Migalhas Marítimas

Os imbróglios para os portos organizados decorrentes de decisões judiciais que aplicam medidas constritivas a navios

O texto aborda a aplicação de medidas constritivas a navios e embarcações no Direito Marítimo, especialmente em cenários onde há risco de perda de bens ou direitos, respeitando o devido processo legal e o poder de cautela do juiz.

12/9/2024

Evidenciado o risco de perda de eventual bem ou direito, quando diante de situação prevista na legislação vigente, o juiz, respeitando o devido processo legal e exercendo seu poder de cautela, poderá aplicar medida constritiva a navios e embarcações.

No Direito Marítimo, a compreensão das normas que regem a aplicação de medidas cautelares é essencial para garantir a adequada proteção de bens e direitos em litígios. É de suma importância que o controle judicial seja cuidadoso e fundamentado para mitigar riscos e assegurar que a aplicação das medidas constritivas esteja em consonância não só com o que a lei dispõe, mas também com a realidade situacional que reveste o bem, principalmente quando dentro de um porto organizado1.

Acerca das medidas constritivas aplicáveis aos navios, verificam-se como possíveis os institutos da penhora (Art. 835, VIII, CPC2), do arresto e do sequestro (Art. 301,CPC3).

Em razão das especificidades dos navios, enquanto meios de transportes com características distintas de todos os outros, principalmente pelas suas dimensões e capacidades operacionais, deve ser considerado quando da aplicação de medidas judiciais constritivas, que as consequências atingem patamares diferentes para quaisquer outros bens passíveis das mesmas limitações, como, por exemplo, carros e caminhões.

Para tanto, destacam-se, dentre as características dos navios, as questões afetas à flutuabilidade, estanqueidade e navegabilidade, todas fundamentais para a garantia da segurança da embarcação, dos tripulantes e da carga.

A estanqueidade de um navio se define como sua capacidade de resistência à entrada de água em seus compartimentos internos, sejam eles de carga, máquinas ou habitacionais. Por flutuabilidade entende-se a capacidade de um navio de se manter na superfície da água devido à diferença entre seu peso e a força do empuxo exercido pelo líquido.

A navegabilidade, por sua vez, define-se como a capacidade de navegação segura em diferentes condições marítimas, como consequência da conjunção de fatores decorrentes de sua construção (envolvendo estrutura e projeto) e atinentes à propulsão (por meio de sistemas eficientes), à manobrabilidade (aptidão para realização de manobras em portos e oceanos com características diferentes), aos equipamentos de navegação corretos, a uma tripulação qualificada e a adequadas manutenções e inspeções, de modo a possibilitar que o navio cumpra seu propósito enquanto meio de transporte.

Dito isso, ao se traçar um comparativo entre navios e caminhões, por exemplo, facilmente se verifica a extensão das diferenças, principalmente no que tange à segurança do entorno que operam. Isso fica ainda mais evidente quando analisado sob o prisma da tríade segurança da navegação, salvaguarda da vida humana no mar e prevenção da poluição hídrica, que embasam a atuação da autoridade marítima brasileira, conforme estabelece o artigo 3º da lei 9.537/1997.

Verifica-se, portanto, a necessidade da observância de todas as peculiaridades inerentes aos navios, quando figurarem como objeto de decisões judiciais constritivas, porquanto constituem meios capazes de gerar impactos significativos que não se restringem a danos financeiros de seus proprietários. E tal fato se dá, justamente, em razão da expressiva quantidade de riscos atinentes a operação de um navio, não só ao meio em si e sua tripulação, mas também ao entorno e demais atuantes no cenário marítimo.

Ao figurar como objeto de restrição aplicada pelo juízo, um navio perde sua capacidade operativa e, por tal fato, deixa de aferir receita a seu proprietário que permanece com os custos referentes a sua tripulação e à manutenção das atividades básicas do navio enquanto meio autônomo.

Isso porque, conforme já mencionado, para a garantia de sua segurança e da navegação ao seu entorno, faz-se necessária atenção constante à flutuabilidade, estanqueidade e navegabilidade do navio, o que demanda custos operacionais e de mão de obra.

Não é incomum, portanto, que as constrições acarretem dívidas que culminem com a falta de pagamento de agências marítimas (representantes dos navios junto à autoridade marítima), armadores (responsáveis pela gestão comercial do bem) e tripulantes (trabalhadores que mantém a operacionalidade da embarcação).

Nota-se, então, que o proprietário pode se verificar diante de situações em que o abandono da embarcação se mostre como medida mais vantajosa do que a prestação da segurança do juízo, uma vez que não terá meios de quitar todos os débitos gerados pela inoperância de sua embarcação, quando somados ao que se exige para a prestação jurisdicional.

Por fim, diante da ausência de pagamentos da tripulação mínima necessária ou de funcionários que possam manter o navio em suas condições mínimas de segurança, configura-se o abandono da embarcação que, quando situada dentro de um porto organizado, passa a constituir um risco iminente à segurança da navegação, mediante os desdobramentos que tal abandono pode gerar.

