Como destacado anteriormente nesta coluna, “o contrato de afretamento, instrumento fundamental para a indústria marítima, estabelece as bases para a disponibilização e operação de embarcações ou serviços de embarcação por parte de um fretador ao afretador.”1 Mais especificamente, tais contratos podem ter como objeto desde a cessão de uma embarcação a casco nu para armação e uso ao longo dos anos, até a cessão de espaço a bordo para transporte de mercadoria em trecho específico, por tempo determinado ou não.
Dada a abrangência e complexidade desses modelos contratuais, é imprescindível que os players do mercado estejam atentos aos possíveis desdobramentos e interpretações contratuais que envolvem essa relação jurídica, frequentemente ensejadora de controvérsias acirradas, como se verá abaixo.
Dentre as disputas mais comuns envolvendo contratos de afretamento estão as relacionadas à aplicação de multas contratuais unilaterais e descontos nos recebíveis da empresa fretadora da embarcação, bem como às hipóteses de rescisão contratual. Essas questões podem ter origens diversas, tais como:
- A não obtenção do chamado Certificado de Autorização de Afretamento ou, simplesmente, CAA;
- O excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada;
- A indisponibilidade da embarcação ou atraso na sua entrega; e, por fim,
- O repasse, pela afretadora, de multas impostas por terceiras partes, geralmente, a Agência Nacional de Petróleo - ANP.
Nesse momento, trataremos inicialmente dos múltiplos casos relacionados à não obtenção do polêmico CAA, valendo examinar o objeto desse certificado, passando-se, em seguida, à análise de alguns casos concretos em que a não obtenção ou não renovação do CAA ensejou acirrada disputa entre as partes do contrato de afretamento. Visando oferecer uma visão abrangente das controvérsias existentes nesse relação jurídica complexa, trataremos dos demais casos acima indicados em artigos subsequentes envolvendo também o tema de “controvérsias em contratos de afretamento”.
A necessidade de obtenção do CAA, de fato, é tema de grande importância quando se trata do afretamento de embarcações estrangeiras. Este certificado é emitido pela ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, sendo definido na Resolução Normativa 1/15 (RN/1), art. 2º, inciso XIII2, como “o documento que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira afretada” (sem ênfase no original).
A mesma norma, em seu Capítulo III, esclarece as etapas para sua obtenção e renovação. Trata-se, resumidamente, do procedimento chamado de circularização, definido no art. 2º, inciso XVII3, e processado pelo SAMA - Sistema de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio, da própria ANTAQ, descrito no art. 2º, inciso XXXV4, daquela mesma RN1.
A circularização, em apertada síntese, consiste na consulta da disponibilidade de uma embarcação brasileira junto ao mercado interno, nas especificações procuradas pela empresa afretadora. Caso haja embarcação nacional disponível, a embarcação estrangeira é bloqueada pelo sistema, obrigando a contratação local. Em caso de indisponibilidade de embarcação nacional, a contratação da embarcação estrangeira é permitida, sendo então emitido o CAA pela ANTAQ, formalizando essa autorização.
Uma das maiores afretadoras de embarcações tanto nacionais quanto estrangeiras, como se sabe, é a Petrobras. É certo que os contratos de afretamento disponibilizados pela Petrobras aos licitantes que possuem interesse em afretar embarcações para aquela sociedade de economia mista contêm cláusulas preestabelecidas, em que há pouco espaço para negociação. Essas cláusulas, em relação ao CAA, estabelecem a obrigação da afretadora, no caso, a própria Petrobras de obter e renovar esse certificado periodicamente. Confira-se, apenas a título de exemplo, uma dessas cláusulas contratuais publicamente disponibilizadas:
“OBRIGAÇÕES DA AFRETADORA [Petrobras]
3.1.1 - Solicitar a Autorização de Afretamento da EMBARCAÇÃO à Agência Nacional de Transportes Aquaviário (ANTAQ), conforme a legislação vigente.
3.1.2 - Solicitar o Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), após o cumprimento das exigências constantes dos itens 34.1.1 e 34.1.2 deste CONTRATO.
3.1.3 - Solicitar, antes da data de vencimento da validade do Certificado de Autorização de Afretamento (CAA), nova Autorização de Afretamento e o respectivo CAA, conforme a legislação vigente e de acordo com prazo contratual, observando o item 4.2.5 deste CONTRATO.”
Como se verifica, trata-se de uma obrigação contratual assumida pela própria afretadora que, apesar de estabelecida entre as partes contratantes, envolve uma prestação de terceiro, no caso, a ANTAQ, a agência reguladora que concede o CAA, autorizando o afretamento de embarcação estrangeira.
