a regência de Scialoja, Dominedo, Spasiano, D'Ovidio e tantos outros, ergueu a bandeira para que fossem as duas matérias congregadas num único direito, ou seja, o da navegação, ao que João Cabral sugeriu o nome de direito navegacional.

Sampaio de Lacerda12 filiou-se à doutrina da escola napolitana, por reconhecer que a identidade entre as duas disciplinas é fato que não pode mais ser desmentido, e sugeriu que “se modifique a nossa legislação sobre Direito Marítimo e Aeronáutico para, compendiando suas normas já adaptadas à modernização e aperfeiçoamento da navegação marítima e aérea, num único código, seja esse justamente intitulado – CÓDIGO DA NAVEGAÇÃO”, e isto somente para alcançar tanto a navegação marítima como a aérea. Nenhuma a conotação desse código sugerido, como se vê, com o “Direito da Navegação”, apregoado como ramo do direito, distinto e independente do Direito Marítimo.

O Codice della Navigazione italiano atual, por sua vez, seguiu o pensamento jurídico da escola napolitana e, ao contrário do que foi informado, cuidou do Direito Marítimo em toda a sua amplitude, tratando dos assuntos da navegação e regulando tanto o tráfego marítimo quanto os atos do comércio marítimo, tais como os contratos de locação e de fretamento e transporte, de pessoas e coisas, incluindo os seguros marítimos, e dedicando, na última parte, capítulo especial sobre o Direito Aeronáutico.

Modernamente, a doutrina considera o Direito Marítimo em sentido genérico, onde os elementos técnicos e comerciais estão entrelaçados de tal maneira que é impossível separá-los, para constituí-los em ramos do direito, distintos e autônomos.

Waldemar Ferreira13 comentou, com o saber jurídico que o notabilizou, que não é dissimulável a tendência, que se poderia haver como autárquica, em prol da autonomia de cada capítulo do Direito Privado, como até do Direito Público, a par e passo de sua evolução doutrinária, legislativa e mesmo jurisprudencial, por ação de cissiparidade.

“Disputa-se, no âmbito mercantil, a autonomia do Direito Marítimo, do Direito Aeronáutico, do Direito Industrial, do Direito das Empresas, do Direito de Seguros, do Direito Bancário, do Direito dos Transportes, etc., com argumentos vivacíssimos, do mais variado colorido científico. Reclama-o o tecnicismo moderno. Exige-o a cultura especializada, de gabinete ou de seminário, como se o Direito não fosse a ciência de relação por excelência. Na matéria do Direito Marítimo (e o mesmo haverá de dizer do Direito Aeronáutico) se deparam relações jurídicas a propósito ou oriundas do navio e da navegação, pertinentes a outros ramos do Direito, assim no público, como no privado”, afirmou o grande mestre.

Assim é que, por força da natureza da navegação marítima, não são poucas as instituições de Direito Marítimo que se compreenderiam no Direito Internacional Público e no Privado, no Direito Administrativo, no Direito do Trabalho, no Direito Penal, no Direito Fiscal e até no Direito Processual, o que permitiria dividir o Direito Marítimo em diversos ramos, tais como Direito Internacional Público Marítimo, Direito Internacional Privado Marítimo, Direito Administrativo Marítimo, etc., “entrando a fundo no terreno das especializações, mais ao sabor das conveniências didáticas, que das científicas”.

Mas, “nem por isso”, ressalvou o insigne mestre, “e por efeito dessas classificações, deixaria de ser autônomo o Direito Marítimo”.

O Direito Marítimo apresenta ainda hoje conteúdo próprio, disse Wahl, ao que Danjon acrescentou: as suas características são a grande estabilidade através dos tempos, a notável uniformidade em toda a parte e, sem embargo, a admirável ousadia nas concepções jurídicas.

Ripert afirmou a importância do tradicionalismo do Direito Marítimo, que não se interrompeu pela codificação, que veio diminuir a valia dos usos e costumes. Ao contrário, tem ele resistido galhardamente ao evolver da indústria da navegação. Comprova-o a subsistência dos textos das codificações comerciais centenárias ou quase seculares, embora modificados muitos dos seus dispositivos na tendência de harmonizar o passado com o presente.

A construção de grandes e modernos portos, o emprego da tecnologia nos processos de carga e descarga dos navios, a maior brevidade das viagens, as novas e mais seguras formas de transporte marítimo, com a diminuição dos riscos e outras circunstâncias, modificaram o velho caráter do navio de colonia viaggiante, mas não a suprimiram, asseverou Asquini.

De modo a justificar o caráter todo peculiar do Direito Marítimo, Sampaio Lacerda elencou alguns dos muitos de seus institutos típicos, não só quanto às pessoas, como quanto às coisas e às obrigações, que resistiram ao tempo: a figura do capitão; a organização da profissão marítima que constitui a marinha mercante; a reserva da marinha de guerra; a natureza jurídica do navio de móvel sui generis, pela aplicação de certas regras pertinentes aos imóveis (registro, publicidade, hipoteca); o contrato de fretamento e o de ajuste. Além disso, não poucos são os institutos exclusivos do Direito Marítimo, tais como as avarias comuns, a abalroação, a assistência, o salvamento.

Estas são as substanciais razões do particularismo do Direito Marítimo, que não decorrem de contingências ocasionais, mas das necessidades impostas pela própria natureza da navegação, e que independem da vontade do legislador.

De fato, o Direito Marítimo tem características que lhe são próprias, as quais não concernem exclusivamente ao comércio marítimo, mas a tudo o que está relacionado com a navegação marítima, problema que não é de simples terminologia, mas de extensão de conceito. Nasceu, como se falou, da exploração mercantil da navegação, que ensejou a criação de regras, tanto de natureza privada quanto pública, destinadas a regulamentá-la.

