O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.
Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de “Jurisprudência Marítima”1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Neste artigo, abordaremos o tema do “agente marítimo” no contexto do transporte marítimo, explorando seu conceito e enfatizando a inexistência de solidariedade com o armador/transportador. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto.
Dito isso, inicialmente, a fim de contextualizar o conceito de “agente marítimo”, tem-se que este pode ser definido como a pessoa jurídica nacional que representa a empresa de navegação em um ou mais portos no país, nos termos do que estabelece o 4º da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil de nº 800/20072.
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), por meio da Resolução ANTAQ nº 62/2021, também contribui ao definir o agente marítimo como o profissional que representa o transportador marítimo efetivo, seja contratando, em nome deste, serviços e facilidades portuárias, ou atuando em nome do transportador perante autoridades competentes ou usuários3.
Logo, por definição, o agente marítimo se enquadra na qualidade de um mero mandatário do armador/empresa de navegação.
É exatamente nesse sentido a lição da professora Eliane M. Octaviano Martins4: “O conceito de agente marítimo consubstancia-se na figura contratual de mandato. Efetivamente, o agente marítimo representa o proprietário do navio, o armador, o gestor ou o afretador/transportador ou de algum destes simultaneamente”.
Portanto, o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses de forma onerosa, exatamente como dispõem os artigos 653 e seguintes do Código Civil. Tal relação entre agente marítimo e armador, portanto, possui natureza jurídica de mandato mercantil.
Em termos práticos, o agente marítimo desempenha um papel de apoio ao armador/transportador no que tange às questões burocráticas junto às autoridades competentes, como a Alfândega, Polícia Federal, Delegacia da Capitania dos Portos e demais autoridades portuárias. Esse suporte é essencial porque muitas das embarcações envolvidas são de bandeira estrangeira, exigindo que o agente facilite a comunicação e o cumprimento de obrigações locais.
Aliás, a tradicional definição trazida por Sampaio de Lacerda é sempre interessante e denota o contexto histórico da atuação dos agentes marítimos: “Antigamente, quando um navio atracava a um porto, era o capitão encarregado de providenciar o desembarque das mercadorias e de entregá-las ao destinatário, recebendo os fretes ainda não pagos. Com o desenvolvimento da navegação marítima verificou-se o prejuízo que esse expediente traria com a demora prolongada do navio no porto. Assim, para evitar esses inconvenientes e a fim de permanecerem os navios no porto o menor tempo possível, tanto quanto o necessário para o embarque e desembarque de carga, as companhias que fazem serviços de linhas regulares de navegação mantêm nos portos agentes especiais, que são seus prepostos, (...) e que se destinam a substituir o capitão no encargo de entregar aos destinatários e de receber os fretes e providenciar os fretamentos."5
No entanto, esse papel administrativo não implica em qualquer solidariedade jurídica com o armador pelos danos ou obrigações assumidas por este. O agente marítimo atua apenas como um intermediário, sem ingerência sobre as operações de transporte e sem assumir riscos econômicos ou contratuais relacionados à carga ou à embarcação.
Assim, a jurisprudência reafirma que a responsabilidade do agente se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos do transportador.
Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre a figura do agente marítimo e do armador.
Primeiro Julgado:
Apelação – Transporte marítimo – Avaria de carga – Ação regressiva ajuizada por seguradora – Legitimidade passiva – Agente marítimo – Personagem que atua como mero mandatário do transportador marítimo e que, nessa condição, exerce a representação do mandante, em sendo ele pessoa jurídica estrangeira, nos termos do art. 75, X, do CPC – Representação essa que, a toda evidência, não traduz solidariedade do agente marítimo, nem tampouco o faz substituto processual do representado – Consequente ilegitimidade do agente marítimo para figurar no polo passivo de ações em que se reclame a responsabilidade do armador – Sentença de procedência da demanda reformada, com a proclamação da extinção do processo sem resolução do mérito – Julgamento não unânime. Dispositivo: Deram provimento à apelação, por maioria de votos.
