Migalhas Marítimas

O art. 20 da lei orgânica do tribunal marítimo – lotm e a interrupção da prescrição do processo no tribunal marítimo

Priscila Pinto analisa o artigo 20 da LOTM, defendendo que ele interrompe, mas não elimina, a prescrição de 5 anos em processos no Tribunal Marítimo.

5/12/2024

Recentemente esta autora publicou na Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário do Instituto de Estudos Marítimos artigo científico sobre interrupção da prescrição no Tribunal Marítimo, a partir da análise da jurisprudência do referido Tribunal, bem como da doutrina. 

Isto porque, na medida em que, a despeito de autores já terem chamado atenção para o fato de que o legislador, com a edição do art. 20 da LOTM teria o feito para estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estiver em curso, a jurisprudência do Tribunal Marítimo ainda não está consolidada sobre o tema, existindo jurisprudência que aplica de forma errônea o art. 20 da LOTM, como se este tratasse de imprescritibilidade. 

Tal fato, deve-se, também, ao entendimento da comissão de jurisprudência do referido Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição

Neste sentido, restou defendido naquele artigo científico, que art. 20 da LOTM não requer qualquer modificação, trazendo a reflexão sobre se não seria adequado um novo posicionamento da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo, a fim de colocar luz definitivamente sobre a questão, de forma a se concluir, definitivamente, que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo.

Recentemente, a autora obteve, inclusive, resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o referido artigo científico teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo.

Pois bem, a convite do Migalhas Marítimas, de forma resumida, a autora buscou trazer os principais pontos levantados no artigo científico, sobretudo para se concluir que é insustentável alegar que o art. 1º, caput, da lei 9.873/99 (o qual trata da prescrição em 5 anos) teria suprimido o disposto no art. 20 da lei 2.180/54. 

A bem da verdade, o que se verá é que as normas tratam de questões diferentes, e que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra. Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99, eis que silente a LOTM sobre o prazo – art. 155 da LOTM1) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM). 

Pois bem, no Direito administrativo sancionador a prescrição é regra em conformidade com o princípio da segurança jurídica. Portanto, a tese da prescritibilidade é regra, enquanto a imprescritibilidade é exceção. 

E, como bem assevera Eliane Octaviano, a LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o Tribunal Marítimo2. Ou seja, a lei orgânica do Tribunal Marítimo, a despeito de aduzir, em seu art. 33, §2º3, que será de 05 dias o prazo para abertura do inquérito contado do conhecimento do acidente ou fato da navegação, nada dispõe acerca do prazo prescricional para a instauração do processo perante o Tribunal Marítimo. 

É nesse sentido que a referida lacuna da lei deu abertura à tese da imprescritibilidade, dando ao art. 20 da LOTM interpretação distorcida (e equivocada) da sua real interpretação.

E, Matusalém Pimenta, quando abordou o tema no livro Processo Marítimo – Formalidades e Tramitação, começou discorrendo sobre o efeito de eventual interpretação literal do art. 20 da LOTM, sendo que tal efeito, naturalmente, desencadearia na concepção de que o art. 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade, não sendo, portanto, sequer recepcionado pela CF/88. 

No entanto, o autor, a bem da verdade, defendeu que art. 20 da LOTM reclama interpretação teleológica, levando em conta a real motivação do legislador ao trazer a existência do referido artigo, qual seja a interrupção da prescrição enquanto o processo marítimo estiver em curso. Veja-se: 

No aviso deste autor, o artigo sub studio reclama interpretação teleológica. Qual teria sido a verdadeira motivação do legislador ao trazer à existência o texto do art. 20? Qual a sua teleios (go grego, finalidade)? Não parece lógico que tenha havido intenção do legislador de se estabelecer a imprescritibilidade em sede administrativa, o que seria teratológico, mesmo antes da promulgação da CF de 1988. O que se buscou, ainda que não se tenha feito de forma palmar, foi estabelecer a interrupção da prescrição, enquanto o processo marítimo estivesse em curso.

