Migalhas Marítimas

“Mobile Offshore Renewable Units” (“MORUs”): Enquadramento jurídico no Brasil

MORUs são estruturas móveis que geram energia renovável no mar. Potenciais no Brasil atraem debates sobre regulação e expansão sustentável.

12/12/2024

Introdução

O tema sobre geração de energia renovável tem atraído cada vez mais a atenção de empresas, autoridades e a sociedade em geral. A tecnologia voltada para a energia renovável tem experimentado uma evolução exponencial, com destaque para as instalações marítimas capazes de aproveitar fontes limpas, como o vento, o sol e as ondas do mar, para a geração de energia.

Apenas a título ilustrativo, no que diz respeito à energia eólica, estima-se que ao final do ano de 20191 havia aproximadamente 30.000 megawatts (MWs) em capacidade eólica offshore instalada em todo o mundo, e, em meados daquele ano, quase 5.500 geradores de turbinas eólicas offshore (WTGs) estavam conectados a “grids” onshore, conexões às redes de energia eólica em terra2.

Em grande parte, os equipamentos utilizados para geração de energia limpa offshore são instalados em estruturas fixas, como plataformas ou parques fixados em águas profundas, geralmente próximas da costa. Entretanto, uma variedade de novas estruturas tem sido desenvolvida de maneira móvel e flutuante e utilizada ao redor do mundo para geração de energia de maneira sustentável: são as chamadas “Mobile Offshore Renewable Units” (em tradução livre, Unidades Renováveis Móveis Fora da Costa), as MORUs.

As MORUs, como o nome sugere, são estruturas móveis, flutuantes, que podem gerar energia elétrica a partir do vento, das ondas, das marés, do sol ou de diferentes temperaturas da água do oceano – subcategoria chamada de “Floating Generation Units”, unidades geradoras flutuantes, em tradução livre – ou, ainda, que podem desempenhar atividades auxiliares a tais unidades – “Floating Auxiliary Units” ou “Floating Hybrid Units”.

Dentre as MORUs mais conhecidas e utilizadas ao redor do mundo, destaca-se a turbina eólica flutuante (“Floating Wind Turbines” – FWT), consistente em uma estrutura, associada à energia eólica, montada em um corpo móvel que flutua sobre o mar e que converte a energia cinética do vento em energia elétrica:

Por serem flutuantes, as MORUs possuem certas vantagens em comparação às estruturas fixas de geração de energia renovável. Dentre elas, vale mencionar, por exemplo, a possibilidade de que as MORUs sejam instaladas em águas rasas, com tecnologia inadequada para estruturas fixas ou de águas mais profundas. Além disso, alguns estudos também apontam que as MORUs seriam tecnologias com um custo relativamente reduzido, se comparadas às estruturas fixas de energia renovável[3].

O Brasil tem potencial para ser um líder mundial de energia eólica offshore – setor no qual estão incluídas algumas das MORUs. Além disso, a preocupação com a diversificação da matriz energética brasileira – uma das mais limpas do mundo - também empresta especial importância às MORUs

A esse respeito, o Decreto nº 10.946/2022, em vigor desde 15 de junho de 2022, dispõe sobre a cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore.  O referido Decreto estabelece que a geração de energia eólica offshore no Brasil – cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas –, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental. A referida cessão de uso dos espaços físicos, de competência do Ministério de Minas e Energia, poderá ser objeto de contrato oneroso ou gratuito, abrangendo (i) a área marítima, coincidente com os prismas entre o leito submarino e a superfície, destinada à realização de atividades de exploração e pesquisa tecnológica relacionados à geração de energia elétrica offshore, e (ii) as áreas da União em terra necessárias para instalação de apoio logístico para a manutenção e a operação do empreendimento. A cessão de uso estará sujeita à manifestação prévia de vários órgãos e entidades, entre as quais a do Comando da Marinha.

A regulamentação do tema sob o aspecto do direito marítimo no Brasil, entretanto, ainda depende de construções interpretativas das regras aplicáveis a embarcações e plataformas, a fim de se ter alguma orientação sobre o tratamento legal a ser disciplinado às MORUs.