O que se pretende demonstrar, com o presente artigo, é a necessidade de que tais questões sejam devidamente analisadas pelo juízo antes da aplicação de medidas constritivas.

A preocupação não se restringe à saúde financeira do proprietário da embarcação, mas sim ao risco de que o abandono do referido bem se mostre como medida atrativa, diante do acúmulo de despesas.

Tal abandono, para os portos organizados, prejudica não só o terminal em que o navio se encontra, diante do atraso nas operações, mas constitui risco severo à segurança da navegação do referido porto, podendo, inclusive, culminar com a interrupção das operações (caso a embarcação se solte do cais, como decorrência de amarrações precárias, por exemplo).

E é justamente esse abandono, dentro dos Portos Organizados brasileiros, que deve ser evitado, principalmente pelos órgãos públicos, visando a manutenção da segurança de suas operações, tamanha sua importância no cenário econômico nacional. Portos inseguros não são atrativos à iniciativa privada e a redução da renda movimentada pelo porto, impacta diretamente na economia do país.

Outrossim, tendo em vista que ao Estado de Bandeira de um país são estabelecidos deveres atinentes à manutenção do navio, mormente no que diz respeito à segurança da navegação, prevenção da poluição hídrica e salvaguarda da vida humana no mar, não se justificaria o próprio Estado, com seu Poder Judiciário, fomentar a insegurança, gerando riscos, por meio de decisões em dissonância com a realidade que permeia o navio.

Ao definir a presente linha de estudo para o artigo científico apresentado por mim à Escola de Guerra Naval, como requisito para a conclusão do Curso de Especialização "Regulação do Uso do Mar: Direito Marítimo",  tive como escopo fomentar a discussão acerca da necessidade de revisões legislativas.

Isso porque não se verifica, na legislação brasileira vigente, nenhum diploma que se dedique à questão em comento com afinco. Importa destacar, aqui, a não ratificação pelo Brasil da Convenção de Arresto de Navios, de 1999, inação que, somada às definições arcaicas do Código Comercial e à vacância de diplomas legais nacionais afeto ao tema, constituem insegurança jurídica quando se discute a questão de constrições aplicáveis a navios e suas decorrências.

Uma das medidas que pode contribuir, sobremaneira, para a construção de decisões fundamentadas e efetivas, é a valiosa a interação entre o Poder Judiciário e as autoridades Marítima e Portuária, as quais podem ser demandadas a apresentar suas considerações, visando estabelecer subsídios necessários a embasar decisões judiciais constritivas, quando se tratando de navios em portos organizados, de forma a mitigar  riscos de danos.

Note-se que não há que se questionar a efetividade das medidas constritivas, porquanto meios essenciais para garantir o cumprimento das obrigações contraídas e a proteção dos credores, como dito alhures. Todavia, aplicá-las sem a devida cautela pode significar concorrer para danos que poderiam ser evitados, caso a decisão fosse devidamente fundamentada.

Para ilustrar, apresento a seguinte situação hipotética – ainda que bastante comum: após o inadimplemento das obrigações definidas por um contrato, a parte prejudicada solicita ao juízo o arresto de um navio que se encontra em um Porto Organizado.

O juiz, ciente das características intrínsecas ao referido meio e da importância das atividades de um Porto, entende como necessária, diante do seu desconhecimento técnico específico acerca do assunto, solicitar que as autoridades Marítimas e Portuária se manifestem acerca dos possíveis impactos que a decisão causará.

Nesse momento, o juízo tomará conhecimento da realidade situacional do navio, isto é, do seu entorno, da regularização das figuras que representam o navio junto às mencionadas autoridades, bem como dos potenciais riscos de sua decisão.

Diante disso, munido de informações reais e conhecimento técnico, poderá decidir pelo arresto, impondo, concomitantemente com o encargo de fiel depositário, medidas que visem a manutenção da segurança do navio e da sua tripulação.

Para tanto, poderá solicitar a apresentação de relatórios que atestem as condições do navio, enquanto meio navegável, flutuante e estanque, além da prontificação de plano emergencial que abarque possíveis situações de risco, tais como rompimento de espias, necessidade de drenagem adequada de porões, além de estabelecimento mínimo de vigilância, quando se tratar de embarcação não tripulada.

Reitero, a intenção não é reduzir o número de arrestos e sequestros de navios, mas, tão somente, concorrer para a segurança da navegação, ainda que referidos bens venham a ser impedidos de cumprir com sua missão precípua: navegar.

Para tanto, tem-se que a contínua revisão e atualização da legislação são necessárias para alinhar as práticas jurídicas com os princípios modernos e as exigências do Direito Internacional.

Todavia, em que pese a positivação normativa, a coerência na aplicação do direito é medida que se impõe para se garantir segurança jurídica e efetividade na prestação jurisdicional do Estado, em todas as searas envolvidas.

__________

1 De acordo com o artigo 2º, inciso I, da Lei 12.815/2013, porto organizado se define como bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária.

2 Art. 835, CPC: A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: (…) VIII -  navios e aeronaves;

3 Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.