Nesse contexto, é bastante frequente o surgimento de controvérsia entre as partes quando a Petrobras, por alguma razão, não consegue obter junto à ANTAQ a emissão ou renovação do CAA necessário ao afretamento da embarcação estrangeira, o que pode gerar a rescisão do contrato de afretamento ou aplicação de multas contratuais pela indisponibilidade da embarcação, sempre sujeitas ao questionamento da fretadora. Confira-se, a título de exemplo, o seguinte julgado que aborda exatamente essa problemática:
“APELAÇÃO CÍVEL. Direito Civil e Marítimo. Resolução antecipada, pela contratante PETROBRAS (parte ré), de contratos (i) de afretamento de embarcação estrangeira (com a empresa JAVA BOAT) e (ii) de prestação de serviços (com a empresa MARÉ ALTA). Ação de indenização, a título de danos materiais, ajuizada pelas contratadas (parte autora). Sentença de procedência. 1. Para regular operação em águas nacionais, uma embarcação de bandeira estrangeira deve obter e renovar, anualmente, autorização administrativa, emitida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), veiculada em documento denominado Certificado de Autorização de Afretamento (CAA). 2. O CAA obtido para a embarcação estrangeira (COLLINS TIDE) contratada pela PETROBRAS, junto à apelada JAVA BOAT CORPORATION BV, não foi renovado pela ANTAQ, por força da existência de bloqueios simples, efetuados por empresas proprietárias de embarcações de bandeira nacional, com amparo nas normas contidas na lei 9.432/97 e na Resolução Normativa 01/2015, da ANTAQ. Ausência de efetivação de bloqueio firme e de contratação da empresa bloqueante para, em substituição, dar continuidade aos contratos. Contratação da embarcação nacional (SEABULK ANGRA) que decorreu de nova licitação, e não de mera substituição, decorrente de bloqueio firme (inexistente), em relação à circularização 163/15. Existência de distinção nos contratos quanto aos serviços a serem prestados, bem como quanto aos requisitos técnicos das embarcações (estrangeira e nacional). Ruptura contratual por parte da PETROBRAS que se revela inadequada. Dever de pagar indenização a título de perdas e danos. Indenização que deve observar o limite constante da cláusula contratual 14.2.1 (fl. 242). Valores a serem pagos pelo serviço de afretamento fixados em moeda estrangeira (US$). Conversão para moeda nacional (R$), que deve ocorrer com base no câmbio existente na data da celebração do contrato de afretamento. Consectários legais fixados de forma escorreita, não havendo qualquer estipulação de incidência cumulativa de correção monetária, juros de mora e taxa SELIC. Precedentes. Sentença parcialmente modificada. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO.”
(Processo nº 0146219-81.2017.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). CELSO SILVA FILHO - Julgamento: 08/05/2024 - VIGESIMA SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 23ª CÂMARA CÍVEL)
No caso em exame, o TJ/RJ entendeu que teria havido rescisão contratual indevida por parte da Petrobras, uma vez que não houve comprovação de bloqueio firme – isto é, considerado como validado pela ANTAQ. No entendimento do julgado, a Petrobras teria incorrido em conduta violadora do princípio da boa-fé objetivo, ao “rescindir, de forma unilateral e irregular, o contrato (...) violando as normas contidas na lei 9.432/97, especialmente o artigo 9º (...)”.
A mesma controvérsia é observada em outros casos quando a afretadora deixa de justificar a ausência da renovação do CAA sem juntar o comprovante da submissão da circularização junto ao SAMA/ANTAQ ou, o que tem sido mais frequente, deixa de comprovar a própria contratação da embarcação nacional que teria bloqueado a embarcação estrangeira. Há casos, ainda, em que a afretadora informa a existência de bloqueio, o que impede a emissão do CAA pela ANTAQ, mas acaba contratando embarcação diversa da embarcação bloqueadora. Confira-se, nesse sentido, os seguintes precedentes:
“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONTRATUAL MARÍTIMO. COBRANÇA DE PERDAS E DANOS. RESCISÃO DE CONTRATO DE AFRETAMENTO DE EMBARCAÇÃO DE BANDEIRA ESTRANGEIRA. EMBARCAÇÃO “CARLINE TIDE”. UTILIZADA NO APOIO ÀS PLATAFORMAS E OUTRAS UNIDADES DA PETROBRAS, EMPREGADAS NA EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO NAS ÁGUAS JURISDICIONAIS BRASILEIRAS. CONTRATO COM PRAZO DE 04 ANOS, QUE INICIOU-SE EM 27/08/2013 COM VIGÊNCIA ATÉ 27/08/2017. AUTORIZAÇÃO PARA O AFRETAMENTO DA EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA QUE É MATERIALIZADA PELO CERTIFICADO DE AUTORIZAÇÃO DE AFRETAMENTO (CAA) QUE TEM VALIDADE POR 12 MESES, CONCEDIDO NA AUSÊNCIA DE EMBARCAÇÕES BRASILEIRAS DISPONÍVEIS. OBRIGAÇÃO CONTRATUAL DA PETROBRÁS DE RENOVAÇÃO DO REFERIDO CERTIFICADO. RESCISÃO DE FORMA ANTECIPADA EM 27/10/2015 AO ARGUMENTO DE NÃO OBTENÇÃO DO CAA (CERTIFICADO DE AUTORIZAÇÃO DE AFRETAMENTO) DA EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA POR TER SIDO BLOQUEADA, EM PROCEDIMENTO DE CIRCULARIZAÇÃO POR EMBARCAÇÃO BRASILEIRA DISPONÍVEL PARA SUBSTITUÍ-LA. NÃO CONSTA NOS AUTOS DEMONSTRAÇÃO DE TER OCORRIDO A CONTRATAÇÃO DA EMBARCAÇÃO BRASILEIRA QUE EFETUOU O BLOQUEIO DA CIRCULARIZAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO À EMBARCAÇÃO OPERADA PELAS AUTORAS. COMO OBSERVOU O DOUTO JUÍZO SENTENCIANTE, É POSSÍVEL VERIFICAR QUE A EMBARCAÇÃO "ASTRO BARRACUDA" NÃO FOI CONTRATADA POR MEIO DE NEGOCIAÇÃO DIRETA EM RAZÃO DO BLOQUEIO REALIZADO E SIM, EM DECORRÊNCIA DE LICITAÇÃO (CONVITE INTERNACIONAL 0940415118), CONFORME CONTRATO ASSINADO EM 27/10/2011 (FLS. 1014), MOMENTO ANTERIOR AO PEDIDO DE RENOVAÇÃO DO CAA DA EMBARCAÇÃO "CARLINE TIDE". USO INDEVIDO DA CLÁUSULA QUE PERMITE A RESCISÃO ANTECIPADA DO CONTRATO, A QUAL EXISTE TÃO SOMENTE A FIM DE SER CUMPRIDA A LEI 9.432/1997, COM O OBJETIVO DE ESTIMULAR E PROTEGER O MERCADO NACIONAL DE EMBARCAÇÕES DE APOIO MARÍTIMO. SENTENÇA ESCORREITA DESPROVIMENTO DO RECURSO.” (TJ/RJ. Apelação Cível. 0143178-09.2017.8.19.0001 – Des. Valéria Dacheux. 6ª Câmara de Direito Privado. DJe: 26/07/2024).
Como se verifica, houve detalhado escrutínio do Tribunal quanto à validade da rescisão do contrato de afretamento em razão da não obtenção do CAA pela Petrobras. No caso acima, perquiriu-se especificamente se houve contratação efetiva, pela Petrobras, da embarcação brasileira responsável pelo bloqueio da embarcação de bandeira estrangeira. Como não foi realizada a prova dessa contratação, o Tribunal concluiu que a rescisão do contrato de afretamento pela Petrobras foi indevida, uma vez que, na prática, não houve bloqueio firme, ou seja, apesar de ter havido o bloqueio da embarcação estrangeira, impedindo inicialmente a emissão do CAA, não houve contratação efetiva da embarcação bloqueante pela Petrobras, de modo que a rescisão do contrato de afretamento se mostrou indevida.
Os contratos de afretamento, especialmente aqueles em que a Petrobras figura como contratante, são complexos e demandam atenção redobrada quanto às obrigações impostas às partes envolvidas. A obtenção e renovação do CAA pela afretadora, examinada acima, é uma obrigação crucial, cuja inobservância pode resultar em graves consequências jurídicas, incluindo a aplicação de multas contratuais até a rescisão do contrato. Cada caso deve ser cuidadosamente examinado à luz do contrato firmado e do seu contexto fático, a fim de sopesar corretamente e de forma equilibrada os relevantes interesses envolvidos nessas contratações.
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1 Disponível aqui.
2 XIII - Certificado de Autorização de Afretamento – CAA: documento emitido pela ANTAQ que formaliza a autorização de afretamento de embarcação estrangeira afretada;
3 XVII - Circularização: Procedimento de consulta formulada por empresa brasileira de navegação a outras empresas brasileiras de navegação sobre a disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira para obtenção de autorização da ANTAQ para afretar embarcação estrangeira;
4 XXXV - Sistema de Gerenciamento de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio – SAMA: sistema informatizado disponibilizado pela ANTAQ em sua página na internet, com o propósito de agilizar a comunicação entre as empresas brasileiras de navegação e a ANTAQ nas operações de afretamento de embarcações, bem como aprimorar seu gerenciamento nas diversas etapas dos processos;