MORUs no Brasil

As MORUs se assemelham a outras estruturas móveis offshore empregadas especialmente no setor de óleo e gás, mas se diferem materialmente de tais instalações em vários aspectos. Para além da fonte geradora de energia (fóssil vs. sustentável), as MORUs também se diferenciam das instalações offshore de óleo e gás no tocante à disciplina legal que rege a sua utilização. Enquanto as plataformas móveis de óleo e gás possuem um marco legal claro, sendo regidas até por normas específicas da Autoridade Marítima Brasileira (vide NORMAM 201), as MORUs ainda possuem uma regulamentação expressa, sendo necessário o uso de analogias para fins de seu enquadramento normativo no Brasil.

As MORUs poderiam ser tratadas normativamente tal como as embarcações, conforme parâmetros estabelecidos pelas NORMAMs. Isso porque a NORMAM 201, referente às “normas da autoridade marítima para embarcações empregadas na navegação em mar aberto”, já prevê que estruturas móveis, via de regra, são consideradas como embarcação:

“Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na Autoridade Marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas;”

 A própria Lei nº 9.537/1997, que trata da segurança do tráfego aquaviário em águas brasileiras, prevê que embarcação é “qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes (...)”.

Para melhor referência, a NORMAM 201 estabelece, dentre outros, os seguintes tipos de embarcação:     

“x) Plataforma - instalação ou estrutura, fixa ou flutuante, destinada às atividades direta ou indiretamente relacionadas com a pesquisa, exploração e explotação dos recursos oriundos do leito das águas interiores e seu subsolo ou do mar, inclusive da plataforma continental e seu subsolo.

I) Plataforma Móvel - denominação genérica das embarcações empregadas diretamente nas atividades de prospecção, extração, produção e/ou armazenagem de petróleo e gás. Incluem as unidades Semi-Submersíveis, Auto-Eleváveis, Navios Sonda, Unidades de Pernas Tensionadas (“Tension Leg”), Unidades de Calado Profundo (“Spar”), Unidade Estacionária de Produção, Armazenagem e Transferência (FPSO) e Unidade Estacionária de Armazenagem e Transferência (FSO). As embarcações destinadas à realização de outras obras ou serviços, mesmo que apresentem características de construção similares às unidades enquadradas na definição acima, não deverão ser consideradas “plataformas” para efeito de aplicação dos requisitos estabelecidos nesta norma e em demais códigos associados às atividades do petróleo.

II) Plataforma Fixa - construção instalada de forma permanente no mar ou em águas interiores, destinada às atividades relacionadas à prospecção e extração de petróleo e gás. Não é considerada uma embarcação.”

Adicionalmente, também poderia se cogitar incluir as MORUs na categoria específica de “obras e atividades afins em águas sob jurisdição brasileira”, conforme previsto na NORMAM 303. A NORMAM 303 faz menção a unidades estacionárias de produção, estruturas flutuantes e, especificamente, a parques eólicos marinhos (item 1.30).

Parque Eólico Marinho seria a área marítima onde são autorizadas instalações de plataformas individuais com aerogeradores, destinados a transformar energia eólica em energia elétrica. Dentre os equipamentos e áreas que compõem um Parque Eólico Marítimo, a NORMAM 303 destaca os seguintes:

“a) gerador eólico - estrutura individual localizada na superfície, consistindo de tubulação ou torre, instalada sobre as águas, geralmente montadas em flutuantes ou estruturas fixadas no leito marinho, com lâminas rotativas acopladas a um gerador elétrico;

b) estação transformadora ou subestações - estrutura localizada dentro ou fora do Parque Eólico Marítimo na qual os geradores eólicos estão conectados por meio de cabos elétricos, submersos ou não;

c) estrutura periférica significativa - gerador eólico localizado em um dos vértices de um parque eólico marítimo retangular ou em outro ponto notável na sua periferia; e

d) prisma - área vertical de profundidade coincidente com o leito submarino, com superfície poligonal definida pelas coordenadas geográficas de seus vértices, onde poderão ser desenvolvidas atividades de geração de energia elétrica.”

Vale ressaltar que tais estruturas, quando fixas, não poderiam ser consideradas como embarcação. Estruturas fixas, de acordo com a Lei nº 9.537/1997, somente podem ser tratadas como embarcação quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam.

