Migalhas Marítimas

As distintas posições jurídicas dos consignatários do conhecimento marítimo master e conhecimento marítimo house

Stella Sammarco explora o conhecimento marítimo no transporte de mercadorias, funcionando como recibo, título de propriedade, prova de contrato com modalidades, como MBL e HBL.

17/10/2024

O contrato de transporte marítimo surgiu da necessidade de explorar os mares para o transporte e comércio de mercadorias, fenômeno que remonta às primeiras civilizações que desenvolveram habilidades e tecnologia para navegar. O desenvolvimento do transporte marítimo acompanha a própria evolução das sociedades, uma vez que os oceanos representavam, e ainda representam, uma via fundamental para o escoamento de produtos entre diferentes regiões geográficas.

Com o passar do tempo, a necessidade de regulamentar essas transações cresceu, levando à criação de documentos específicos para controlar e organizar as operações. O Conhecimento Marítimo (BL - Bill of Lading), também conhecido como conhecimento de embarque, é um desses documentos essenciais, cuja evolução histórica pode ser traçada desde práticas comerciais ancestrais. A princípio, tratava-se de simples recibos que atestavam a entrega de mercadorias para transporte, mas com o avanço do comércio global, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, o BL ganhou status de documento legal, possuindo várias funções, conforme veremos a seguir.

O Conhecimento Marítimo desempenha três funções principais. A primeira, como recibo de mercadorias, quando o transportador, ou seu agente, emite um BL, este funciona como um recibo formal da mercadoria recebida para transporte. Esse recibo especifica as características da carga (quantidade, volume, tipo) e serve como prova de que o transportador assumiu a custódia da mercadoria.

Como segunda função, além de ser um recibo, o BL também funciona como um título de propriedade da mercadoria nele descrita. Isso significa que a posse do BL equivale à posse física da mercadoria. O titular legítimo do documento tem o direito de tomar posse da mercadoria no destino, tornando o BL um instrumento valioso nas transações comerciais internacionais.

Finalmente, o BL também serve como evidência de que um contrato de transporte foi celebrado entre as partes. Ele contém os termos e condições sob os quais o transporte será realizado e respectivas responsabilidades, inclusive prazos, rotas e outros detalhes pertinentes. Embora muitas vezes os contratos de transporte marítimo sejam formalizados por outros meios, o BL continua a ser essencial em situações em que não há um contrato formal escrito celebrado entre as partes.

No contexto do Direito Marítimo, o Conhecimento Marítimo é amplamente reconhecido como um dos documentos mais importantes. Sua função de representar o título de propriedade da mercadoria é particularmente importante em transações internacionais, pois permite que o vendedor transfira a propriedade da mercadoria ao comprador, mesmo que está ainda esteja em trânsito. Esse processo é crucial para operações comerciais que envolvem grandes distâncias geográficas, onde a entrega física pode levar dias ou semanas.

Além disso, o BL oferece segurança jurídica às partes envolvidas, especialmente em situações em que a mercadoria passa por várias jurisdições e operadores ao longo da cadeia logística. A emissão do BL, seja em formato físico ou eletrônico, garante que as partes tenham um documento reconhecido internacionalmente que possa ser utilizado em litígios ou disputas comerciais, caso necessário. Com o avanço da tecnologia, inclusive, o uso de Bills of Lading eletrônicos tem se tornado mais comum, reduzindo a necessidade de documentos físicos, sem que isso comprometa a segurança jurídica.

Dentro do sistema de transporte marítimo, podemos destacar dois tipos de Conhecimento Marítimo: o MBL - Master Bill of Lading e o HBL - House Bill of Lading. Compreender a distinção entre essas modalidades é fundamental para evitar confusões e disputas jurídicas no âmbito do comércio internacional.

A existência dessas duas espécies de Conhecimento Marítimo decorre do papel que diferentes atores desempenham na cadeia logística, sendo comumente utilizados em situações em que haja um operador intermediário entre carga e transportadores marítimos, tais como os agentes de carga, freight forwarders, ou NVOCC - Non-Vessel Operating Common Carrier.

O Master BL, é um documento emitido pelo transportador de fato, contendo as obrigações e responsabilidades que o armador e/ou transportador de fato tem para com o consignatário, sendo, por vezes, o contrato de transporte propriamente dito entre o exportador ou importador e o transportador, naquelas hipóteses em que não haja um contrato de transporte formal.