Portanto, a lógica jurídica caminha no sentido de se harmonizar o art. 20 da LOTM com a Carta Magna e combiná-lo com o art. 155 da própria Lei Orgânica: “nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor”

Assim, a melhor exegese aponta para a seguinte acomodação: quis o legislador tratar de interrupção da prescrição, e não de imprescritibilidade”

Eliane Octavio Martins assevera no mesmo sentido, senão vejamos4

“A LOTM é omissa no que tange ao prazo para instauração dos processos perante o TM. Considerada a tese dominante da prescritibilidade, considera-se que a LOTM, art. 20, não consagra a imprescritibilidade administrativa. 

E os dois autores também chegam na mesma conclusão sobre a definição do prazo prescricional, sendo este preenchido pelo art. 1º da lei 9.873/99. Veja-se: 

Eliane Octaviano Martins5:

“constatada a lacuna legal, postula-se pela incidência da regra ínsita na lei 9.873/99, que determina prescrição quinquenal, consoante art. 1º, verbis”

Matusalém Pimenta6:

“Posiciona-se este autor no sentido de que o melhor cotejo, nesse particular, faz-se com o processo administrativo. Se a hipótese é de pretensão punitiva da Administração Pública Federal, já que o TM é órgão do Poder Executivo, a lacuna deixada pela lei 2.180/54 deve ser preenchida pelo disposto na lei 9.873/99, que preconiza prazo prescricional de cinco anos.”

Portanto, a bem da verdade, então, as normas tratam de questões diferentes, sendo que a existência de uma em momento algum anula a eficácia da outra. 

Uma regula o limite temporal de 5 anos (art. 1º, caput, da lei 9.873/99) para se instaurar o processo perante o Tribunal Marítimo desde a ocorrência do fato/acidente da navegação, sob pena de, uma vez ultrapassado este prazo, restar prejudicada por completo a análise do fato/acidente da navegação, a outra norma, por sua vez, regula a interrupção do curso temporal com o início do processo no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão final neste Tribunal (art. 20 da LOTM). 

A despeito disto (da evidente diferença entre as normas), Matusalém Pimenta encerra o polêmico tema, afirmando que, infelizmente a questão da prescrição não tem sido adotada pelo Tribunal Marítimo, caracterizando-se o instituto da imprescritibilidade, gerando insegurança jurídica. 

Ademais, o parecer da comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo - que deveria ter colocado fim a tal imbróglio em 2010 - ao apreciar o conflito normativo ora apresentado, a despeito de não ter se pronunciado pela revogação do art. 20 da LOTM, pronunciou-se pela sua modificação7. Veja-se: 

“(...)A nossa Lei Orgânica, Lei 2.180/54, embora seja lei especial, teve o entendimento de seu art. 20 parcialmente modificado, ou seja, a apuração do fato ou do acidente da navegação (IAFN) deverá ter início dentro do prazo prescricional de cinco anos, da ocorrência do fato gerador, para que possa ser aproveitado, para gerar uma Representação (exceto nos casos em que constituir crime, quando a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na Lei Penal, conforme previsto no §2º, do Art. 1º, da Lei nº 9.873/99, ou se paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, conforme previsto no §1º do Art. 1º, desta Lei). (...)”

Fato é que o entendimento acima da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo que, muito embora não tenha se pronunciado pela revogação do artigo 20 da LOTM, pronunciou-se pela modificação do artigo para tratar da prescrição (quando a bem da verdade o artigo não confronta com a regra da prescrição quinquenal, eis que apenas trata da interrupção do curso desta no Tribunal Marítimo), gerando precedentes que, equivocadamente, entendem que o artigo 20 da LOTM trataria de imprescritibilidade. É o que se demonstra abaixo8

“N/M “PACIFIC FORTUNE”. Conhecer os embargos de declaração com o efeito de infringentes, tempestivamente apresentados, sendo providos parcialmente, mantendo-se o acórdão atacado.

Decide-se 

(..) no que se referia a imprescritibilidade dos acidentes e fatos da navegação, do art. 20 da Lei nº 2.180/54, sendo julgada na Sessão 6829ª  de 16/03/2010 e aprovada por unanimidade”.