O conjunto de normas que rege a navegação não é, pois, um direito subsidiário, acidental, secundário. Ao contrário, é um direito principal e unitário, com formas e instituições que são próprias e exclusivas dele, razão porque tem caráter todo original.

Assim, conquanto seja possível, sem dificuldades e inconvenientes, classificar, para fins didáticos, o Direito Marítimo em Público e Privado, como também em Internacional, mesmo mantendo inalterada a prevalência do primeiro sobre as instituições fundamentais do segundo, definir a navegação como um ramo de direito, distinto e independente do Direito Marítimo, é romper com o seu tradicionalismo e contrariar a sua originalidade.

O Direito Marítimo Privado relaciona-se com o Público através de suas particulares afinidades. Mas, mesmo sofrendo em muitos aspectos profunda influência do Direito Público, ele não deixa de apresentar elementos especiais, perfeitamente caracterizados, que compreendem a atividade especulativa dos cidadãos, que se desenvolve em torno e por meio da navegação.

Neste particular, relevante o comentário de J. Stoll Gonçalves, Juiz do Tribunal Marítimo nos anos quarenta, quando escreveu, em agosto de 1946, lastreado em opiniões de insignes mestres estrangeiros e de especialistas brasileiros, a nota explicativa do Projeto de Código Marítimo que encaminhou ao então Presidente da Comissão de Marinha Mercante, que elaborou em conjunto com Sydney Haddock Lôbo e Roberto Talavera Bruce, cujas palavras  traduzem o pensamento jurídico da época, não muito distante, mas que ainda é atual: “A Comissão Elaboradora encetou seus trabalhos partindo do postulado da unidade do Direito Marítimo, tal como a entendem os juristas e mestres contemporâneos. De fato, hoje não mais se sustenta, apenas, o particularismo do Direito Marítimo, mas a autonomia desse Direito, em todos os seus setores, e a sua tendência à uniformidade e à internacionalização. O Direito Marítimo pode e deve formar um sistema jurídico de modo a abranger normas do Direito Público e do Direito Privado.”

Finalmente, no âmbito do sistema jurídico constitucional brasileiro, temos que o mesmo se subdivide em diversos subsistemas, como o Direito Civil, do Trabalho, Tributário, Penal, do Consumidor, Comercial, Marítimo, dentre outros.

Cada um destes subsistemas tem uma finalidade específica, tendente a reger as relações jurídicas que a eles se conectam.

Neste passo, o Direito Marítimo, que tem por finalidade o transporte de mercadorias realizado por via aquática, tem sua autonomia, sua existência própria e independente, prevista na Constituição Federal, como por exemplo a disposição contida no inciso I de seu artigo 2214.

Ainda neste tema, nossa Carta Magna faz referência ao Direito Marítimo ou a matérias que a ele pertencem em outros dispositivos, como se vê no inciso X do artigo 22, nas alíneas d e f do inciso XII do artigo 21 e no artigo 178, caput e § único15.

Diante destes preceitos constitucionais, tem o Direito Marítimo suas próprias normas aplicáveis às relações jurídicas típicas deste ramo de direito, como a Lei n.º 9.611/98, que regula o transporte multimodal de cargas; a lei 12.815/2013, que dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e instalações portuárias; o Decreto n.º 1.265/94, que define a política marítima nacional, o Decreto-Lei n.º 116/67, que regulamenta as operações inerentes ao transporte aquático de mercadorias, inclusive definindo responsabilidades e prazos prescricionais; entre outras, inclusive aquelas inseridas no Código Comercial de 1850 e ainda vigentes.

Desta forma, procuramos demonstrar que o Direito Marítimo se apresenta como um ramo autônomo do direito e as relações jurídicas que a ele se conectam têm normas específicas que as regulam, não podendo ser admitida a aplicação de normas oriundas de outros ramos do direito, criadas para regular condutas e relações específicas daqueles subsistemas jurídicos.

__________

1 D’OVIDIO, Antonio Lefebvre e PESCATORE, Gabrielle, Manuale di Diritto della Navigazione, 1950, citados por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., p. 44.

2 BONNECASE, Julien, ob. cit., 1.

3 PRINZIVALLI, La pretesa autonomia del Diritto Marittimo, 1933, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., p. 40.

4 Ob. cit., p. 44.

5 PARDESSUS, J.M., Cours de Droit Commercial, 6ª ed., 1856, citado por J.C. Sampaio Lacerda, ob. cit., ps. 36/37.

6 Ob. cit., ps. 36/37.

7 SCIALOJA, Antonio, Corso di Diritto della Navigazione, 1945, citado por J.C. Sampaio de Lacerda, ob. cit., ps. 39 e 41.

8 FERRAZ JÚNIOR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., Atlas, 1994, p. 138.

9 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio, Manual de Introdução ao Estudo do Direito, ed. Saraiva, 1996, ps. 102 a 105.

10 Ob. e ps. citadas.

11 DOS ANJOS, J. Haroldo e CAMINHA GOMES, Carlos Rubens, Curso de Direito Marítimo, ed. Renovar, 1992, p. 6 a 9.

12 SAMPAIO DE LACERDA, J.C., ob. cit., ps. 35 a 46.

13 Ob. cit., p. 14 a 17.

14 Art. 22: “Compete privativamente à União legislar sobre:
I – Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho”.

15 Art. 22: " ........:

X – regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial”.
Art. 21: “Compete à União:
XII – Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
d) Os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites do Estado ou Território;
f) os portos marítimos, fluviais e lacustres”.
Art. 178: “A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.
§ único – Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras".

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.