(TJSP; Apelação 1025766-79.2015.8.26.0562; Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli; 19ª Câmara de Direito Privado; Julgamento: 27/11/2017)
Segundo Julgado:
Direito Marítimo. Responsabilidade Civil. Sinistro em transporte marítimo internacional. Trigo a granel oriundo da Argentina. Avaria que torna o produto imprestável, em decorrência de vazamento de óleo no porão do navio. Indenização paga pelo segurador. Sub-rogação. Ação movida em face do agente marítimo. Ilegitimidade passiva ad causam. Inexistência de responsabilidade solidária com o transportador, eis que esta não se presume, decorre da Lei ou da vontade das partes. Ausência de norma legal ou acordo entre as partes quanto à responsabilidade solidária. Responsabilidade do transportador. Não se concebe responsabilizar o agente marítimo pelas obrigações decorrentes do contrato de transporte internacional, sobretudo porque no caso em tela o transportador estrangeiro - WORTHINGTON BULK LTD. é representado no Brasil pela OCEANFREIGHT SERVICES LTDA, pessoa jurídica regularmente constituída e com sede no território nacional. Provimento do 1º apelo para julgar extinto o processo, sem apreciação do mérito, com esteio no art. 267, inciso VI do CPC, por ilegitimidade passiva ad causam da demandada (...).
(TJRJ, Apelação n° 0025690-82.2007.8.19.0001, Relator: Des. Marcos Bento De Souza, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Julgamento: 12/04/2011)
Pode-se observar que, no primeiro julgado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reforça a inexistência de responsabilidade solidária do agente marítimo em relação aos atos do transportador.
O acórdão destaca que o agente marítimo atua como mero mandatário, exercendo uma função de representação do transportador estrangeiro. No entanto, tal representação, por si só, não cria vínculo de solidariedade entre o agente e o armador, nem confere ao agente marítimo a condição de substituto processual do representado.
Dessa forma, o entendimento do Tribunal reconhece que o agente não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ações que buscam responsabilizar o armador por avarias ou outros prejuízos decorrentes do transporte.
Quanto ao segundo julgado, observa-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também reconhece a ausência de solidariedade entre agente marítimo e transportador.
O acórdão identifica que o agente marítimo não pode ser responsabilizado, uma vez que não é armador nem proprietário do navio, mas apenas exerce atividade de representação do armador em um determinado porto, tendo com ele um contrato de mandato regido pelo Direito Civil.
O voto ainda fundamenta acertadamente que a solidariedade não se presume, mas resulta da Lei ou da vontade das partes6 e, com isso, não havendo nos autos qualquer documento no sentido de que o agente tenha se responsabilizado pelo êxito do contrato de transporte ou assumido os riscos dele derivados, é incontestável o reconhecimento da ausência de responsabilidade solidária.
Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o agente marítimo e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria.
Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à importante figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
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1 Disponível aqui.
2 Art. 4º A empresa de navegação é representada no País por agência de navegação, também denominada agência marítima.
§ 1º Entende-se por agência de navegação a pessoa jurídica nacional que represente a empresa de navegação em um ou mais portos no País.
§ 2º A representação é obrigatória para o transportador estrangeiro.
3 Art. 2º Para os efeitos desta Resolução são estabelecidas as seguintes definições:
b) agente marítimo: todo aquele que, representando o transportador marítimo efetivo, contrata, em nome deste, serviços e facilidades portuárias ou age em nome daquele perante as autoridades competentes ou perante os usuários;
4 MARTINS, Eliane M. Octaviano, "Curso de Direito Marítimo", vol. II, 3ª Edição, Ed. Manole
5 LACERDA, José Candido Sampaio de. “Curso de Direito Privado da Navegação”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984, 3ª ed. rev. e atual. por Aurélio Pitanga Seixas Filho.
6 Art. 265, Código Civil: A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.