O House BL, por sua vez, é emitido por agentes de carga para o importador das mercadorias nele descritas. O papel desse documento é intermediar as obrigações entre o exportador e o agente de carga, sem que o armador e/ou transportador marítimo de fato seja parte direta nesse contrato. O HBL, em muitos casos, tem para o agente de carga a importante função na consolidação de embarques menores, que são agrupados em um único embarque maior, proporcionando a obtenção de melhores condições de frete junto aos transportadores.

Portanto, nessas hipóteses, enquanto o Master BL regula a relação entre o armador e o agente de carga, o House BL é o documento que formaliza o acordo entre o agente de carga ou freight forwarder e o importador. Consequentemente, muitas vezes para o transportador o consignatário é na verdade o agente de carga e, em outras tantas vezes, é o efetivo consignatário da carga.

Embora ambos os documentos sejam Bill of Lading, as suas funções e as partes envolvidas são distintas, fato que gera implicações jurídicas significativas.

A emissão de dois tipos de Conhecimento Marítimo em um único embarque frequentemente gera confusão quanto às obrigações contratuais de cada parte envolvida. Para tanto, é crucial lembrar que os contratos estão sujeitos ao princípio da individualidade do contrato. Isso significa que cada contrato deve ser interpretado conforme os termos específicos nele contidos e as respectivas partes envolvidas.

No caso do House BL, por exemplo, o consignatário desse documento não celebrou o contrato com o armador, transportador de fato, o que significa que os efeitos jurídicos do Master BL repercutem no agente de carga, uma vez que este é o consignatário naquele documento.

Esse assunto foi recentemente abordado pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, em decisão proferida nos autos do processo 50300.019623/2020-00 – AI 004643-4 / SEI 1184817. No caso então analisado, houve uma denúncia formulada pelo consignatário do House BL em face do transportador marítimo de fato.

Nessa decisão, a ANTAQ decidiu que a consignatária do House BL não tem legitimidade para impugnar e nem mesmo contestar os termos da relação contratual contraída por transportador marítimo de fato e agente de carga, respectivamente emitente e consignatário do Master BL, uma vez que não era parte daquele contrato específico.

A decisão da ANTAQ lança luz sobre um princípio basilar do direito contratual, qual seja, contratos distintos, com partes e obrigações distintas, não podem ser confundidos ou sobrepostos. Esse entendimento permite que sejam evitados litígios desnecessários, bem como promove a segurança jurídica, pois garante que cada parte conheça claramente as suas obrigações e responsabilidades.

Outro princípio jurídico relevante que guarda relação com o tema é o da autonomia da vontade. Esse princípio estabelece que as partes são livres para pactuar os termos dos seus contratos, desde que respeitados os limites legais. Na hipótese aqui analisada, a autonomia da vontade deve ser observada tanto em relação à elaboração do Master BL quanto do House BL, sendo que ambos os documentos refletem os acordos específicos entre as partes contratantes, bem como respeitam a legislação de regência.

Dessa forma, sendo as obrigações assumidas em um contrato intuitu personae, produzem efeitos às partes que o celebraram. Como tal, o consignatário do House BL não pode ser responsabilizado pelas obrigações contraídas pelas partes descritas no Master BL, e vice-versa. Isso garante a individualidade dos contratos e a segurança jurídica nas transações comerciais, evitando que terceiros sejam indevidamente responsabilizados por termos que não pactuaram.

O transporte marítimo, sendo um dos pilares do comércio internacional, envolve uma série de documentos e normas que asseguram a movimentação das mercadorias ao redor do mundo. O Bill of Lading, em suas diferentes formas, desempenha um papel fundamental nesse processo, garantindo tanto a propriedade das mercadorias quanto a formalização das responsabilidades contratuais entre as partes.

A distinção entre o Master BL e o House BL é, portanto, essencial para garantir que as obrigações sejam corretamente atribuídas e que litígios desnecessários sejam evitados. A decisão da ANTAQ acerca da ilegitimidade da consignatária de um HBL para impugnar os termos do MBL é um exemplo claro de respeito ao direito contratual e seus respectivos princípios, reafirmando a importância da individualidade dos contratos e autonomia da vontade das partes.

Por fim, mesmo com a crescente utilização do Bill of Lading eletrônico, que aponta para o futuro do transporte marítimo e comércio mundial, se almeja a uma maior eficiência, mas sem comprometer a segurança jurídica. Assim, seja em formato físico ou digital, o BL permanece uma peça central nas operações de transporte marítimo e continuará a desempenhar um papel vital no comércio exterior.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.