A pesquisa das constituições brasileiras, em busca de normas que tratem do TM, revela uma inicial frustração, pois, à primeira vista, parece que o constituinte, ao longo das oito constituições de nossa História, teria sido quase absolutamente indiferente à corte do mar, ressalvando-se apenas a menção contida no art. 17 do ADCT da constituição de 1946.
Essa indiferença, contudo, é apenas aparente.
Embora, realmente, salvo a referida exceção, nenhuma das constituições brasileiras tenha feito menção nominal ao TM, o exame da evolução da legislação mostra que, na verdade, o legislador sempre esteve atento à normatividade constitucional e, mais ainda, procurou harmonizar tanto sua definição como órgão, quanto suas funções, às mudanças constitucionais.
Para melhor visualização do que será exposto a seguir, observe-se a seguinte “linha do tempo”:
Quando da criação (normativa, não de fato) do TM, em 1931, estava em vigor, formalmente, a constituição de 1891, que estabelecera, como primeira carta republicana, as bases da separação dos poderes, tal como presente nas constituições brasileiras. O texto do decreto 20.829 não deixa dúvidas quanto à inclusão dos Tribunais Marítimos no Poder Executivo. Quanto às suas funções, é importante registrar o disposto no art. 60 da constituição de 1891:
Art. 60 - Aos juizes e Tribunaes Federaes: processar e julgar:
g) as questões de direito maritimo e navegação, assim no oceano como nos rios e lagos do paiz1;
Parece razoável supor que o legislador2 não criaria um tribunal com específica atribuição para apreciar questões marítimas, de modo a entrar em conflito com a Justiça Federal, que já possuía tal atribuição desde o início da república. Pode-se concluir, então, que já neste momento inicial se pretendeu reservar ao TM apenas o julgamento dos acidentes e fatos da navegação. Embora tal expressão só viesse a aparecer em 1945 (com o decreto-lei 7.675), já é possível delimitar tais funções pelo que consta do § 5º do art. 5º do decreto 20.829, quando determina que o tribunal só poderá impor, além da multa, “as penas de inaptidão para a profissão e suspensão das respectivas funções”.
Todavia, é consabido que a revolução de 1930 relegou a constituição de 1891 a uma vigência meramente nominal, retirando-lhe toda a efetividade e substituindo-a por Decretos editados pelo presidente da república3. O principal documento desse período foi o decreto 19.398, de 11/11/1930, que atribuiu ao governo provisório todas as funções executivas e legislativas4, e, embora mantendo formalmente o Poder Judiciário, igualmente sujeitou-o ao poder central do presidente da república5.
Coerentemente com tal hipertrofia do executivo, o decreto 20.829 criou o então “tribunal marítimo administrativo” inteiramente inserido na estrutura desse poder, sob o ponto de vista da separação orgânica dos poderes. É relevante observar, porém, que mesmo sob a ótica da separação funcional, o decreto previa recurso unicamente ao STF, excluindo, portanto, a reapreciação das decisões do TM pelos juízos ordinários, como dispunha o § 7º do seu art. 5º.
Como se percebe, ainda no âmbito meramente normativo (posto que suas atividades não haviam se iniciado), o TM já apresentava uma peculiaridade: embora, sob o ponto de vista orgânico, fosse inequivocamente do Poder Executivo, era, sob a perspectiva funcional, órgão sui generis, uma vez que, de suas decisões, cabia recurso extraordinário diretamente ao STF, ou seja, o reexame das suas decisões era excluído da apreciação judicial ordinária. Este ponto específico já foi abordado em texto anterior desta coluna, em que analisei a permanência, ou não, desse “recurso extraordinário direto” no âmbito do TM6.
As modificações efetuadas pelos decretos 22.900/33 e 24.585/34, ainda sob a égide do regime constitucional do governo provisório, mantiveram tal coerência, cuidando apenas de passar a estrutura do TM da marinha mercante para a marinha de guerra.
A despeito de ter nascido em tal ambiente de exacerbada predominância do Poder Executivo, o efetivo início das atividades do TM se deu já sob a égide da Constituição de 1934, promulgada em 16/07/1934.
A constituição de 1934 teve curtíssima vigência, uma vez que, já no ano seguinte, foi submetida a uma gradativa perda de eficácia, inaugurada com o decreto legislativo 6 (18/12/1935), que promulgou três “Emendas” à constituição (não incorporadas ao seu texto), ampliando significativamente os poderes do presente da república. As partir desse ponto, a Carta de 1934 foi sendo desfigurada, até a sua substituição total pela carta de 1937. Todavia, por uma coincidência histórica, o efetivo início das atividades do TM (entre 05/07/1934, data da edição do seu regulamento, e 23/02/1935, data da sessão solene de instalação7) ocorreu exatamente nessa breve “janela” de vigência da constituição.
As disposições da nova Constituição não suscitam dúvidas quanto ao enquadramento orgânico do TM, que permanece como órgão do Poder Executivo. Do ponto de vista funcional, todavia, impõe-se uma reflexão sobre o que consta do seu art. 81, o qual, ao tratar da competência da Justiça Federal, assim dispôs:
Art 81 - Aos juízes federais compete processar e julgar, em primeira instância:
g) as questões de Direito marítimo e navegação no oceano ou nos rios e lagos do País, e de navegação aérea;
De plano, o dispositivo gera dúvidas sobre a permanência, ou não, do recurso extraordinário contra as decisões do TM, especialmente quando se tem em vista que a mesma constituição, no art. 79, determinou a criação de um tribunal de segunda instância para a Justiça Federal. Entretanto, o próprio dispositivo criava uma exceção a essa competência, nos casos em que coubesse recurso extraordinário, diretamente ao STF8.