Caberia ainda considerar  se as mesmas regras aplicáveis às “MODUs”, as “Mobile Offshore Drilling Units” (em tradução livre, Unidades de Perfuração Móveis Fora da Costa), tratadas no âmbito da NORMAM 201 (com base no Código para a Construção e Equipamento de Plataformas Móveis de Perfuração (Code for Construction and Equipment of Mobile Offshore Drilling Units, 1989 - MODU CODE e suas alterações), poderiam ou não ser apropriadas para as MORUs, tendo em vista as semelhanças entre essas duas tecnologias, para fins de enquadramento normativo das MORUs como embarcação.

A relevância de as MORUs serem ou não enquadradas como embarcações está diretamente relacionada à identificação das regras legais que irão reger as operações com essa tecnologia, sobretudo no que diz respeito ao seu regime de propriedade e registro, salvatagem e segurança; comunicação; sinalização; seguro; tripulação e normas ambientais, entre outros. Além disso, a conceituação também é relevante para discussão de outros aspectos ligados às MORUs, que podem incentivar o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, tal como a forma de constituição de ônus e gravames sobre tais estruturas, ou, ainda, de arresto desses bens, dentre outros. Por exemplo, sendo as MORUs consideradas como embarcação, aquelas que arvorarem bandeira brasileira serão registradas no Tribunal Marítimo e na Capitania dos Portos, conforme aplicável.

De todo modo, essa é uma construção interpretativa extraída das normas marítimas que existem, para embarcações em geral, plataformas e MODUs. Vale ressaltar que não existe norma expressa para as MORUs.

De todo modo, acreditamos que construções interpretativas baseadas em normas marítimas já existentes, bem como em julgados relacionados a embarcações em geral e a plataformas em específico, poderiam servir de orientação, com a finalidade de trazer alguma luz a empresas e players interessados em desenvolver esse setor no Brasil.

Comentários Finais

Como visto, as MORUs são uma tecnologia relativamente recente, mas que fazem parte de uma discussão já antiga relacionada ao desenvolvimento da energia sustentável. Estudos indicam que as MORUs tendem a crescer exponencialmente nos próximos anos em diversos país, dentre eles, o Brasil, cujas características geográficas posicionam o país em destaque no mercado eólico offshore.

Apesar de promissora, todavia, a regulamentação das MORUs no Brasil ainda é incipiente. Há quase nenhum regramento sobre o assunto, sendo necessário realizar uma interpretação extensiva das regras atualmente existentes para plataformas, por exemplo, bem como para as MODUs, a fim de se ter alguma orientação quanto às operações com essa tecnologia.

A geração de energia eólica offshore no Brasil – cuja atividade não esteja associada à exploração e à produção de petróleo e gás nem a potenciais hidráulicos localizados em cursos de rio ou em bacias hidrográficas –, deverá ser feita através da cessão de uso de espaços físicos para o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental. 

No que diz respeito especificamente às MORUs, caso sejam móveis poderiam ser classificadas com embarcações, mas sendo instalações fixas não deveriam ser consideradas embarcações, exceto quando estão sendo rebocadas para o local da obra/atividade a que se destinam.

Certamente, uma discussão mais aprofundada sobre o tema e a criação de um regramento específico pelas autoridades marítimas podem contribuir para dar segurança jurídica e, consequentemente, viabilizar e estimular o crescimento desse mercado no Brasil – o que, em última análise, também contribui para a diversificação da matriz energética brasileira e a geração de energia sustentável.

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1 Global Wind Report 2019, GLOBAL WIND ENERGY COUNCIL 44 (Mar. 2020), https:// gwec.net/global-wind-report-2019/.

2 Offshore Wind Outlook 2019, INTER. ENERGY AGENCY 15 (2019), https://webstore. iea.org/offshore-wind-outlook-2019-world-energy-outlook-special-report. Compare this to an estimated 1,500 offshore oil and gas installations worldwide in 2013. See Steven Rares, An International Convention on Offshore Hydrocarbon Leaks?, CMI YEARBOOK 2013 340, 340 (2013).

3 SEVERANCE, Alexander. Mare Incongnitum, Part I: Do We Need (to at Least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Units Convention? Severance, Alexander, Mare Incognitum, Part I: Do We Now Need (to at least Discuss) a Mobile Offshore Renewables Unit Convention? (April 4, 2020). 45(2) Tulane Maritime Law Journal 287 (2021), Available at SSRN: Disponível aqui or disponível aqui.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.