Migalhas Marítimas

Navegando por mares jurisprudenciais: Avaria grossa - Parte II

Neste artigo sobre o tema da "avaria grossa" no transporte marítimo, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada.

29/8/2024

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de “Jurisprudência Marítima”1  e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.

Deste modo, trataremos neste artigo sobre o tema da “avaria grossa” no transporte marítimo, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada.

Dito isso, a fim de contextualizar o termo “avaria”, tem-se que esta pode ser definida por qualquer dano causado à carga ou ao container durante o percurso, ou seja, entre o embarque e o desembarque, podendo esta avaria ser grossa (ou comum) ou simples (ou particular).

Na avaria grossa, seu conceito gira em torno da conduta intencional voluntária, adotada pelo transportador marítimo, que gera determinado dano ou despesa, porém com o objetivo de evitar um mal maior à aventura marítima e a todos os interesses a bordo. Ou seja, para que uma avaria grossa seja decretada, há que se observar a finalidade do ato e se o seu propósito era preservar a propriedade de um perigo presente ou futuro, a fim de cessar os danos iminentes, bem como aqueles que poderiam vir a acontecer, conforme elencado no art. 764 do Código Comercial.

Neste contexto, a ilustre Profª Eliane M. Octaviano Martins (2015, p. 7042) cita que “a avaliação da existência e a dimensão do perigo se submetem ao juízo de razoabilidade do Comandante”, de modo que é o Capitão do navio quem tomará a decisão final e mais segura para a salvaguarda de todos.

Desta forma, quando uma avaria grossa é decretada, e considerando que esse dano extraordinário foi realizado para salvaguardar navio, carga, frete e outros interesses, todos os players envolvidos naquele transporte compartilharão as despesas e os danos ocorridos em razão do feito extraordinário em benefício comum, para salvação do navio e de seu carregamento[3].

Sobre o tema da avaria grossa vale relembrar outros interessantes artigos publicados anteriormente nesta Coluna, detalhando com mais profundidade o tema, conforme se verifica nos seguintes links:  aqui e aqui.

Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam a repartição das despesas e a garantia da avaria grossa decorrentes de incêndio em embarcação.

Primeiro Julgado:

COMÉRCIO MARÍTIMO. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. CÓDIGO COMERCIAL. INCÊNDIO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DO NAVIO OU CULPA DA TRIPULAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO DE AVARIA GROSSA. A autora pretende a repartição de avaria grossa ocorrida em seu navio entre os responsáveis pela carga e as respectivas seguradoras, procedimento previsto no art. 772 Código Comercial. Afirmou a autora que durante a viagem houve um incêndio no navio, o qual trouxe danos ao mesmo. O acidente foi submetido à sociedade reguladora de avarias marítimas, a qual concluiu pela existência de avaria grossa, procedendo-se ao rateio do prejuízo. O art. 761 do Código Comercial traz o conceito de avaria como sendo "todas as despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque." Prossegue a Lei Comercial, em seu art. 763, afirmando que avaria grossa ou comum é aquela que é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga. Afirme-se que tais normas atinentes ao transporte marítimo, continuam vigentes no nosso ordenamento jurídico porquanto o art. 2045 do Código Civil de 2002 revogou, apenas, a primeira parte do Código Comercial, mantendo-se as disposições referentes à segunda parte da Lei Comercial, a qual disciplina o comércio marítimo. Da análise da legislação comercial, percebe-se que toda a regulação das eventuais avarias ocorridas no âmbito do transporte de cargas marítimo, estão disciplinadas na lei, cabendo ao julgador a análise dos fatos e condições que envolveram o acidente, submetendo à perícia eventuais questões técnicas. Em sua defesa, as rés argumentam que houve, em verdade, avaria simples, ou seja, o incêndio causado por vício exclusivo do navio mercante, bem assim, apontam a imperícia da tripulação no combate ao incêndio, de modo que as despesas ficam a cargo tão-somente do navio mercante, tal como o preceitua o art. 765 do Código Comercial Submetida a questão à prova pericial, em especial, em relação à existência de vício interno do navio como causa do incêndio e à culpa da tripulação no combate ao incêndio, concluiu o expert que tais hipóteses não ocorreram, cuidando-se de típico caso de avaria grossa, levando-se, consequentemente à repartição das despesas. DESPROVIMENTO DOS RECURSOS.

(TJRJ, APL 0158935-63.2005.8.19.0001, Relator: Desembargador Roberto De Abreu E Silva, Nona Câmara Cível, Data de Julgamento: 25/10/2011) 

Segundo Julgado:

Avaria grossa – Incêndio. Agravo de instrumento. Direito marítimo. Transporte de equipamentos em navio cargueiro. Acidente em alto mar com explosão e incêndio. Cargas transportadas danificadas. Declaração de avaria grossa. Decisão que deferiu o pedido liminar determinando a retenção das cargas dos réus no terminal de contêiners de sepetiba, até que sejam prestadas as garantias de avaria grossa. – (...) -decisão que se mantém. - Recurso conhecido e desprovido.

(TJRJ – AI 0042939-68.2015.8.19.0000 - Des(a). Maria Regina Fonseca Nova Alves - Décima Quinta Câmara Cível - Julgamento: 26/01/2016) 

Pode-se observar que, no primeiro julgado, todo o processo para a decretação de avaria grossa foi previamente submetido à análise da sociedade reguladora de avarias marítimas. Mesmo após alegações de avarias simples, foi realizada uma perícia para averiguar o acidente, constatando-se que se tratava, de fato, de um evento configurado como avaria grossa. Diante disso, é possível concluir que, em qualquer transporte marítimo, seja em casos de avaria grossa ou simples, é essencial a produção de provas, a análise de documentos, investigações e depoimentos e a avaliação por especialistas do acidente ocorrido no mar.

Neste segundo julgado, observa-se que a avaria grossa foi decretada diante de uma explosão e incêndio em alto mar, no qual algumas cargas foram danificadas e outras seguiram até seu destino. Neste caso, em razão do sinistro, foi declarada a situação de avaria grossa, impondo que as despesas excepcionais para combater o incêndio, mitigar os impactos e preservar as demais cargas e interesses a bordo, fossem repartidas por todos os interessados, navio e carga, devendo para tanto serem prestadas garantias que assegurassem o pagamento de toda a perda resultante do incêndio.

À vista disso, enquanto não prestadas as garantias pelos consignatários/seguradores da carga para a contribuição pela avaria grossa declarada, o armador faz jus à retenção das mercadorias, nos termos determinados no art. 7º do DL 116/67, conforme reconhecido pelo julgado.

O instituto da avaria grossa é milenar e reconhecido pela jurisprudência pátria.  Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo o tema da avaria grossa, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui.

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1 Disponível aqui.

2 OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. Barueri: Manole, 2015.v. 3: Contratos e processos.

3 Hugo Simas, Comentários ao Código de Processo Civil – arts. 675 a 781, RJ: Forense, 1940, p. 433.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.