De qualquer modo, o disposto no art. 81, g) daquela constituição não impediu nem prejudicou o exercício da jurisdição administrativa do TM, não se tendo notícia de qualquer conflito entre a corte do mar e a Justiça Federal de primeiro grau.
Ainda assim, uma reflexão parece pertinente: como a carta de 1934 atribuía a esse tribunal federal de segundo grau a competência, inclusive, para julgar “recursos de atos e decisões do Poder Executivo”, não seria o caso de concluir que, das decisões do TM, caberia recurso ordinário a esse tribunal federal de segunda instância (sem passar pelo juiz federal de primeiro grau)?
Embora interessante, a questão não chegou a ter repercussão prática, ou gerar qualquer controvérsia efetiva, em razão da já comentada brevidade da vigência da constituição de 1934.
A constituição de 1937 extinguiu a Justiça Federal, mantendo o STF como órgão de segunda instância das causas em que fosse parte a união federal:
Art. 107 - Excetuadas as causas de competência do STF, todas as demais serão da competência da Justiça dos Estados, do distrito federal ou dos territórios.
Art. 108 - As causas propostas pela união ou contra ela serão aforadas em um dos juízes da capital do estado em que for domiciliado o réu ou o autor.
Parágrafo único - As causas propostas perante outros juízes, desde que a união nelas intervenha como assistente ou opoente, passarão a ser da competência de um dos juízes da Capital, perante ele continuando o seu processo.
Art. 109 - Das sentenças proferidas pelos juízes de primeira instância nas causas em que a união for interessada como autora ou ré, assistente ou oponente, haverá recurso diretamente para o STF.
Manteve o TM, portanto, nesse período, seu lugar na ordem constitucional: órgão do Poder Executivo, sob o ponto de vista orgânico, mas com uma interessante peculiaridade, sob o aspecto funcional, - ao menos à luz da legislação de regência - de ser, de certo modo, tribunal a quo do STF, na matéria de sua competência.
Seabra Fagundes parece não ter compartilhado de tal dúvida. Tratando da legislação instituidora do TM, vislumbrou intenção do legislador de não propiciar conflitos entre a Corte do Mar e o Judiciário, advertindo, porém, que “em um caso específico era admitido recurso de decisão sua para o Supremo Tribunal, procurando-se, em sentido oposto, entrosá-lo no mecanismo judiciário”9. No entendimento do ilustre administrativista, porém, essa ambiguidade teria terminado já na constituição de 1934:
“Sobrevindo, porém, a constituição de 1934, que restaurou em linhas tradicionais a jurisdição extraordinária dessa Corte, circunscrevendo-a, portanto, ao conhecimento da justiça comum, o texto permissivo do recurso diretamente interposto de decisões do tribunal marítimo se teve como inoperante.”10
Para Seabra Fagundes, ainda, a legislação de regência do TM só teria sido “adaptada” posteriormente à sua superação pelo texto da constituição de 1934:
“Posteriormente, e antes da vigente Constituição [refere-se à Constituição de 1946], a própria legislação ordinária retirou ao Tribunal Marítimo o feitio jurisdicional, que lhe emprestara o ato criador. Ajustava-se o texto legislativo à jurisprudência, já reiterada, do Supremo Tribunal.”11 (trecho entre colchetes daqui)
Na segunda e última parte deste estudo, abordarei o tratamento dado ao tribunal marítimo pelas constituições de 1946 a 1988.
1 Essa foi a redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 03/09/1926, que não alterou o conteúdo dessa alínea.
2 A referência a “legislador”, embora se trate de um Decreto do Poder Executivo, deve ser entendida em seus devidos termos, dado o regime constitucional então vigente, que tolerava tal atividade legislativa pelo Poder Executivo, como será detalhado mais adiante.
3 Como declarado no próprio Decreto 19.398: Art. 4º Continuam em vigor as Constituições Federal e Estaduais, as demais leis e decretos federais, assim como as posturas e deliberações e outros atos municipais, todos; porem, inclusive os próprias constituições, sujeitas às modificações e restrições estabelecidas por esta lei ou por decreto dos atos ulteriores do Governo Provisório ou de seus delegados, na esfera de atribuições de cada um.
4 Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambem do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país;
5 Art. 3º O Poder Judiciário Federal, dos Estados, do Território do Acre e do Distrito Federal continuará a ser exercido na conformidade das leis em vigor, com as modificações que vierem a ser adotadas de acordo com a presente lei e as restrições que desta mesma lei decorrerem desde já.
6 Migalhas Marítimas, 12/01/2023
7 Conforme registra Matusalém Pimenta, Processo Marítimo, p. 6.
8 Art. 79 - É criado um Tribunal, cuja denominação e organização a lei estabelecerá, composto de Juízes, nomeados pelo Presidente da República, na forma e com os requisitos determinados no art. 74.
Parágrafo único - Competirá a esse Tribunal, nos termos que a lei estabelecer julgar privativa e definitivamente, salvo recurso voluntário para a Corte Suprema nas espécies que envolverem matéria constitucional:
1º) os recursos de atos e decisões definitivas do Poder Executivo, e das sentenças dos Juízes federais nos litígios em que a União for parte, contanto que uns e outros digam respeito ao funcionamento de serviços públicos, ou se rejam, no todo ou em parte, pelo Direito Administrativo;
2º) os litígios entre a União e os seus credores, derivados de contratos públicos. (não destacado no original)
9 FAGUNDES, Miguel Seabra. O Contrôle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 2ª ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1950, p. 171.
10 FAGUNDES, op. e loc. cit.
11 FAGUNDES, op. e loc. cit.