Deve ainda o item c do dispositivo do Acórdão de fl. 1453 ser modificado como a seguir:

“c) decisão: rejeitar a preliminar de prescrição suscitada pela PEM e conhecer os embargos infringentes interpostos por ...”

Ocorre que, como se não fossem suficientes as doutrinas antes expostas, as quais colocam um fim no imbróglio, o Tribunal Marítimo, a despeito do entendimento da comissão de jurisprudência do Tribunal deixar margem para dúvidas sobre o tema, também possui jurisprudência que, corretamente, expõe a questão, deixando bem claro que o art. 20 da LOTM apenas afirma que a prescrição fica interrompida enquanto pendente de julgamento o processo no Tribunal Marítimo, sendo que em momento algum tal artigo afirmaria que os fatos e acidentes da navegação ficariam imprescritíveis. É o que se vê no processo 24.270/09, do Tribunal Marítimo9

“(…)Esta Juíza Relatora, contudo, ressalta, que no seu sentir, s.m.j a argumentação da PEM, de que os Artigos 1° e 8º da Lei 9.873/99 (prescrição de 5 anos), teriam revogado o art 20 da Lei Orgânica deste Tribunal, da Lei nº 2.180/54, é questionável, posto que a Lei 9873 trata de prescrição, não das causas que suspendem a prescrição. 

O art 20 da lei nº 2.180/54, ressalte-se não trata de prescrição, mas sim da suspensão do prazo prescricional dos processos iniciados no Tribunal Marítimo.

Parece-nos que a PEM neste particular também se confundiu, ao dizer “revogada a clausula de imprescritibilidade do TM” Não é demais ressaltar que o art. 20 da Lei Orgânica deste Tribunal (Lei nº 2.180/54) não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma. Apenas diz que se iniciado o processo no Tribunal Marítimo – a prescrição, qualquer que seja, não corre mais, até decisão final deste mesmo TM.  (…)”

Por todo o exposto, é equivocado sustentar pela revogação do art. 20 da LOTM (ou qualquer tipo de modificação no texto, como sugeriu a comissão de jurisprudência do Tribunal Marítimo), eis que, como demonstrado, art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva neste Tribunal, não ensejando, portanto, qualquer modificação no art. 20 da referida lei (e muito menos sua revogação diante do art. 1º da lei 9.873/99).

Por fim, reitera-se que, recentemente, a autora obteve resposta do Tribunal Marítimo no sentido de que o artigo científico anteriormente publicado teria provocado súmula sobre o tema. E, muito embora esta autora não tenha tido acesso ao teor da referida súmula, espera-se que a conclusão do Tribunal tenha sido no sentido pela unificação jurisprudencial de que o art. 20 da LOTM não torna os fatos e acidentes da navegação imprescritíveis de maneira alguma, mas sim interrompe o curso do prazo prescricional de 5 anos do processo quando este chega no Tribunal Marítimo e até que ocorra decisão definitiva pelo Tribunal Marítimo.

_________

1 Art . 155. Nos casos de matéria processual omissos nesta lei, serão observadas as disposições das leis de processo que estiverem em vigor.

2 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338.

3 Art . 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito.

§ 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão dêste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juizes.

4 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338.

5 Martins, Eliane Maria Octaviano, Curso de direito marítimo, volume III: contratos e processos/Eliane M. Octaviano Martins. Barueri, SP: Manole, 2015, p.338.

6 Pimenta, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. São Paulo, Manole, 2013. p.107.

7 Parecer da Comissão de Jurisprudência do Tribunal Marítimo. Presidida pelo Juiz Sérgio Bokel. Previsto na Ata 6529a . Sessão Ordinária de 16 de março de 2010.

8 Tribunal Marítimo, Processo nº 23.101/07. Relator: Juiz Geraldo Padilha. 14 de março de 2017.

9 Tribunal Marítimo. Processo nº 24.270/09. Relator: Maria Cristina de Oliveira Padilha, 13 de abril de 2010 

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.